Muitos contestam a atual profusão de templos (basílicas e catedrais,
igrejas, santuários capelas…) aduzindo que os primeiros cristãos faziam as suas reuniões formativas e
celebrativas em casas particulares. Esquecem provavelmente que, por um lado,
era preciso romper com a tradição cultual umbilicalmente conexa com o Templo de
Jerusalém – que, aliás, os primeiros cristãos frequentavam e onde os apóstolos
iam rezar e ensinavam (cf Lc 24,53; At 2,46; 3,1-26; 5,12-16) – para implantarem o culto “em espírito e
verdade” (Jo 4,23.24) e, por outro, o facto de ainda não terem as comunidades cristãs o
reconhecido estatuto de religião tolerada pela sociedade coeva.
Espero, assim, que o livro “Os
espaços litúrgicos dos primeiros cristãos. Fontes literárias dos primeiros
quatro séculos”, de Isidro Lamelas (docente na Universidade
Católica Portuguesa), que o Secretariado Nacional de Liturgia acaba de publicar, faça luz sobre
o tema.
No dizer do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da
Cultura), o autor “já nos
habitou a este exercício de ‘escavar’ nas fontes e nas ‘origens’ cristãs” e o
livro introduz-nos no tema “com generosa documentação, na realidade
arquitetónica e litúrgica dos primeiros cristãos” e documenta “a primeira
evolução dos lugares de culto cristão, numa espécie de pré-história da
arquitetura cristã, que abrange os primeiros quatro séculos depois que o Verbo
Se fez carne”.
Desde que o Verbo habita entre nós, os humanos habitam o mundo de forma
nova, ou seja, o lugar de
Deus coincide, por Cristo, com a comunidade reunida (cf Mt 18,20). Nestes termos, lugar em que a comunidade dos batizados se encontre é
chamado “domus Dei”
e cada homem ou mulher, no seu lugar e vida concreta é pedra viva desse
edifício sempre em construção. O facto de os cristãos usarem o mesmo nome para designar a assembleia
que se reúne na liturgia e o espaço físico-arquitetónico onde ela se congrega
mostra como a liturgia e a arquitetura cristãs andam sempre de mãos dadas. Assim, mais do que de arquitetura sagrada
ou religiosa, deveria falar-se, sobretudo para os primeiros séculos, de arquitetura
litúrgica, pois, “é parte constituinte da liturgia a edificação da Igreja,
tanto enquanto comunidade cultual, como enquanto lugar e ambiência onde
decorrem as ações rituais da liturgia” (vd SPNC).
Pelo menos desde o Tertuliano (séc. II), o termo “ecclesia”, além da comunidade reunida para o
culto, designa a “casa do culto”. Isto, porque “o edifício significa a Igreja;
e a igreja-edifício é expressão duma construção espiritual feita de pedras
vivas. A metonímia que identifica a assembleia celebrante com o espaço que a
abriga é evidenciada no discurso mistagógico, ou melhor, a própria mistagogia é
uma forma de ‘edificar’ a igreja com
‘pedras’ visíveis que participam daquele duplo significado. Santo Agostinho explica-o
bem:
“Nós chamamos ‘igreja’ a basílica,
na qual estão reunidos os fiéis, os únicos aos quais se aplica com propriedade
o termo ‘igreja’; de modo que, mediante o termo ‘igreja’, isto é, ‘os fiéis’
nessa contidos, indicamos o lugar que os contém... Por isso, a basílica não
deixa de se chamar ‘igreja’, ainda quando nela não estão os fiéis.” (Carta
190,5,19).
Como lembra Dom José Manuel Cordeiro, no Prefácio ao
livro, “o lugar da celebração (igreja) é muito mais do que um edifício, é a casa para a
assembleia do povo de Deus” (domus ecclesiae = casa da Igreja). E, como refere o ilustre prelado, o sinal do templo exprime “os vários
momentos e modos da presença de Deus no meio dos homens, desde o templo cósmico
do Éden à terra prometida, da tenda do deserto ao templo de Jerusalém, da
humanidade de Cristo às casas da Igreja e a cada um dos seus membros”, pelo que
“a reforma litúrgica apresenta o significado da igreja-edifício como sinal
visível do único templo que é o corpo pessoal de Cristo e o seu corpo místico,
a Igreja, que celebra em determinados lugares o culto em espírito e verdade”. Determinante é a ordenação
do espaço sagrado em função do trinómio altar, ambão e sede. À volta destes
três elementos congrega-se a assembleia: comunidade de escuta da Palavra de
Deus, comunidade orante e comunidade que vive dos sacramentos.
