sábado, 10 de abril de 2021

Quem vende cabritos e cabras não tem, de algum lado lhe vêm

 

O ditado que a sabedoria popular catapultou para a memória coletiva não se compadece com o tecnicismo que invade os processos judiciais no atinente a fraude (fiscal ou outra), branqueamento de capitais, enriquecimento ilícito e corrupção (passiva ou ativa).

A regra é a de que a prova incumbe a quem acusa, não ao arguido. Porém, como toda a regra admite exceções, também esta as deveria admitir, para a justiça, que não pode ser cega, surda e muda, funcionar sempre. É que o bom funcionamento da justiça requer a busca e a consecução da verdade. E, mercê dos alçapões das leis, da capacidade técnica de muitos operadores da justiça, do zelo garantista e da complexidade dos megaprocessos, muitos se movem legalmente na procura da ocultação da verdade.

É certo que os direitos dos arguidos, nomeadamente à defesa e à presunção da inocência, são bens a nunca desvalorizar, antes a salvaguardar e a preservar, mas também os tribunais devem ter em conta o bem comum e nunca dar azo a que os pequenos e os pobres possam pensar que os poderosos e ricos se movem bem nas malhas dos mecanismos policiais e judiciários.   

O despacho instrutório sobre a Operação Marquês, cuja súmula foi comunicada às partes a 9 de abril, fez-me lembrar a derrocada moral do CEP na Batalha de La Lys, cujo 103.º aniversário se assinalou no mesmo dia. Efetivamente, caiu estrondosamente a artilharia duma investigação excessivamente dilatada no tempo, servida por inúmeras peças escritas ou eletrónicas e por testemunhos humanos, dum inquérito tornado espetáculo, tendo o segredo de justiça conhecido diversos momentos de violação totalmente impune, duma instrução em que foram reapreciadas as provas aduzidas pela acusação e ouvidas e reouvidas testemunhas. Não é que não haja arguidos sobre os quais pesa o ónus do crime até que o julgamento leve a uma eventual decisão ilibatória. Porém, a volumetria e o espetáculo do processo, pouco tratados tecnicamente, deu azo a que muitos crimes e arguidos ficassem pelo caminho. Apenas 5 arguidos estão pronunciados para julgamento (23 ficaram livres). E 172 crimes caíram. O MP (Ministério Público) recorrerá para a Relação. Resta saber o que irá recuperar o desembargador que analisar o despacho do JIC.             

O JIC (juiz de instrução criminal) destruiu quase por completo 4 anos de investigação do MP, precedida de muitos anos de investigação policial e fustigou muito do trabalho do JIC que acompanhou o inquérito, que validou e promoveu buscas, escutas e outras diligências. E Ivo Rosa destruiu a tese de Sócrates de que não foi corrompido, parecendo ironicamente agora mais forte a hipótese de vir a ser condenado em julgamento.

Na longa súmula da decisão de 6.728 páginas, o JIC não se coibiu de rotular negativamente a acusação deduzida por sete procuradores. Cirurgicamente, revisitou os principais factos que suportavam os crimes de que o ex-primeiro-ministro e o ex-presidente do BES vinham acusados e classificou-os de “especulação”, “fantasia”, “falta de lógica”.

Os três pilares do processo, que diziam respeito aos três crimes de corrupção imputados pela equipa do procurador Rosário Teixeira caíram por terra. Nenhum está sustentado em prova sólida. Não há indícios de que Sócrates tenha influenciado o chumbo da OPA da Sonae sobre a Portugal Telecom em 2007, a favor do GES (Grupo Espírito Santo), interferido na atribuição de obra pública ao Grupo Lena ou sido cúmplice de Armando Vara quando este era administrador da CGD, na concessão de empréstimo para a compra do resort de luxo Vale do Lobo, no Algarve. Nestes casos, a prova é inconsistente, vaga ou até inexistente porque foram outros decisores – não Sócrates – que decidiram tais matérias e não há testemunhos a corroborar a tese do MP sobre o papel decisivo do ex-primeiro-ministro. Até foi desconsiderada a forma como Paulo Azevedo contou tudo o que ocorreu nos bastidores da OPA da PT, descrevendo como o Governo boicotou a tentativa de tomada de controlo daquela telefónica, quando o Estado era um dos seus acionistas de referência de detentor duma golden share.

Não é crível que o JIC seja ingénuo acreditando que os membros de órgãos colegiais ou os subalternos tomam posição sem interferência daqueles que representam ou a quem obedecem.

