quinta-feira, 15 de abril de 2021

Extinção do SEF e repartição das suas competências

 

A Resolução do Conselho de Ministros (RCM), aprovada no passado dia 8 de abril e publicada a 14 sob o n.º 43/2021, aprova as orientações de política legislativa para a reestruturação do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), determinando a criação do SEA (Serviço de Estrangeiros e Asilo), que sucede ao mesmo. Dito de outra forma, talvez melhor: determina a extinção do SEF, criado em 1986, e reparte as competências do serviço a extinguir por cinco entidades.

De acordo com o Comunicado do Conselho de Ministros, de 8 de abril, “a medida concretiza o definido no Programa do Governo, através da clara separação orgânica entre as funções policiais e administrativas de autorização e documentação de imigrantes, reconfigurando a forma como os serviços públicos lidam com o fenómeno da imigração, adotando uma abordagem mais humanista e menos burocrática, em consonância com o objetivo de atração regular e ordenada de mão-de-obra para o desempenho de funções em diferentes setores de atividade. 

Nos termos da referida RCM, as bases de dados de informações policiais detidas pelo SEF passam a ser controladas pelo SEA na “dependência do membro do governo responsável pela área da administração interna”. Ora, porque o SEA será um organismo de cariz administrativo, para tratar de autorizações de residência e pedidos de asilo, sem qualquer autoridade de órgão de polícia criminal, a única que permite aceder a estas bases de dados, a questão está a causar incómodo entre as forças de segurança que devem herdar as competências policiais do SEF, mesmo que, tal como é escrito na RCM, o SEA “em articulação com a Rede Nacional de Segurança Interna (RNSI)” garanta “o acesso a todas as entidades legalmente habilitadas para tal”. E o gabinete do Ministro da Administração Interna ainda não tem uma resposta sobre o enquadramento legal que sustenta esta medida.

Em todo o caso, tais bases de dados, que têm sido uma das grandes mais-valias do SEF, sê-lo-ão para GNR, PJ e PSP nas competências que lhes são destinadas, visto que permitem monitorizar as entradas e saídas de estrangeiros, a sua localização e permanência em território nacional: o SIS II – Sistema de Informações Schengen, que indica as pessoas que são alvo de restrições de circulação no espaço Schengen e documentos extraviados ou com problemas; o VIS – Sistema de Informação de Vistos da União Europeia (UE); o SNV – Sistema Nacional de Vistos; o Eurodac, onde estão todos os registos de impressões digitais partilhadas com as polícias da UE; o APIS – Sistema de Informação Antecipada de Passageiros, que regista as informações que as transportadoras aéreas facultam ao SEF sobre os estrangeiros que transportam para território nacional; o SIBA – sistema que monitoriza o registo de estrangeiros em unidades hoteleiras nacionais; o Passe-Rapid, que regista as entradas e saídas de estrangeiros em postos de fronteira; o Sistema de Passaportes, que regista todos os dados destes documentos; e o Sirene, que neste momento está no Ponto Único de Contacto do Sistema de Segurança Interna (SSI), onde também está alojada informação de suspeitos estrangeiros, documentos e viaturas em circulação na UE e já é partilhado pelas forças e pelos serviços de segurança.

Porém, Acácio Pereira, presidente do SCFIC (Sindicato da Carreira de Fiscalização e Investigação Criminal), que representa os inspetores do SEF, considera “um autêntico golpe de Estado” a colocação destas bases de dados nas mãos de civis, o que significa dar ao Governo “acesso por via administrativa ao que não deve ter”. Também André Coelho de Lima, coordenador para a Segurança Interna do Grupo Parlamentar do PSD, reage na mesma linha vincando:

As bases de dados ficarem no SEA é apenas mais uma enorme incongruência de uma reforma cujas consequências o Governo não está, com certeza, a prever bem. O SEA deixará de partilhar a relevante informação que detém e continuará a deter na medida em que não poderá participar na RNSI, uma vez que a ela apenas acedem forças policiais.”.

Acresce que, no dizer do deputado, “internacionalmente é igualmente grave a consequência já que o SEA deixará de poder participar na Frontex e na Europol uma vez que essas organizações admitem apenas entidades policiais”.

A reestruturação do SEF (eufemismo para dizer extinção), anunciada após o conhecimento acusação de homicídio (agora parece que se trata de agressão à integridade física de que resultou a morte) contra 3 inspetores deste serviço e processos disciplinares a outros 9 pela morte de Ihor Homeniuk, tem ignorado os apelos dos partidos, BE, CDS, PSD e PCP, para que esta temática seja debatida na Assembleia da República (AR).

Na predita RCM é invocada alínea g) do artigo 199.º da Constituição que, no entendimento do Governo, lhe permite fazer este tipo de reorganização no âmbito das suas “competências administrativas” sem passar pela AR. Não obstante, André Coelho de Lima afiança:

“Fica claro que, muito embora se trate de uma área de soberania, o Governo pretende fazer a reforma do SEF por Decreto-Lei e, portanto, nas costas do Parlamento. Fica também claro que o governo pretende alterar a Lei de Segurança Interna sem o debater na Assembleia da República, o que é inédito desde 2008.”.