Nos dois primeiros séculos, os cristãos não dispunham de lugares fixos de
culto para a ação litúrgica. O Batismo realizava-se onde houvesse água. Para
escutar a Palavra de Deus e celebrar a Eucaristia serviam as salas amplas de
casas particulares, sendo que, em muitos casos, os seus donos as destinavam em exclusivo
para o efeito. Surgem, pois, as “domus ecclesiae” adaptadas às necessidades das
assembleias cristãs e onde se inicia “um
processo de ritualização e sacralização que leva a reservar determinada sala,
mesa ou cálice usados por um apóstolo ou outra testemunha da fé”. Tais
imóveis vão-se estruturando em resposta às várias necessidades da
comunidade: de acolhimento, litúrgico-celebrativa, caritativa, residência do
responsável da comunidade. “Os vários
lugares são articulados entre si e o mais importante está reservado para a ceia
do Senhor” (Dom José Cordeiro).
Com a progressiva estruturação da Liturgia e com o crescimento das
comunidades, mormente a partir do século III, tornaram-se necessários espaços
maiores e ganha relevância o espaço da celebração, pelo que surgem as
basílicas. O termo “ecclesia” (igreja e casa da igreja) ou “basílica” (casa do Rei: o rei é Cristo) é usado para indicar o lugar da reunião dos fiéis. E, com Constantino, a imagem
exterior do lugar do culto espelha a grandeza da sua verdade interior. “Passa-se
assim do facto celebrativo ao lugar da celebração: o enriquecimento do lugar e
a sua decoração, que se faz mistagogia, pretendem que ele seja digno do Rei divino
que aí mora – a domus Dei, a domus Regis ou
simplesmente basílica”. A sua dedicação é festa do povo de Deus, “uma
manifestação esplêndida da igreja saída da perseguição” (Dom José Cordeiro).
Como se disse e a reforma litúrgica conciliar recuperou, a ordenação do
espaço sagrado em função do trinómio altar, ambão e sede suscita a congregação duma
assembleia que escuta, ora e vive dos sacramentos. A igreja é a casa da Igreja,
a morada da comunidade convocada.
Segundo Santo Agostinho, “a fé não se
preocupa com examinar a beleza dos elementos deste edifício, mas com a grande
beleza do homem interior, da qual procedem estas obras de amor”, mas “o Senhor recompensará, por isso, os seus fiéis
que realizaram tais obras, tão alegre e devotamente, de modo a acompanhá-los na
edificação da sua própria construção, para a qual contribuem como pedras vivas
a que a fé deu forma, a esperança deu consistência e a caridade deu perfeição”
(Santo Agostinho, Sermão, 337).
***
Em
cada época da história do cristianismo, as pessoas souberam fazer-se presentes
no espaço litúrgico e as igrejas eram construídas de forma diferente. Vejamo-lo
sucintamente.
Do
século I ao século III.
No começo do cristianismo não havia locais reservados ao culto; as celebrações
eram realizadas nas casas dos fiéis. Com o tempo, as casas tornaram-se pequenas
para abrigar as pessoas. Por isso, compram-se casas maiores e dá-se-lhes uma
divisão capaz de acolher as celebrações. Tais casas são conhecidas como “domus ecclesiae” (casa
da Igreja). Nelas os
cristãos repetiam a Ceia de Jesus (o partir do pão) e eram enviados
(missi) para testemunhar a fé na vida
quotidiana. A Igreja é antes de mais, as pessoas reunidas (a
palavra “igreja” significa congregação, assembleia). Por isso, temos a “casa da
Igreja” e, por metonímia a “igreja” (templo).
