Uma das
liturgias típicas de Quinta-feira é a Missa Crismal em que se benzem o óleo dos
enfermos e o óleo dos catecúmenos e se benze o óleo para o santo crisma, bem
como os sacerdotes renovam, neste dia da instituição do sacerdócio ministerial,
as promessas a que se vincularam aquando da ordenação sacerdotal.
O Papa
Francisco, que pretende que os pastores tenham o odor das ovelhas, comentou o
passo do Evangelho de Lucas (Lc 4, 16-30) que
relata o episódio da sinagoga de Nazaré onde Jesus fez a leitura da passagem do
Profeta (Is
61,3a-6a.8b-9) que
proclama o envio do Ungido para anunciar a boa nova aos pobres, proclamar
aos prisioneiros a libertação e aos cegos a recuperação da vista,
mandar em liberdade os oprimidos e proclamar um ano favorável do
Senhor.
E o Pontífice chama a atenção para a mudança de sentimentos dos
circunstantes, que mostra a ligação do anúncio do Evangelho à perseguição e
cruz. O encanto suscitado pelas palavras de Jesus repletas de graça durou um
instante. A pergunta sobre quem era o orador, o filho de José, que podia ser de
reconhecimento da ascensão dum humilde filho da terra, significou o desdém por
aquele que foi recebido como se tendo arrogado o estatuto de Messias. Com
efeito, disse ter-se cumprido naquele dia o que fora acabado de ouvir e omitiu
o segmento “o dia da vingança do nosso Deus” que em, em Isaías, acoplado
ao “ano da graça do Senhor”. Ou seja, para fazer valer o seu estatuto, alterou
a Bíblia, o que não podia segundo a mente galilaica.
Francisco,
lembrado de que o dito de Isaías era obra do Espírito do Senhor, realça que não
foi só desta vez que os sentimentos das pessoas que ouviam a mensagem se
alterou. Já vimos que a multidão que, no Domingo de Ramos, aclamava o Rei de
Israel que entrava na sua cidade passou a gritar a sua crucifixão. E o Papa
vinca o episódio do Pentecostes neotestamentário em que os Apóstolos, cheios do
Espírito Santo, começaram a pregar o Evangelho: primeiro, todos se admiravam
por cada um os ouvir falar na sua própria língua as maravilhas de Deus; depois,
vendo que todos eram galileus, consideraram-nos embriagados
Ora, como diz
o Santo Padre, o Senhor, que às vezes se calava ou passava à outra margem, não
renunciou a desmascarar a lógica maligna escondida na aparência de bisbilhotice:
“Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em
Cafarnaum, fá-lo também aqui na tua terra”. Será o que se passa quando
Jesus está pendente da cruz e ouve: “Salvou
os outros; salve-Se a Si mesmo”. E até um dos dois ladrões clamou: “Salve-nos a nós também”.
O Senhor, que
não dialoga com o espírito maligno, responde apenas com a Escritura e refere
que Elias e Eliseu não foram aceites pelos compatriotas, mas foram-no pela
viúva fenícia, tal como o sírio leproso. Eram estrangeiros e doutra religião.
Os factos provocam o efeito da profecia de Simeão: Jesus é “sinal de
contradição” (Lc 2,34: “semeion
antilegomenon”). A palavra de Jesus faz emergir o
que a gente guarda no coração, habitualmente uma mistura de trigo e joio. Ao
ver os gestos de misericórdia do Senhor e ouvir as bem-aventuranças com as
invetivas “Ai de vós!”, vemo-nos
obrigados a optar. Os conterrâneos não acolheram a sua palavra, mas,
enfurecidos, tentaram tirar-Lhe a vida. Todavia, ainda não era “a hora”, pelo
que Ele “seguiu o seu caminho”. Não obstante, é de ter em conta, que “andam
juntas a hora do anúncio jubiloso e a hora da perseguição e da cruz”.
