quinta-feira, 29 de abril de 2021

“Os espaços litúrgicos dos primeiros cristãos”

 

Muitos contestam a atual profusão de templos (basílicas e catedrais, igrejas, santuários capelas…) aduzindo que os primeiros cristãos faziam as suas reuniões formativas e celebrativas em casas particulares. Esquecem provavelmente que, por um lado, era preciso romper com a tradição cultual umbilicalmente conexa com o Templo de Jerusalém – que, aliás, os primeiros cristãos frequentavam e onde os apóstolos iam rezar e ensinavam (cf Lc 24,53; At 2,46; 3,1-26; 5,12-16) – para implantarem o culto “em espírito e verdade” (Jo 4,23.24) e, por outro, o facto de ainda não terem as comunidades cristãs o reconhecido estatuto de religião tolerada pela sociedade coeva.

Espero, assim, que o livro “Os espaços litúrgicos dos primeiros cristãos. Fontes literárias dos primeiros quatro séculos”, de Isidro Lamelas (docente na Universidade Católica Portuguesa), que o Secretariado Nacional de Liturgia acaba de publicar, faça luz sobre o tema.

No dizer do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), o autor “já nos habitou a este exercício de ‘escavar’ nas fontes e nas ‘origens’ cristãs” e o livro introduz-nos no tema “com generosa documentação, na realidade arquitetónica e litúrgica dos primeiros cristãos” e documenta “a primeira evolução dos lugares de culto cristão, numa espécie de pré-história da arquitetura cristã, que abrange os primeiros quatro séculos depois que o Verbo Se fez carne”.

Desde que o Verbo habita entre nós, os humanos habitam o mundo de forma nova, ou seja, o lugar de Deus coincide, por Cristo, com a comunidade reunida (cf Mt 18,20). Nestes termos, lugar em que a comunidade dos batizados se encontre é chamado “domus Dei e cada homem ou mulher, no seu lugar e vida concreta é pedra viva desse edifício sempre em construção. O facto de os cristãos usarem o mesmo nome para designar a assembleia que se reúne na liturgia e o espaço físico-arquitetónico onde ela se congrega mostra como a liturgia e a arquitetura cristãs andam sempre de mãos dadas. Assim, mais do que de arquitetura sagrada ou religiosa, deveria falar-se, sobretudo para os primeiros séculos, de arquitetura litúrgica, pois, “é parte constituinte da liturgia a edificação da Igreja, tanto enquanto comunidade cultual, como enquanto lugar e ambiência onde decorrem as ações rituais da liturgia” (vd SPNC).

Pelo menos desde o Tertuliano (séc. II), o termo “ecclesia, além da comunidade reunida para o culto, designa a “casa do culto”. Isto, porque “o edifício significa a Igreja; e a igreja-edifício é expressão duma construção espiritual feita de pedras vivas. A metonímia que identifica a assembleia celebrante com o espaço que a abriga é evidenciada no discurso mistagógico, ou melhor, a própria mistagogia é uma forma de ‘edificar’ a igreja com ‘pedras’ visíveis que participam daquele duplo significado. Santo Agostinho explica-o bem:

Nós chamamos ‘igreja’ a basílica, na qual estão reunidos os fiéis, os únicos aos quais se aplica com propriedade o termo ‘igreja’; de modo que, mediante o termo ‘igreja’, isto é, ‘os fiéis’ nessa contidos, indicamos o lugar que os contém... Por isso, a basílica não deixa de se chamar ‘igreja’, ainda quando nela não estão os fiéis.” (Carta 190,5,19).