É
de registar que a liturgia, para os primeiros cristãos, não acontecia num único
local, como hoje acontece. Os primeiros cristãos caminhavam para os diversos
lugares de reunião: o local da Palavra, o local da Eucaristia, o local do
Batismo. Por isso, hoje há o movimento do sacerdote para o local da “Palavra”, para
o da cadeira da “presidência”, para o “do batismo”, entre outros.
É
de recordar que, em tempo de feroz perseguição, a Celebração, muitas vezes, era
feita às escondidas. Porque era usual a cremação dos cadáveres em Roma e os
cristãos pugnavam pela inumação, proibida no centro das cidades, usando do
direito de associação para fins funerários, construíam cemitérios subterrâneos
fora da Cidade (catacumbas: uma série delas), onde sepultavam os seus mortos
apondo nas lápides símbolos cristãos, prestavam culto aos mártires e, muitas
vezes, celebravam os diversos atos de culto, escapando às investidas do
exército Romano.
Séculos
IV e V. Com
o Édito de Milão (ano 313), Constantino concede a liberdade religiosa a todo
Império. E, em 380, com o Édito de Tessalónica, Teodósio declara o cristianismo
a religião oficial do Império. Com esses episódios da História, há certa paz
nas perseguições aos cristãos e o Imperador passa a construir grandes templos
para que os cristãos possam lá reunir-se.
As
pequenas casas começam a ser trocadas pelas grandes igrejas, as basílicas, que
são edificadas a pensar nas basílicas civis romanas (lugar
da presença do basileu – chefe como se fosse o rei). Mas, para diferenciar as
basílicas cristãs (usadas para celebrações) das basílicas civis, houve
adaptações: no lugar ocupado pelo magistrado, fica o bispo; no lugar da deusa
da justiça, fica o altar; no lugar das tribunas, fica a mesa da Palavra. E
acrescentam-se: o átrio (hall coberto onde havia água para se
servir e lavar, também usado para o batismo); a abside (abóboda arredondada
que se projeta para fora da estrutura geral da igreja – nela fica a figura de
Cristo Mestre e Pastor).
Não
há imagens além da cruz, que aparece como “árvore da vida”. E Cristo não é o
sofredor, mas o sacerdote entregue ao Pai, olhos abertos, não morto.
Do
século V aos séculos XV/XVI.
Na Idade Medieval (10
séculos – 1.000 anos),
as transformações na humanidade foram enormes, foram descobertas e aplicadas
muitas técnicas de construção e reordenou-se o espaço litúrgico segundo
categorias alegorísticas. Assim, o altar representa o calvário, os gestos e
movimentos do celebrante são interpretados em relação à Paixão de Jesus (sofrimento
e morte) e, ao
inclinar-se, representa Jesus a inclinar a cabeça na cruz; a liturgia torna-se exclusiva
do clero e os fiéis alimentam a espiritualidade com as devoções privadas (o
rosário com 150 Ave-Marias é o saltério dos pobres, que não sabem latim e não
são admitidos na liturgia coral dos monges).
Na
arte românica (séc. XI-XIII),
a pedra foi empregada na construção e o telhado de madeira foi trocado por
abóbadas. A basílica românica é luminosa; o altar é único e situa-se no centro
do transepto; e todas as pessoas estão circunstantes (ao
redor), num
movimento dialógico-circular, indicando comunicação na comunidade.
Na
arte gótica (séc. XII ao XVI), fez-se sentir a mudança de mentalidade surgida no
final do 1.º milénio vindo a provocar a mudança no estilo arquitetónico e
artístico. Do românico passa-se ao gótico. A arquitetura gótica possibilita a
ampliação na altura das construções aprimorando o espaço através do vitral para
criar a ilusão da tridimensionalidade. As igrejas erguem-se e tornam-se mais
escuras e esguias, exprimindo a relação vertical da devoção pessoal-privada.
