quinta-feira, 1 de abril de 2021

Começa hoje o ano da proclamação da graça do Senhor

 

 

Uma das liturgias típicas de Quinta-feira é a Missa Crismal em que se benzem o óleo dos enfermos e o óleo dos catecúmenos e se benze o óleo para o santo crisma, bem como os sacerdotes renovam, neste dia da instituição do sacerdócio ministerial, as promessas a que se vincularam aquando da ordenação sacerdotal.

O Papa Francisco, que pretende que os pastores tenham o odor das ovelhas, comentou o passo do Evangelho de Lucas (Lc 4, 16-30) que relata o episódio da sinagoga de Nazaré onde Jesus fez a leitura da passagem do Profeta (Is 61,3a-6a.8b-9) que proclama o envio do Ungido para anunciar a boa nova aos pobres, proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a recuperação da vista, mandar em liberdade os oprimidos e proclamar um ano favorável do Senhor.

E o Pontífice chama a atenção para a mudança de sentimentos dos circunstantes, que mostra a ligação do anúncio do Evangelho à perseguição e cruz. O encanto suscitado pelas palavras de Jesus repletas de graça durou um instante. A pergunta sobre quem era o orador, o filho de José, que podia ser de reconhecimento da ascensão dum humilde filho da terra, significou o desdém por aquele que foi recebido como se tendo arrogado o estatuto de Messias. Com efeito, disse ter-se cumprido naquele dia o que fora acabado de ouvir e omitiu o segmento “o dia da vingança do nosso Deus” que em, em Isaías, acoplado ao “ano da graça do Senhor”. Ou seja, para fazer valer o seu estatuto, alterou a Bíblia, o que não podia segundo a mente galilaica.

Francisco, lembrado de que o dito de Isaías era obra do Espírito do Senhor, realça que não foi só desta vez que os sentimentos das pessoas que ouviam a mensagem se alterou. Já vimos que a multidão que, no Domingo de Ramos, aclamava o Rei de Israel que entrava na sua cidade passou a gritar a sua crucifixão. E o Papa vinca o episódio do Pentecostes neotestamentário em que os Apóstolos, cheios do Espírito Santo, começaram a pregar o Evangelho: primeiro, todos se admiravam por cada um os ouvir falar na sua própria língua as maravilhas de Deus; depois, vendo que todos eram galileus, consideraram-nos embriagados    

Ora, como diz o Santo Padre, o Senhor, que às vezes se calava ou passava à outra margem, não renunciou a desmascarar a lógica maligna escondida na aparência de bisbilhotice: “Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, fá-lo também aqui na tua terra”. Será o que se passa quando Jesus está pendente da cruz e ouve: “Salvou os outros; salve-Se a Si mesmo”. E até um dos dois ladrões clamou: “Salve-nos a nós também”.

O Senhor, que não dialoga com o espírito maligno, responde apenas com a Escritura e refere que Elias e Eliseu não foram aceites pelos compatriotas, mas foram-no pela viúva fenícia, tal como o sírio leproso. Eram estrangeiros e doutra religião. Os factos provocam o efeito da profecia de Simeão: Jesus é “sinal de contradição” (Lc 2,34: “semeion antilegomenon). A palavra de Jesus faz emergir o que a gente guarda no coração, habitualmente uma mistura de trigo e joio. Ao ver os gestos de misericórdia do Senhor e ouvir as bem-aventuranças com as invetivas “Ai de vós!”, vemo-nos obrigados a optar. Os conterrâneos não acolheram a sua palavra, mas, enfurecidos, tentaram tirar-Lhe a vida. Todavia, ainda não era “a hora”, pelo que Ele “seguiu o seu caminho”. Não obstante, é de ter em conta, que “andam juntas a hora do anúncio jubiloso e a hora da perseguição e da cruz.

