A Resolução do Conselho de
Ministros (RCM),
aprovada no passado dia 8 de abril e publicada a 14 sob o n.º 43/2021, aprova as orientações de política legislativa para a
reestruturação do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), determinando a criação do SEA (Serviço de
Estrangeiros e Asilo), que sucede
ao mesmo. Dito de outra forma, talvez melhor: determina a extinção do SEF,
criado em 1986, e reparte as competências do serviço a extinguir por cinco
entidades.
De acordo com
o Comunicado do Conselho de Ministros, de 8 de abril, “a medida concretiza o
definido no Programa do Governo, através da clara separação orgânica entre as
funções policiais e administrativas de autorização e documentação de
imigrantes, reconfigurando a forma como os serviços públicos lidam com o
fenómeno da imigração, adotando uma abordagem mais humanista e menos
burocrática, em consonância com o objetivo de atração regular e ordenada de
mão-de-obra para o desempenho de funções em diferentes setores de
atividade.
Nos termos da referida RCM, as
bases de dados de informações policiais detidas pelo SEF passam a ser
controladas pelo SEA na “dependência do membro do governo responsável pela área
da administração interna”. Ora, porque o SEA será um organismo de cariz
administrativo, para tratar de autorizações de residência e pedidos de asilo,
sem qualquer autoridade de órgão de polícia criminal, a única que permite aceder
a estas bases de dados, a questão está a causar incómodo entre as forças de
segurança que devem herdar as competências policiais do SEF, mesmo que, tal
como é escrito na RCM, o SEA “em articulação com a Rede Nacional de Segurança
Interna (RNSI)” garanta “o acesso a todas as
entidades legalmente habilitadas para tal”. E o gabinete do Ministro da
Administração Interna ainda não tem uma resposta sobre o enquadramento legal
que sustenta esta medida.
Em todo o caso, tais bases de
dados, que têm sido uma das grandes mais-valias do SEF, sê-lo-ão para GNR, PJ e
PSP nas competências que lhes são destinadas, visto que permitem monitorizar as
entradas e saídas de estrangeiros, a sua localização e permanência em território
nacional: o SIS II – Sistema de Informações Schengen, que indica as pessoas que
são alvo de restrições de circulação no espaço Schengen e documentos
extraviados ou com problemas; o VIS – Sistema de Informação de Vistos da União
Europeia (UE); o SNV – Sistema Nacional de
Vistos; o Eurodac, onde estão todos os registos de impressões digitais partilhadas
com as polícias da UE; o APIS – Sistema de Informação Antecipada de Passageiros,
que regista as informações que as transportadoras aéreas facultam ao SEF sobre
os estrangeiros que transportam para território nacional; o SIBA – sistema que
monitoriza o registo de estrangeiros em unidades hoteleiras nacionais; o
Passe-Rapid, que regista as entradas e saídas de estrangeiros em postos de
fronteira; o Sistema de Passaportes, que regista todos os dados destes
documentos; e o Sirene, que neste momento está no Ponto Único de Contacto do
Sistema de Segurança Interna (SSI), onde também está alojada informação de suspeitos
estrangeiros, documentos e viaturas em circulação na UE e já é partilhado pelas
forças e pelos serviços de segurança.
Porém, Acácio Pereira, presidente
do SCFIC (Sindicato
da Carreira de Fiscalização e Investigação Criminal), que representa os inspetores do
SEF, considera “um autêntico golpe de Estado” a colocação destas bases de dados
nas mãos de civis, o que significa dar ao Governo “acesso por via
administrativa ao que não deve ter”. Também André Coelho de Lima, coordenador para
a Segurança Interna do Grupo Parlamentar do PSD, reage na mesma linha vincando:
“As bases de
dados ficarem no SEA é apenas mais uma enorme incongruência de uma reforma
cujas consequências o Governo não está, com certeza, a prever bem. O SEA deixará
de partilhar a relevante informação que detém e continuará a deter na medida em
que não poderá participar na RNSI, uma vez que a ela apenas acedem forças
policiais.”.
Acresce que, no dizer do
deputado, “internacionalmente é igualmente grave a consequência já que o SEA
deixará de poder participar na Frontex e na Europol uma vez que essas
organizações admitem apenas entidades policiais”.
A reestruturação do SEF (eufemismo
para dizer extinção),
anunciada após o conhecimento acusação de homicídio (agora
parece que se trata de agressão à integridade física de que resultou a morte) contra 3 inspetores deste
serviço e processos disciplinares a outros 9 pela morte de Ihor Homeniuk, tem ignorado
os apelos dos partidos, BE, CDS, PSD e PCP, para que esta temática seja
debatida na Assembleia da República (AR).
Na predita RCM é invocada alínea
g) do artigo 199.º da Constituição que, no entendimento do Governo, lhe permite
fazer este tipo de reorganização no âmbito das suas “competências administrativas”
sem passar pela AR. Não obstante, André Coelho de Lima afiança:
“Fica
claro que, muito embora se trate de uma área de soberania, o Governo pretende fazer
a reforma do SEF por Decreto-Lei e, portanto, nas costas do Parlamento. Fica também
claro que o governo pretende alterar a Lei de Segurança Interna sem o debater
na Assembleia da República, o que é inédito desde 2008.”.