Como lembra Dom José Manuel Cordeiro, no Prefácio ao livro, “o lugar da celebração (igreja) é muito mais do que um edifício, é a casa para a assembleia do povo de Deus” (domus ecclesiae = casa da Igreja). E, como refere o ilustre prelado, o sinal do templo exprime “os vários momentos e modos da presença de Deus no meio dos homens, desde o templo cósmico do Éden à terra prometida, da tenda do deserto ao templo de Jerusalém, da humanidade de Cristo às casas da Igreja e a cada um dos seus membros”, pelo que “a reforma litúrgica apresenta o significado da igreja-edifício como sinal visível do único templo que é o corpo pessoal de Cristo e o seu corpo místico, a Igreja, que celebra em determinados lugares o culto em espírito e verdade”. Determinante é a ordenação do espaço sagrado em função do trinómio altar, ambão e sede. À volta destes três elementos congrega-se a assembleia: comunidade de escuta da Palavra de Deus, comunidade orante e comunidade que vive dos sacramentos.

Nos dois primeiros séculos, os cristãos não dispunham de lugares fixos de culto para a ação litúrgica. O Batismo realizava-se onde houvesse água. Para escutar a Palavra de Deus e celebrar a Eucaristia serviam as salas amplas de casas particulares, sendo que, em muitos casos, os seus donos as destinavam em exclusivo para o efeito. Surgem, pois, as “domus ecclesiae  adaptadas às necessidades das assembleias cristãs e onde se inicia “um processo de ritualização e sacralização que leva a reservar determinada sala, mesa ou cálice usados por um apóstolo ou outra testemunha da fé”. Tais imóveis vão-se estruturando em resposta às várias necessidades da comunidade: de acolhimento, litúrgico-celebrativa, caritativa, residência do responsável da comunidade. “Os vários lugares são articulados entre si e o mais importante está reservado para a ceia do Senhor(Dom José Cordeiro).

Com a progressiva estruturação da Liturgia e com o crescimento das comunidades, mormente a partir do século III, tornaram-se necessários espaços maiores e ganha relevância o espaço da celebração, pelo que surgem as basílicas. O termo “ecclesia (igreja e casa da igreja) ou “basílica(casa do Rei: o rei é Cristo) é usado para indicar o lugar da reunião dos fiéis. E, com Constantino, a imagem exterior do lugar do culto espelha a grandeza da sua verdade interior. “Passa-se assim do facto celebrativo ao lugar da celebração: o enriquecimento do lugar e a sua decoração, que se faz mistagogia, pretendem que ele seja digno do Rei divino que aí mora – a domus Dei, a domus Regis ou simplesmente basílica”. A sua dedicação é festa do povo de Deus, “uma manifestação esplêndida da igreja saída da perseguição” (Dom José Cordeiro).

Como se disse e a reforma litúrgica conciliar recuperou, a ordenação do espaço sagrado em função do trinómio altar, ambão e sede suscita a congregação duma assembleia que escuta, ora e vive dos sacramentos. A igreja é a casa da Igreja, a morada da comunidade convocada.

Segundo Santo Agostinho, “a fé não se preocupa com examinar a beleza dos elementos deste edifício, mas com a grande beleza do homem interior, da qual procedem estas obras de amor”, mas “o Senhor recompensará, por isso, os seus fiéis que realizaram tais obras, tão alegre e devotamente, de modo a acompanhá-los na edificação da sua própria construção, para a qual contribuem como pedras vivas a que a fé deu forma, a esperança deu consistência e a caridade deu perfeição(Santo Agostinho, Sermão, 337).

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Em cada época da história do cristianismo, as pessoas souberam fazer-se presentes no espaço litúrgico e as igrejas eram construídas de forma diferente. Vejamo-lo sucintamente.

Do século I ao século III. No começo do cristianismo não havia locais reservados ao culto; as celebrações eram realizadas nas casas dos fiéis. Com o tempo, as casas tornaram-se pequenas para abrigar as pessoas. Por isso, compram-se casas maiores e dá-se-lhes uma divisão capaz de acolher as celebrações. Tais casas são conhecidas como “domus ecclesiae(casa da Igreja). Nelas os cristãos repetiam a Ceia de Jesus (o partir do pão) e eram enviados (missi) para testemunhar a fé na vida quotidiana. A Igreja é antes de mais, as pessoas reunidas (a palavra “igreja” significa congregação, assembleia). Por isso, temos a “casa da Igreja” e, por metonímia a “igreja” (templo).