Embora tenha rompido a coluna vertebral do despacho de acusação do MP, de outubro de 2017, contrapesou com uma ilação: com base na análise de todo o processo declarou Sócrates como efetivamente corrompido, ainda que não seja possível provar por que motivo tal sucedeu. O juiz não acreditou nas explicações da defesa sobre o dinheiro que Sócrates foi recebendo de Carlos Santos Silva, empresário que foi administrador do Grupo Lena, um conglomerado de empresas de construção e obras públicas. Com efeito, apesar de os arguidos terem dito que Santos Silva emprestou 567 mil euros a Sócrates e que este já devolveu 250 mil euros, o magistrado está pela solidez dos indícios da entrega a Sócrates de um total de 1,7 milhões de euros e pela não justificação de tantos levantamentos e entregas em numerário. Se, de facto, estivesse em causa o simples empréstimo entre amigos, nada impedia que tudo se fizesse por transferência bancária. Por outro lado, o JIC considerou relevante o modo como Sócrates e Santos Silva usavam uma linguagem codificada, o que mostra a preocupação em esconder a circulação de dinheiro.

Por isso, o juiz admitiu que “houve um mercadejar do cargo do primeiro-ministro” em prol de interesse privado, uma “venda de personalidade”, assumindo não haver dúvidas de que todos os pagamentos de Santos Silva a Sócrates significam que houve um crime de corrupção passiva cometido pelo ex-primeiro-ministro enquanto foi titular desse cargo político, embora não se descortinem indícios dos atos concretos que terão estado na sua origem ou seja, que possam identificar as contrapartidas do dinheiro recebido e levados a julgamento como prova.

O juiz entende que tal crime de corrupção já prescreveu, mas não os esquemas usados para fazer chegar os subornos ao corrompido, o que explica dois crimes de branqueamento de capitais com que Sócrates foi pronunciado, tendo o terceiro a ver com o modo como pagou ao professor Domingos Farinha para o ajudar a fazer a tese de mestrado em Paris. Um dos crimes de falsificação de documentos diz respeito a um contrato de arrendamento para o apartamento de Paris, propriedade de Carlos Santos, onde chegou a viver, sendo que os outros dois têm, mais uma vez, a ver com a tese de mestrado e Domingos Farinha.

O juiz não teve contemplações com o MP, mas ao não deixar Sócrates totalmente impune, fica o sinal: se um JIC como ele, visto como decidindo normalmente a favor dos arguidos, ficou convicto de que o ex-primeiro-ministro foi corrompido, que dúvidas terá o tribunal coletivo que o irá julgar? Mas é obra: de 31 crimes de que é acusado, 26 ficam prostrados no solo!

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Outro arguido de proa, o antigo homem forte do BES/GES livra-se de 18 dos 21 crimes de que era acusado, restando de três de abuso de confiança. E continua como protagonista de outro megaprocesso, o do Universo Espírito Santo. Em causa está a apropriação de 10 milhões de euros que pertenciam ao GES para a sua esfera pessoal através de paraísos fiscais. O MP vai recorrer pelo facto de terem ficado para trás 18 outros crimes no caso do ex-banqueiro. Às imputações de corrupção ativa, de branqueamento de capitais, de falsificação de documentos e de fraude fiscal qualificada, Ivo Rosa decidiu que Ricardo Salgado, o banqueiro que presidiu durante 22 anos ao BES (Banco Espírito Santo) e GES (Grupo Espírito Santo) não tem de responder perante a justiça. Restaram três e são de abuso de confiança. Por eles é pronunciado para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal coletivo.

O Código Penal (CP) tipifica o crime de abuso de confiança quando alguém “ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade” (ou seja, que tenha obtido sem operação regular e legal). Sendo o valor “consideravelmente elevado”, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. E é para este valor que a decisão instrutória aponta. O primeiro dos crimes de abuso de confiança para Salgado é a transferência em outubro de 2011 de 4 milhões de euros com origem numa conta do veículo na Suíça do GES, a ES Enterprises, para o paraíso fiscal Savoices, no Panamá, controlada pelo arguido; o segundo é a transferência de 2,75 milhões da ES Enterprises para a Green Emerald (de Helder Bataglia), na Suíça, para depois seguir em direção à Savoices, de Salgado; e o terceiro é a transferência de 4,9 milhões de francos suíços (avaliada em cerca de 4 milhões de euros). Em causa está a saída desta verba duma conta de Henrique Granadeiro, antigo presidente da Portugal Telecom, para a Begolino, offshore controlada por Ricardo Salgado que estava localizada no Panamá.