A boa semente lançada no campo dá fruto – cem, sessenta, trinta por um –, mas desperta a inveja do inimigo que obsessivamente semeia joio durante a noite (cf Mt 13,24-30.36-43). A ternura do pai de misericórdia atrai o filho pródigo para o regresso a casa, mas suscita a indignação e o ressentimento do filho mais velho (cf Lc 15,11-32). A generosidade do dono da vinha concita a gratidão dos trabalhadores da última hora, mas azeda os primeiros, que se sentem ofendidos porque o dono é bom (cf Mt 20,1-16). A proximidade de Jesus, que vai comer com os pecadores, ganha os corações de Zaqueu, Mateus, Samaritana e a mulher pecadora, mas provoca azedume nos que se consideram justos. A magnanimidade do homem que manda o filho pensando que seria respeitado pelos vinhateiros, desencadeia neles desmedida brutalidade. É tudo isto o mistério da iniquidade, que leva a matar o Justo (cf Mt 21, 33-46).

E o Papa recorda que Inácio de Loyola, na contemplação do Presépio, exprime esta verdade evangélica da união do Evangelho à cruz quando observa o que fazem José e Maria: caminham e trabalham porque o Senhor nasce na extrema pobreza e, no final de tantos trabalhos, fome, sede, calor e frio, injúrias e afrontas, morre na cruz. Nestes termos, com vista a tirar algum proveito para a vida sacerdotal, Francisco partilha duas reflexões que lhe vêm à mente.

Primeiro, não deve espantar-nos a verificação da presença da cruz na vida do Senhor no início do seu ministério, pois estava já estava presente antes do seu nascimento na perturbação de Maria ao ouvir o anúncio do Anjo, nas insónias de José, obrigado a abandonar a sua esposa prometida, na perseguição de Herodes e nas agruras sofridas pela Sagrada Família, iguais às de tantas famílias que têm de exilar-se da sua pátria. Assim, esta realidade mostra que “a cruz não é um facto indutivo”, produzido por uma conjuntura na vida do Senhor. Os crucificadores fazem aparecer a cruz como dano colateral, mas ela não depende das circunstâncias: as grandes e as pequenas cruzes da humanidade, as nossas, não dependem das circunstâncias. Na verdade, o Senhor abraçou a cruz em toda a sua integridade, abraçou a paixão inteira: a traição e o abandono dos amigos já desde a Última Ceia, a prisão ilegal, o julgamento sumário, a sentença desproporcionada, a malvadez sem motivo das bofetadas e cuspidelas. Ora, se as circunstâncias determinassem o poder salvífico da cruz, o Senhor não abraçaria tudo. Porém, abraçou a cruz inteira, porque esta não tolera ambiguidade nem regateio.  

Como segunda reflexão, o Papa ensina que na cruz há algo que é inerente à nossa condição humana, de limites e fragilidades, e algo que não é inerente à nossa fragilidade: a mordedura da serpente. Esta morde o Cristo indefeso e tenta desacreditar toda a sua obra com o desafio do “Salva-te a ti mesmo”.

Todavia, apesar de cruel, dolorosa e pretensamente mortal, nela aparece o triunfo de Deus. Ao morder a carne do Senhor, como refere São Máximo, o demónio não O envenenou (n’Ele, só encontrou mansidão e obediência à vontade do Pai) – antes, unida ao anzol da cruz engoliu a carne do Senhor, a mordedura “tornou-se para nós o antídoto que neutraliza o poder do maligno”.

E infere o Sumo Pontífice que, verdadeiramente no anúncio do Evangelho, há cruz, mas é uma cruz que salva. E, abraçá-la com Jesus e como Ele, desde “antes” de ir pregar, “permite-nos discernir e repelir o veneno do escândalo com que o demónio procurará envenenar-nos quando chegar inesperadamente uma cruz na nossa vida”. Para tanto, importa que não sejamos dos que voltam atrás (hypostolos) (cf Heb 10,39), que não nos escandalizemos, “porque Jesus não Se escandalizou ao ver que o seu jubiloso anúncio de salvação aos pobres não ressoava puro, mas no meio de gritos e ameaças de quem não queria ouvir a sua Palavra ou a queria reduzir a legalismos (moralistas, clericalistas…).”; não Se escandalizou por ter de curar doentes e libertar prisioneiros no meio das discussões e controvérsias moralistas, legalistas e clericais que suscitava sempre que fazia o bem; não Se escandalizou por ter de dar a vista a cegos no meio de gente que fechava os olhos para não ver ou olhava para o lado; não Se escandalizou pelo facto da sua proclamação do ano de graça do Senhor – um ano que é a história inteira – ter provocado escândalo público que hoje ocuparia apenas a terceira página dum jornal de província. E “não nos escandalizamos porque o anúncio do Evangelho não recebe a sua eficácia das nossas palavras eloquentes, mas da força da cruz (cf 1Cor 1,17).