A boa semente
lançada no campo dá fruto – cem, sessenta, trinta por um –, mas desperta a
inveja do inimigo que obsessivamente semeia joio durante a noite (cf Mt 13,24-30.36-43). A ternura do pai de misericórdia atrai o filho pródigo para
o regresso a casa, mas suscita a indignação e o ressentimento do filho mais
velho (cf Lc 15,11-32). A generosidade do dono da vinha
concita a gratidão dos trabalhadores da última hora, mas azeda os primeiros,
que se sentem ofendidos porque o dono é bom (cf Mt 20,1-16). A proximidade de Jesus, que vai
comer com os pecadores, ganha os corações de Zaqueu, Mateus, Samaritana e a mulher
pecadora, mas provoca azedume nos que se consideram justos. A magnanimidade do
homem que manda o filho pensando que seria respeitado pelos vinhateiros,
desencadeia neles desmedida brutalidade. É tudo isto o mistério da iniquidade,
que leva a matar o Justo (cf Mt 21, 33-46).
E o Papa
recorda que Inácio de Loyola, na contemplação do Presépio, exprime esta verdade
evangélica da união do Evangelho à cruz quando observa o que fazem José e
Maria: caminham e trabalham porque o Senhor nasce na extrema pobreza e, no
final de tantos trabalhos, fome, sede, calor e frio, injúrias e afrontas, morre
na cruz. Nestes termos, com vista a tirar algum proveito para a vida
sacerdotal, Francisco partilha duas reflexões que lhe vêm à mente.
Primeiro, não
deve espantar-nos a verificação da presença da cruz na vida do Senhor no início
do seu ministério, pois estava já estava presente antes do seu nascimento na perturbação
de Maria ao ouvir o anúncio do Anjo, nas insónias de José, obrigado a abandonar
a sua esposa prometida, na perseguição de Herodes e nas agruras sofridas pela
Sagrada Família, iguais às de tantas famílias que têm de exilar-se da sua
pátria. Assim, esta realidade mostra que “a cruz não é um facto indutivo”,
produzido por uma conjuntura na vida do Senhor. Os crucificadores fazem
aparecer a cruz como dano colateral, mas ela não depende das circunstâncias: as
grandes e as pequenas cruzes da humanidade, as nossas, não dependem das
circunstâncias. Na verdade, o Senhor abraçou a cruz em toda a sua integridade, abraçou
a paixão inteira: a traição e o abandono dos amigos já desde a Última Ceia, a
prisão ilegal, o julgamento sumário, a sentença desproporcionada, a malvadez
sem motivo das bofetadas e cuspidelas. Ora, se as circunstâncias determinassem
o poder salvífico da cruz, o Senhor não abraçaria tudo. Porém, abraçou a cruz
inteira, porque esta não tolera ambiguidade nem regateio.
Como segunda
reflexão, o Papa ensina que na cruz há algo que é inerente à nossa condição
humana, de limites e fragilidades, e algo que não é inerente à nossa
fragilidade: a mordedura da serpente. Esta morde o Cristo indefeso e tenta desacreditar
toda a sua obra com o desafio do “Salva-te a ti mesmo”.
Todavia,
apesar de cruel, dolorosa e pretensamente mortal, nela aparece o triunfo de
Deus. Ao morder a carne do Senhor, como refere São Máximo, o demónio não O
envenenou (n’Ele, só
encontrou mansidão e obediência à vontade do Pai) – antes, unida ao anzol da cruz engoliu a carne do
Senhor, a mordedura “tornou-se para nós o antídoto que neutraliza o poder do
maligno”.
E infere o
Sumo Pontífice que, verdadeiramente no anúncio do Evangelho, há cruz, mas é uma
cruz que salva. E, abraçá-la com Jesus e como Ele, desde “antes” de ir pregar, “permite-nos
discernir e repelir o veneno do escândalo com que o demónio procurará
envenenar-nos quando chegar inesperadamente uma cruz na nossa vida”. Para tanto,
importa que não sejamos dos que voltam atrás (hypostolos) (cf
Heb 10,39), que não nos
escandalizemos, “porque Jesus não Se escandalizou ao ver que o seu jubiloso
anúncio de salvação aos pobres não ressoava puro, mas no meio de gritos e
ameaças de quem não queria ouvir a sua Palavra ou a queria reduzir a legalismos
(moralistas,
clericalistas…).”; não
Se escandalizou por ter de curar doentes e libertar prisioneiros no meio das
discussões e controvérsias moralistas, legalistas e clericais que suscitava
sempre que fazia o bem; não Se escandalizou por ter de dar a vista a cegos no
meio de gente que fechava os olhos para não ver ou olhava para o lado; não Se
escandalizou pelo facto da sua proclamação do ano de graça do Senhor – um ano
que é a história inteira – ter provocado escândalo público que hoje ocuparia
apenas a terceira página dum jornal de província. E “não nos escandalizamos
porque o anúncio do Evangelho não recebe a sua eficácia das nossas palavras
eloquentes, mas da força da cruz (cf 1Cor 1,17).