Mesmo assim, os partidos podem
obrigar o Governo a submeter-lhes esta decisão, requerendo a apreciação
parlamentar, medida que o PCP, o BE e o PSD não descartam poderem vir a
utilizar, logo que seja conhecido o diploma. Dispõem de 30 dias após a publicação
do decreto-lei para apresentar tal requerimento. E do debate pode resultar que
tudo ou nada fique travado. Pode-se revogar, alterar parcialmente ou aprovar
como veio do Governo.
As funções até agora confiadas ao
SEF vão ficar repartidas por 5 entidades: o SEA (Serviço de
Estrangeiros e Asilo),
o IRN (Instituto
de Registos e Notariado),
a GNR, a PJ e a PSP. Nas forças de segurança ficam as competências policiais,
como controlo de fronteiras e investigação criminal – que o Governo quis
separar das administrativas, como os pedidos de residência e asilo, a ser
tratados pelo SEA; e a emissão de passaportes que, juntamente com as renovações
das autorizações de residência – até agora fortes fontes de receita (milhões
de euros anuais, segundo fonte sindical)
– que passam para o IRN, tutelado pelo Ministério da Justiça. Sustenta-se o
reforço da “dimensão de intervenção humanista que esta separação de áreas favorecerá”.
Ora, não entendo em que o IRN, GNR, PSP e PJ sejam mais humanistas que o SEF. As
práticas humanistas ancoram-se na formação e escoram-se na vigilância, fiscalização,
avaliação e sanção.
Vistas as coisas em termos mais
específicos, caberá ao SEA, na dependência do Ministro da Administração
Interna, a responsabilidade pela atribuição de autorizações de residência a estrangeiros
e pela concessão de asilo. Ao IRN, na
dependência do Ministério da Justiça,
será atribuída a emissão de passaportes e de renovação de autorizações de
residência, pelo que, na AR, o deputado do PCP António Filipe ironizou com a
intenção do governo de “humanizar” estas funções, lembrando as “longas esperas”
a que os cidadãos portugueses são sujeitos “para tratar dos cartões de cidadão
no IRN”. À PJ ficará reservada toda a investigação criminal do SEF, cuja competência
já lhe estava atribuída: crimes de auxílio à imigração ilegal, associação de auxílio
à imigração ilegal, tráfico de pessoas e de outros com estes conexos. À PSP
competirá vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras aeroportuárias e
terminais de cruzeiros e agir no âmbito de processos de afastamento e expulsão
de estrangeiros. E à GNR incumbirá vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras
marítimas e terrestres e tratar, como a PSP, do afastamento e da expulsão de
estrangeiros, bem como assegurar a realização de controlos móveis e de
operações conjuntas com as polícias portuguesas e congéneres espanhóis.
***
O Executivo, para legislar sobre
a matéria em referência, invoca o art.º
199.º da CRP, que estabelece a competência do Governo, no exercício de
funções administrativas, a saber: elaborar os planos, com base nas leis das
respetivas grandes opções, e fazê-los executar; fazer executar o Orçamento do
Estado; fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis; dirigir os
serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil e militar, superintender
na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração
autónoma; praticar todos os atos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários
e agentes do Estado e de outras pessoas coletivas públicas; defender a
legalidade democrática; e praticar todos os atos e tomar todas as providências
necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das
necessidades coletivas.
Não há aqui nada que refira a
competência do Governo em matéria legislativa, quando a RCM fala em “orientações de política legislativa para a reestruturação
do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”. Se interpretarmos à letra o artigo, o
Governo será competente para tudo e mais alguma coisa. Basta pegar na
competência referente à defesa da “legalidade democrática”. E, se olharmos para
a alínea g) – “praticar
todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do
desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas” –,
é de questionar em que se destaca o SEF nas “promoção do desenvolvimento económico-social”
e na “satisfação das necessidades coletivas”. E não se trata de mera atividade regulamentar.
Depois, não se percebe como a
segurança da República, constituindo uma função de soberania, envolvendo várias
entidades e exigindo forte articulação com entidades internacionais, não há de passar
pelo debate parlamentar. A este respeito, há que anotar que o Governo enferma de
dualidade de critérios. Em relação à segurança quer fazer o que enuncia. Porém,
em relação à defesa fia mais fino, o aludido comunicado do Conselho de
Ministros refere que foram aprovadas duas
propostas de lei que visam a reforma do comando superior das Forças Armadas,
sendo que a nova Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aliada à alteração da Lei de Defesa Nacional (LDN), dá continuidade às reformas anteriores, procurando
garantir as condições para que as Forças Armadas sejam capazes de responder aos
desafios atuais e futuros, gerando ganhos de eficácia no produto operacional
das Forças Armadas (FA). Mais refere que os diplomas a apresentar à AR reforçam o papel do Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas e do Estado-Maior-General das Forças
Armadas no comando das FA em todos os assuntos de natureza militar, mantendo-se
os chefes dos ramos como conselheiros do Ministro da Defesa Nacional, no âmbito
do Conselho Superior Militar e relacionando-se diretamente com o Ministro nos
aspetos relacionados com a execução de projetos no âmbito da lei de programação
militar e da lei de infraestruturas militares, bem como nas matérias
administrativas e de execução orçamental que resultem da lei.
É certo
que a legislação sobre defesa nacional e bases gerais da organização,
funcionamento, reequipamento e disciplina das FA é da reserva absoluta da AR (alínea
d do art.º 166.º), mas também o é o regime das forças
de segurança (vd alínea u).
Por isso,
debata-se a reestruturação do SEF na AR através de proposta de lei.
2021.04.15 –
Louro de Carvalho
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