Doa
séculos XV ao século XVIII (Idade
Moderna). É tempo do
barroco, com o excesso decorativo, emoção, linhas contorcidas, movimento,
exuberância, busca de efeitos que sensibilizem e criem impactos, sobretudo,
através da luz e da ilusão ótica. Os espaços são carregados de imagens, anjos,
santos, altares e pinturas ilusionistas. É tempo da Reforma Tridentina (contrarreforma), impulsionada pelo Concílio de
Trento (1545-
1563). O Concílio
vem em defesa e consolidação da fé Católica. Porém, no referente à liturgia, o
altar, tornado suporte de imagens, é deslocado para a parede da abside; o
presidente dá as costas à assembleia e o povo de participante passa a
assistente. Aumentam os pedidos de celebrações de Missas, pelo que se
multiplicam os altares nas naves laterais para a celebração das missas
privadas. O altar está distante do povo até se constituírem verdadeiras
barreiras com paredes, balaustradas e elevação do mesmo (o
padre sobre os degraus)
para se aceder aos túmulos dos santos e mártires colocados debaixo do altar (criptas). Os santos tomam o lugar de
Cristo. Prevalece a espiritualidade individual e intimista.
Do
século XVIII ao século XXI
(Idade
Contemporânea). O
estilo rococó (séc. XVIII ao XIX), surgido na França, vindo do Barroco, torna-se um
pouco mais leve e intimista. De início era usado para decorações de interior. As
principais caraterísticas são: cores claras; tons pastel e dourados;
representação de alegorias; estilo decorativo; e texturas suaves.
Entretanto,
após o cansaço gerado pelos neoestilos e o exagero barroco e rococó, surge o “Movimento Litúrgico” originado em grupos
que pensam o futuro da liturgia e desejam que as comunidades redescubram o
gosto pela celebração e pela participação ativa. O papa São Pio X, através da
exortação ‘Tra le Solecitudini’ (22
de novembro 1903),
revela a preocupação por “uma participação ativa nos sagrados mistérios e na
oração pública e solene da Igreja”. Busca-se um espaço para a celebração sóbrio
e capaz de manter os fiéis voltados para o núcleo da celebração. Os momentos
devocionais têm lugar, mas fora da celebração comunitária e dos sacramentos.
Depois,
o “Concílio Vaticano II” (1962-1965) viu a necessidade da Reforma na
Liturgia. E a Constituição “Sacrosanctum
Concilium”, no ano de 1963, mostra o desejo de retorno às origens da fé celebrada
com base e centro no Mistério Pascal de Jesus e com a participação ativa da
assembleia resgatando o sentido da celebração comunitária. Por isso, o altar
desloca-se da abside e novamente volta-se para o povo; a participação é
melhorada pelo canto e pelas orações na língua de cada país; e é fomentada a concelebração
em detrimento da missa em privado.
Assim,
o “Espaço Litúrgico” atual, mais do que o lado artístico e estético, configura
uma nova hermenêutica da Liturgia. Este espaço revela o Cristo glorioso na sua
totalidade: cabeça e membros. A ação que se desenvolve tem em conta a dinâmica
de fé que leva à participação.
Divide-se
o Espaço Litúrgico atual em três partes “principais” e três partes “complementares”.
As três partes principais são: o presbitério (com: o altar,
símbolo de Cristo, para a Eucaristia; o ambão, para a proclamação da Palavra; a
cadeira presidencial, para o sacerdote que preside em nome de Cristo; e a cruz,
símbolo da entrega de Jesus para nossa redenção), a nave (com a bancada para a
assembleia, ladeada pelas imagens e roteiro da via sacra) e o batistério (com
a pia e o círio pascal).
E as três partes complementares são: a capela do Santíssimo (em
cujo sacrário se guarda a reserva eucarística, que se adora e leva aos doentes), a sacristia (que
guarda as alfaias litúrgicas, se paramentam os ministros e donde parte o
cortejo processional)
e o átrio (lugar de acolhimento e de antecâmara para o espaço
litúrgico interior).
Todas estas partes devem estar em harmonia para formarem o Espaço Litúrgico e
serem locais de encontro com o sagrado.
***
Esperamos
que o predito livro faça luz para podermos ver se estamos perante uma genuína
refontalização ao Evangelho e vida dos primeiros cristãos e, por outro lado,
seguros de não termos desperdiçado as verdadeiras descobertas cristãs espirituais
e eclesiais – de beleza, simplicidade e dignidade – que a História da Igreja pôs
à nossa disposição.
2021.04.
29 – Louro de Carvalho
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