***
Por seu
turno, o Arcebispo de Braga, na Missa da Ceia em dia da Instituição da
Eucaristia e da consignação do Mandamento Novo, com o gesto do lava-pés, sublinhou
do Evangelho de João (Jo 13,1-15): “Ele, que amou os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” “Dei-vos um exemplo, para que assim como eu
fiz, vós façais também”. E concluiu: “é
o amor vivido que se torna exemplo para que também o vivamos”, criando consciência
em todas as comunidades de que a caridade é a missão constitutiva da Igreja,
tendo de se concretizar em todos os ambientes, particularmente nas famílias, na
redescoberta do ser e viver como “Igreja Doméstica”.
Tendo
chegado hoje ao momento alto da caminhada quaresmal, marcada por compromissos
concretos, a partir do cuidado ao próximo com mãos de samaritano, o Arcebispo
Primaz vincou:
“Neste dia, Jesus quis celebrar a Páscoa judaica, seguindo todas as
tradições, mas preparando os Apóstolos para a verdadeira Páscoa que iria
inaugurar. Esta teria lugar com a entrega da Sua vida, acontecimento singular,
mas a ser vivenciada na experiência da vida cristã. Assim como Cristo deu a sua
vida, também o cristão deve dar a vida pelos outros, sempre em gratuidade e
generosidade.”.
Celebrando
a Instituição da Eucaristia, como prolongamento antecipado da Paixão e
Ressurreição, aceitamos o mandamento novo do amor cristão, pregado inúmeras
vezes por Cristo, mas que agora tem explicação no gesto que nunca podemos
esquecer. Jesus não só disse aos Apóstolos que se deveriam amar, mas
concretizou-o realizando o sinal caraterístico dos escravos, dos que estavam ao
serviço dos senhores: lavou-lhes os pés. Os Apóstolos, na pessoa de Pedro, não
queriam aceitar, mas Cristo quis significar que o cristão tem que andar com a
toalha à cintura, pronto a responder às solicitações, as determinadas pela
espontaneidade e a exigidas silenciosamente pelo amor, sendo a toalha “o
emblema do cristão”, “não para ser usada para si, mas para permanecer como
disponibilidade”.
Já a
parábola do Samaritano recordara a necessidade de amar o próximo, como
mandamento que já vinha de longe, mas importava saber quem era o próximo: “toda e qualquer pessoa que encontramos na
estrada da nossa vida, com necessidades materiais e espirituais”. E a
toalha à cintura explica e abre perspetivas que o cristão deve intuir e
descobrir. Por isso, a Igreja terá de ser e aparecer diante do mundo na de
serviço. O Espírito Santo está a conduzi-la para o mundo, para aí viver segundo
a gramática da atenção, disponibilidade, entrega à causa, tendo de se
descentrar e reconhecer que “a lógica da toalha terá de ser interpretada em
todos os contextos humanos”. Temos usado a palavra “autorreferencialidade”, que
deve ser banida, pois “a missão acontece onde a Humanidade está ferida”. A
celebração da Instituição da Eucaristia com Cristo no centro da mesa, reunindo
os Apóstolos, mostra-nos a mesa da Humanidade onde temos de trabalhar para que
todos se sentem, não excluindo ninguém, mas garantindo dignidade de vida a
todos, sendo os pobres e desfavorecidos, nos seus diferentes rostos, “o caminho
da Igreja”.