Mesmo assim, os partidos podem obrigar o Governo a submeter-lhes esta decisão, requerendo a apreciação parlamentar, medida que o PCP, o BE e o PSD não descartam poderem vir a utilizar, logo que seja conhecido o diploma. Dispõem de 30 dias após a publicação do decreto-lei para apresentar tal requerimento. E do debate pode resultar que tudo ou nada fique travado. Pode-se revogar, alterar parcialmente ou aprovar como veio do Governo.

As funções até agora confiadas ao SEF vão ficar repartidas por 5 entidades: o SEA (Serviço de Estrangeiros e Asilo), o IRN (Instituto de Registos e Notariado), a GNR, a PJ e a PSP. Nas forças de segurança ficam as competências policiais, como controlo de fronteiras e investigação criminal – que o Governo quis separar das administrativas, como os pedidos de residência e asilo, a ser tratados pelo SEA; e a emissão de passaportes que, juntamente com as renovações das autorizações de residência – até agora fortes fontes de receita (milhões de euros anuais, segundo fonte sindical) – que passam para o IRN, tutelado pelo Ministério da Justiça. Sustenta-se o reforço da “dimensão de intervenção humanista que esta separação de áreas favorecerá”. Ora, não entendo em que o IRN, GNR, PSP e PJ sejam mais humanistas que o SEF. As práticas humanistas ancoram-se na formação e escoram-se na vigilância, fiscalização, avaliação e sanção.  

Vistas as coisas em termos mais específicos, caberá ao SEA, na dependência do Ministro da Administração Interna, a responsabilidade pela atribuição de autorizações de residência a estrangeiros e pela concessão de asilo. Ao IRN, na dependência do Ministério da Justiça, será atribuída a emissão de passaportes e de renovação de autorizações de residência, pelo que, na AR, o deputado do PCP António Filipe ironizou com a intenção do governo de “humanizar” estas funções, lembrando as “longas esperas” a que os cidadãos portugueses são sujeitos “para tratar dos cartões de cidadão no IRN”. À PJ ficará reservada toda a investigação criminal do SEF, cuja competência já lhe estava atribuída: crimes de auxílio à imigração ilegal, associação de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e de outros com estes conexos. À PSP competirá vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras aeroportuárias e terminais de cruzeiros e agir no âmbito de processos de afastamento e expulsão de estrangeiros. E à GNR incumbirá vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras marítimas e terrestres e tratar, como a PSP, do afastamento e da expulsão de estrangeiros, bem como assegurar a realização de controlos móveis e de operações conjuntas com as polícias portuguesas e congéneres espanhóis.

***

O Executivo, para legislar sobre a matéria em referência, invoca o art.º 199.º da CRP, que estabelece a competência do Governo, no exercício de funções administrativas, a saber: elaborar os planos, com base nas leis das respetivas grandes opções, e fazê-los executar; fazer executar o Orçamento do Estado; fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis; dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil e militar, superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração autónoma; praticar todos os atos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado e de outras pessoas coletivas públicas; defender a legalidade democrática; e praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas.

Não há aqui nada que refira a competência do Governo em matéria legislativa, quando a RCM fala em “orientações de política legislativa para a reestruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”. Se interpretarmos à letra o artigo, o Governo será competente para tudo e mais alguma coisa. Basta pegar na competência referente à defesa da “legalidade democrática”. E, se olharmos para a alínea g) – “praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas” –, é de questionar em que se destaca o SEF nas “promoção do desenvolvimento económico-social” e na “satisfação das necessidades coletivas”. E não se trata de mera atividade regulamentar.

Depois, não se percebe como a segurança da República, constituindo uma função de soberania, envolvendo várias entidades e exigindo forte articulação com entidades internacionais, não há de passar pelo debate parlamentar. A este respeito, há que anotar que o Governo enferma de dualidade de critérios. Em relação à segurança quer fazer o que enuncia. Porém, em relação à defesa fia mais fino, o aludido comunicado do Conselho de Ministros refere que foram aprovadas duas propostas de lei que visam a reforma do comando superior das Forças Armadas, sendo que a nova Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aliada à alteração da Lei de Defesa Nacional (LDN), dá continuidade às reformas anteriores, procurando garantir as condições para que as Forças Armadas sejam capazes de responder aos desafios atuais e futuros, gerando ganhos de eficácia no produto operacional das Forças Armadas (FA). Mais refere que os diplomas a apresentar à AR reforçam o papel do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e do Estado-Maior-General das Forças Armadas no comando das FA em todos os assuntos de natureza militar, mantendo-se os chefes dos ramos como conselheiros do Ministro da Defesa Nacional, no âmbito do Conselho Superior Militar e relacionando-se diretamente com o Ministro nos aspetos relacionados com a execução de projetos no âmbito da lei de programação militar e da lei de infraestruturas militares, bem como nas matérias administrativas e de execução orçamental que resultem da lei.

É certo que a legislação sobre defesa nacional e bases gerais da organização, funcionamento, reequipamento e disciplina das FA é da reserva absoluta da AR (alínea d do art.º 166.º), mas também o é o regime das forças de segurança (vd alínea u).

Por isso, debata-se a reestruturação do SEF na AR através de proposta de lei.

2021.04.15 – Louro de Carvalho

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