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Por seu turno, o Arcebispo de Braga, na Missa da Ceia em dia da Instituição da Eucaristia e da consignação do Mandamento Novo, com o gesto do lava-pés, sublinhou do Evangelho de João (Jo 13,1-15): “Ele, que amou os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” “Dei-vos um exemplo, para que assim como eu fiz, vós façais também”. E concluiu: “é o amor vivido que se torna exemplo para que também o vivamos”, criando consciência em todas as comunidades de que a caridade é a missão constitutiva da Igreja, tendo de se concretizar em todos os ambientes, particularmente nas famílias, na redescoberta do ser e viver como “Igreja Doméstica”.

Tendo chegado hoje ao momento alto da caminhada quaresmal, marcada por compromissos concretos, a partir do cuidado ao próximo com mãos de samaritano, o Arcebispo Primaz vincou:

Neste dia, Jesus quis celebrar a Páscoa judaica, seguindo todas as tradições, mas preparando os Apóstolos para a verdadeira Páscoa que iria inaugurar. Esta teria lugar com a entrega da Sua vida, acontecimento singular, mas a ser vivenciada na experiência da vida cristã. Assim como Cristo deu a sua vida, também o cristão deve dar a vida pelos outros, sempre em gratuidade e generosidade.”.

Celebrando a Instituição da Eucaristia, como prolongamento antecipado da Paixão e Ressurreição, aceitamos o mandamento novo do amor cristão, pregado inúmeras vezes por Cristo, mas que agora tem explicação no gesto que nunca podemos esquecer. Jesus não só disse aos Apóstolos que se deveriam amar, mas concretizou-o realizando o sinal caraterístico dos escravos, dos que estavam ao serviço dos senhores: lavou-lhes os pés. Os Apóstolos, na pessoa de Pedro, não queriam aceitar, mas Cristo quis significar que o cristão tem que andar com a toalha à cintura, pronto a responder às solicitações, as determinadas pela espontaneidade e a exigidas silenciosamente pelo amor, sendo a toalha “o emblema do cristão”, “não para ser usada para si, mas para permanecer como disponibilidade”.

Já a parábola do Samaritano recordara a necessidade de amar o próximo, como mandamento que já vinha de longe, mas importava saber quem era o próximo: “toda e qualquer pessoa que encontramos na estrada da nossa vida, com necessidades materiais e espirituais”. E a toalha à cintura explica e abre perspetivas que o cristão deve intuir e descobrir. Por isso, a Igreja terá de ser e aparecer diante do mundo na de serviço. O Espírito Santo está a conduzi-la para o mundo, para aí viver segundo a gramática da atenção, disponibilidade, entrega à causa, tendo de se descentrar e reconhecer que “a lógica da toalha terá de ser interpretada em todos os contextos humanos”. Temos usado a palavra “autorreferencialidade”, que deve ser banida, pois “a missão acontece onde a Humanidade está ferida”. A celebração da Instituição da Eucaristia com Cristo no centro da mesa, reunindo os Apóstolos, mostra-nos a mesa da Humanidade onde temos de trabalhar para que todos se sentem, não excluindo ninguém, mas garantindo dignidade de vida a todos, sendo os pobres e desfavorecidos, nos seus diferentes rostos, “o caminho da Igreja”.