E o
contrassinal é que a mesa da Humanidade ainda não oferece iguais situações de dignidade
a todas as pessoas: uns poucos banqueteiam-se escandalosamente enquanto uma
grande maioria luta pelas migalhas de sobrevivência e consolação. É neste
cenário que a vida da Igreja, para os cristãos e para as comunidades, se
movimenta, sabendo que deve ir ao encontro das margens para não esquecer
ninguém. Numa Igreja que se quer samaritana, teremos de sair de Jerusalém, do
templo, para nos dirigirmos à vida dos Homens que encontramos, fora na cidade
de Jericó, ou nos caminhos a percorrer.
Pegando
na imagem das mãos, o prelado bracarense vinca a multiplicidade de atitudes que
o amor sugere: “podem servir para assinar, contar, ajudar, pedir, acariciar,
ameaçar, suplicar, chamar, admirar, brincar, aplaudir, escrever, comer…”. E
infere que “amar o próximo tem um conjunto de manifestações impensáveis”, sendo
sempre o amor “uma escola onde se vai aprendendo para reconhecer que sabemos
muito pouco desta arte de amar”, que todos “são candidatos a que os amemos com
gestos novos a sugerir pelo coração”, e que “precisamos de nos amar, cada dia
de um modo diferente, em casa, no trabalho e na comunidade”, criando
proximidade e mostrando que “a vida dos outros nos interessa e nos diz respeito”.
E,
partindo do uso frequente da expressão “dar uma mão”, considera que isso é
fundamental numa Igreja sinodal colocando cada um em jogo a responsabilidade
que lhe compete na missão eclesial e que corresponde ao exercício de uma
cidadania participativa. Tudo começa por dar uma mão na edificação da família. E
o Arcebispo acredita que o futuro da Igreja passará muito por aí e que “terão
de ser as famílias a consolidar um esquema constitutivo do que isto significa
para ir em envolvendo outras”, como sucedeu com os primeiros cristãos face a
uma sociedade indiferente ou mesmo hostil. Por isso, exorta o prelado: “vamos dar uma mão na edificação de famílias,
comunidades de amor, responsáveis pela Igreja e sociedade”. E quer que isso
se faça a partir das paróquias e dos santuários, vivendo “intensamente a
caridade para oferecer um rosto sinodal e samaritano à Igreja, que se faz
próxima para cuidar e acompanhar como Jesus Cristo, Bom Samaritano”. Depois,
explana:
“As comunidades necessitam de uma nova vitalidade nascida da
plurifacetada maneira de viver o amor. A predileção deve ir para os pobres e
mais necessitados, mas entre todos terá de correr uma seiva que motiva para
mostrar que apenas o amor permanece. Vamos dar uma mão na edificação de
comunidades a nascer e a crescer através da Palavra, reunidas em celebrações
alegres e festivas, e a criar dinamismo novo para ir ao encontro do mundo a
evangelizar.”.
Frisando
que, depois da Ceia, Jesus Se dirigiu para o Jardim das Oliveiras a cumprir a
missão para que foi enviado pelo Pai, os discípulos dispersaram-se deixando-O
sozinho, preconiza que, ao invés, temos de estar com Ele aceitando o caminho e
fazendo-o todos juntos sem esquecer que na mesa da fraternidade temos de
colocar a toalha para servir, dando uma mão na edificação de famílias igrejas
domésticas, de comunidades verdadeiramente cristãs e de sociedades humanas com
o fermento do Evangelho. E exorta:
“Não só manifestemos a vontade de dar uma mão, mas com Cristo, agora
vivo e cooperante na Eucaristia que instituiu para ficar connosco, mãos à obra.
Não estamos sozinhos. Assim, família é o princípio e o motivo da Igreja
renovada e de uma sociedade humanizada. Trabalhemos para que se torne o que é.
O resto acontecerá.”.
***
Em dia
de Eucaristia, sacerdócio e mandamento do amor fraterno universal num contexto
de paixão e cruz, tornada Evangelho, emerge a Igreja como serviço ao mundo
ferido, um serviço devotado tendo em vista o Reino, com crentes/discípulos empenhados
e pastores/apóstolos que garantam a criação e consolidação de comunidades a
partir das famílias como igrejas domésticas. Por Cristo, com Cristo e em Cristo
para glória de Deus e salvação da humanidade.
2021.04.01 –
Louro de Carvalho
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