É de registar que a liturgia, para os primeiros cristãos, não acontecia num único local, como hoje acontece. Os primeiros cristãos caminhavam para os diversos lugares de reunião: o local da Palavra, o local da Eucaristia, o local do Batismo. Por isso, hoje há o movimento do sacerdote para o local da “Palavra”, para o da cadeira da “presidência”, para o “do batismo”, entre outros.

É de recordar que, em tempo de feroz perseguição, a Celebração, muitas vezes, era feita às escondidas. Porque era usual a cremação dos cadáveres em Roma e os cristãos pugnavam pela inumação, proibida no centro das cidades, usando do direito de associação para fins funerários, construíam cemitérios subterrâneos fora da Cidade (catacumbas: uma série delas), onde sepultavam os seus mortos apondo nas lápides símbolos cristãos, prestavam culto aos mártires e, muitas vezes, celebravam os diversos atos de culto, escapando às investidas do exército Romano.

Séculos IV e V. Com o Édito de Milão (ano 313), Constantino concede a liberdade religiosa a todo Império. E, em 380, com o Édito de Tessalónica, Teodósio declara o cristianismo a religião oficial do Império. Com esses episódios da História, há certa paz nas perseguições aos cristãos e o Imperador passa a construir grandes templos para que os cristãos possam lá reunir-se.

As pequenas casas começam a ser trocadas pelas grandes igrejas, as basílicas, que são edificadas a pensar nas basílicas civis romanas (lugar da presença do basileu – chefe como se fosse o rei). Mas, para diferenciar as basílicas cristãs (usadas para celebrações) das basílicas civis, houve adaptações: no lugar ocupado pelo magistrado, fica o bispo; no lugar da deusa da justiça, fica o altar; no lugar das tribunas, fica a mesa da Palavra. E acrescentam-se: o átrio (hall coberto onde havia água para se servir e lavar, também usado para o batismo); a abside (abóboda arredondada que se projeta para fora da estrutura geral da igreja – nela fica a figura de Cristo Mestre e Pastor).

Não há imagens além da cruz, que aparece como “árvore da vida”. E Cristo não é o sofredor, mas o sacerdote entregue ao Pai, olhos abertos, não morto.

Do século V aos séculos XV/XVI. Na Idade Medieval (10 séculos – 1.000 anos), as transformações na humanidade foram enormes, foram descobertas e aplicadas muitas técnicas de construção e reordenou-se o espaço litúrgico segundo categorias alegorísticas. Assim, o altar representa o calvário, os gestos e movimentos do celebrante são interpretados em relação à Paixão de Jesus (sofrimento e morte) e, ao inclinar-se, representa Jesus a inclinar a cabeça na cruz; a liturgia torna-se exclusiva do clero e os fiéis alimentam a espiritualidade com as devoções privadas (o rosário com 150 Ave-Marias é o saltério dos pobres, que não sabem latim e não são admitidos na liturgia coral dos monges).

Na arte românica (séc. XI-XIII), a pedra foi empregada na construção e o telhado de madeira foi trocado por abóbadas. A basílica românica é luminosa; o altar é único e situa-se no centro do transepto; e todas as pessoas estão circunstantes (ao redor), num movimento dialógico-circular, indicando comunicação na comunidade.

Na arte gótica (séc. XII ao XVI), fez-se sentir a mudança de mentalidade surgida no final do 1.º milénio vindo a provocar a mudança no estilo arquitetónico e artístico. Do românico passa-se ao gótico. A arquitetura gótica possibilita a ampliação na altura das construções aprimorando o espaço através do vitral para criar a ilusão da tridimensionalidade. As igrejas erguem-se e tornam-se mais escuras e esguias, exprimindo a relação vertical da devoção pessoal-privada.