E o contrassinal é que a mesa da Humanidade ainda não oferece iguais situações de dignidade a todas as pessoas: uns poucos banqueteiam-se escandalosamente enquanto uma grande maioria luta pelas migalhas de sobrevivência e consolação. É neste cenário que a vida da Igreja, para os cristãos e para as comunidades, se movimenta, sabendo que deve ir ao encontro das margens para não esquecer ninguém. Numa Igreja que se quer samaritana, teremos de sair de Jerusalém, do templo, para nos dirigirmos à vida dos Homens que encontramos, fora na cidade de Jericó, ou nos caminhos a percorrer.

Pegando na imagem das mãos, o prelado bracarense vinca a multiplicidade de atitudes que o amor sugere: “podem servir para assinar, contar, ajudar, pedir, acariciar, ameaçar, suplicar, chamar, admirar, brincar, aplaudir, escrever, comer…”. E infere que “amar o próximo tem um conjunto de manifestações impensáveis”, sendo sempre o amor “uma escola onde se vai aprendendo para reconhecer que sabemos muito pouco desta arte de amar”, que todos “são candidatos a que os amemos com gestos novos a sugerir pelo coração”, e que “precisamos de nos amar, cada dia de um modo diferente, em casa, no trabalho e na comunidade”, criando proximidade e mostrando que “a vida dos outros nos interessa e nos diz respeito”.

E, partindo do uso frequente da expressão “dar uma mão”, considera que isso é fundamental numa Igreja sinodal colocando cada um em jogo a responsabilidade que lhe compete na missão eclesial e que corresponde ao exercício de uma cidadania participativa. Tudo começa por dar uma mão na edificação da família. E o Arcebispo acredita que o futuro da Igreja passará muito por aí e que “terão de ser as famílias a consolidar um esquema constitutivo do que isto significa para ir em envolvendo outras”, como sucedeu com os primeiros cristãos face a uma sociedade indiferente ou mesmo hostil. Por isso, exorta o prelado: “vamos dar uma mão na edificação de famílias, comunidades de amor, responsáveis pela Igreja e sociedade”. E quer que isso se faça a partir das paróquias e dos santuários, vivendo “intensamente a caridade para oferecer um rosto sinodal e samaritano à Igreja, que se faz próxima para cuidar e acompanhar como Jesus Cristo, Bom Samaritano”. Depois, explana:

As comunidades necessitam de uma nova vitalidade nascida da plurifacetada maneira de viver o amor. A predileção deve ir para os pobres e mais necessitados, mas entre todos terá de correr uma seiva que motiva para mostrar que apenas o amor permanece. Vamos dar uma mão na edificação de comunidades a nascer e a crescer através da Palavra, reunidas em celebrações alegres e festivas, e a criar dinamismo novo para ir ao encontro do mundo a evangelizar.”.

Frisando que, depois da Ceia, Jesus Se dirigiu para o Jardim das Oliveiras a cumprir a missão para que foi enviado pelo Pai, os discípulos dispersaram-se deixando-O sozinho, preconiza que, ao invés, temos de estar com Ele aceitando o caminho e fazendo-o todos juntos sem esquecer que na mesa da fraternidade temos de colocar a toalha para servir, dando uma mão na edificação de famílias igrejas domésticas, de comunidades verdadeiramente cristãs e de sociedades humanas com o fermento do Evangelho. E exorta:

Não só manifestemos a vontade de dar uma mão, mas com Cristo, agora vivo e cooperante na Eucaristia que instituiu para ficar connosco, mãos à obra. Não estamos sozinhos. Assim, família é o princípio e o motivo da Igreja renovada e de uma sociedade humanizada. Trabalhemos para que se torne o que é. O resto acontecerá.”.

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Em dia de Eucaristia, sacerdócio e mandamento do amor fraterno universal num contexto de paixão e cruz, tornada Evangelho, emerge a Igreja como serviço ao mundo ferido, um serviço devotado tendo em vista o Reino, com crentes/discípulos empenhados e pastores/apóstolos que garantam a criação e consolidação de comunidades a partir das famílias como igrejas domésticas. Por Cristo, com Cristo e em Cristo para glória de Deus e salvação da humanidade.

2021.04.01 – Louro de Carvalho   

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