Doa séculos XV ao século XVIII (Idade Moderna). É tempo do barroco, com o excesso decorativo, emoção, linhas contorcidas, movimento, exuberância, busca de efeitos que sensibilizem e criem impactos, sobretudo, através da luz e da ilusão ótica. Os espaços são carregados de imagens, anjos, santos, altares e pinturas ilusionistas. É tempo da Reforma Tridentina (contrarreforma), impulsionada pelo Concílio de Trento (1545- 1563). O Concílio vem em defesa e consolidação da fé Católica. Porém, no referente à liturgia, o altar, tornado suporte de imagens, é deslocado para a parede da abside; o presidente dá as costas à assembleia e o povo de participante passa a assistente. Aumentam os pedidos de celebrações de Missas, pelo que se multiplicam os altares nas naves laterais para a celebração das missas privadas. O altar está distante do povo até se constituírem verdadeiras barreiras com paredes, balaustradas e elevação do mesmo (o padre sobre os degraus) para se aceder aos túmulos dos santos e mártires colocados debaixo do altar (criptas). Os santos tomam o lugar de Cristo. Prevalece a espiritualidade individual e intimista.

Do século XVIII ao século XXI (Idade Contemporânea). O estilo rococó (séc. XVIII ao XIX), surgido na França, vindo do Barroco, torna-se um pouco mais leve e intimista. De início era usado para decorações de interior. As principais caraterísticas são: cores claras; tons pastel e dourados; representação de alegorias; estilo decorativo; e texturas suaves.

Entretanto, após o cansaço gerado pelos neoestilos e o exagero barroco e rococó, surge o “Movimento Litúrgico” originado em grupos que pensam o futuro da liturgia e desejam que as comunidades redescubram o gosto pela celebração e pela participação ativa. O papa São Pio X, através da exortação ‘Tra le Solecitudini(22 de novembro 1903), revela a preocupação por “uma participação ativa nos sagrados mistérios e na oração pública e solene da Igreja”. Busca-se um espaço para a celebração sóbrio e capaz de manter os fiéis voltados para o núcleo da celebração. Os momentos devocionais têm lugar, mas fora da celebração comunitária e dos sacramentos.

Depois, o “Concílio Vaticano II(1962-1965) viu a necessidade da Reforma na Liturgia. E a Constituição “Sacrosanctum Concilium”, no ano de 1963, mostra o desejo de retorno às origens da fé celebrada com base e centro no Mistério Pascal de Jesus e com a participação ativa da assembleia resgatando o sentido da celebração comunitária. Por isso, o altar desloca-se da abside e novamente volta-se para o povo; a participação é melhorada pelo canto e pelas orações na língua de cada país; e é fomentada a concelebração em detrimento da missa em privado.

Assim, o “Espaço Litúrgico” atual, mais do que o lado artístico e estético, configura uma nova hermenêutica da Liturgia. Este espaço revela o Cristo glorioso na sua totalidade: cabeça e membros. A ação que se desenvolve tem em conta a dinâmica de fé que leva à participação.

Divide-se o Espaço Litúrgico atual em três partes “principais” e três partes “complementares”. As três partes principais são: o presbitério (com: o altar, símbolo de Cristo, para a Eucaristia; o ambão, para a proclamação da Palavra; a cadeira presidencial, para o sacerdote que preside em nome de Cristo; e a cruz, símbolo da entrega de Jesus para nossa redenção), a nave (com a bancada para a assembleia, ladeada pelas imagens e roteiro da via sacra) e o batistério (com a pia e o círio pascal). E as três partes complementares são: a capela do Santíssimo (em cujo sacrário se guarda a reserva eucarística, que se adora e leva aos doentes), a sacristia (que guarda as alfaias litúrgicas, se paramentam os ministros e donde parte o cortejo processional) e o átrio (lugar de acolhimento e de antecâmara para o espaço litúrgico interior). Todas estas partes devem estar em harmonia para formarem o Espaço Litúrgico e serem locais de encontro com o sagrado.

***

Esperamos que o predito livro faça luz para podermos ver se estamos perante uma genuína refontalização ao Evangelho e vida dos primeiros cristãos e, por outro lado, seguros de não termos desperdiçado as verdadeiras descobertas cristãs espirituais e eclesiais – de beleza, simplicidade e dignidade – que a História da Igreja pôs à nossa disposição. 

2021.04. 29 – Louro de Carvalho

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