Entre os factos indiciados está a palavra central do ex-banqueiro: a gestão do GES “esteve sempre centralizada no arguido Ricardo Salgado”, que era “quem materialmente dirigia os destinos do GES, dispondo de total autonomia e exclusividade”.

Além das empresas do grupo e outras sociedades que gravitavam à sua volta, Salgado dispunha de sociedades constituídas em offshore e que utilizava na concretização de operações financeiras no interesse pessoal ou para efetuar pagamentos, sem que fosse detetada a origem, fundamento e destino, e com o objetivo de obstar ao seu manifesto fiscal. Sabia que tais fundos pertenciam ao GES, que “não lhe eram devidos” e que “não tinha direito a fazê-los seus”. E tinha “plena consciência de que agia em oposição aos deveres profissionais”. Com essas transferências causou “perda patrimonial” ao GES de cerca de 10 milhões de euros, que não foram restituídos.

Salgado é um dos 5 (além de Sócrates, Carlos Santos Silva, Armando Vara e João Perna) do total de 28 arguidos que se mantiveram com a imputação de crimes após a decisão instrutória. Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, também acusados, viram cair as acusações contra si.  

Além de pronunciado para ser julgado por abuso de confiança, Salgado é o protagonista de outro megaprocesso, denominado Universo Espírito Santo, em fase mais atrasada, ainda que já tenha sido alvo de despacho de acusação. Aí são 65 os crimes de que o antigo líder do BES/GES é acusado em práticas de associação criminosa, corrupção ativa, falsificação de documento, burla qualificada, manipulação de mercado, infidelidade e branqueamento. Estão mm causa transferências de verbas e outras operações, sendo que o MP vê aí prejuízos totais de 11,8 mil milhões de euros para o GES. E há processos autónomos daí saídos, ainda em investigação.

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Há 3 anos, o Presidente da República instava a uma reforma da Justiça; e o setor entregou uma proposta no Parlamento que ficou na fila de espera. Há 2 anos, o líder do PSD entregou uma proposta de reforma da Justiça ao Governo e aos partidos; e o Governo ignorou o desafio.

Entretanto, no passado dia 5 de abril, o Governo apresentou a sua “nova estratégia de combate à corrupção”, que mexe com regras sensíveis da investigação dos grandes processos judiciais. Isto sucedeu 5 dias antes da pronúncia da decisão instrutória da Operação Marquês, que envolve Sócrates, ex-primeiro-ministro socialista. O timing do Executivo não passou despercebido e fez franzir alguns sobrolhos: é uma “coincidência feliz, poderá ter sido por dificuldade de agenda do Ministério da Justiça”, ironizou ao Expresso a deputada do PSD, Mónica Quintela, vincando que “a Justiça não pode estar fulanizada”.

Com o Chega a capitalizar o sentimento de descredibilização da Justiça e dos políticos, o tema é politicamente polémico, pelo que o Chefe de Estado optou, no dia 7, pela desdramatização, pois, “de cada vez que há avanços num processo judicial, nomeadamente nos megaprocessos, isso é visto como a Justiça a funcionar”. Porém, adiantando-se, PS e PSD acordaram em algumas propostas ser vistas como resposta dos partidos centrais da democracia a eventual rombo na credibilidade do sistema judicial. Duas delas são pertinentes: o combate aos megaprocessos; e o fim da dupla de juízes no TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal ou Ticão).

Qualquer decisão do Ticão está conotada com Carlos Alexandre ou com Ivo Rosa, o que não pode acontecer, bem como os megaprocessos”, diz fonte socialdemocrata. Em algumas matérias os votos do PSD podem ser determinantes, e Rio tem vincado uma agenda de maior escrutínio sobre os agentes da justiça.

O fim do duopólio no ‘Ticão’ é considerado um imperativo por todos os partidos, por as decisões serem lidas à medida do perfil de um dos dois juízes: Alexandre, visto como mais duro; e Rosa como mais perdulário. “Ou é um ou é outro, o que é muito criticável, até do ponto de vista do princípio do juiz natural, e veio dar à instrução uma relevância que não deveria ter, um pré-julgamento”, como diz a socialista Constança Urbano de Sousa.

Contudo, BE, CDS, PCP e PAN encaram o documento do Governo como um conjunto de “enunciados genéricos” e “de intenções” que carecem de concretização, “a parte mais relevante”. Telmo Correia e António Filipe convergem num ponto: “mais do que com soluções legislativas”, que são importantes (e esta estratégia será densificada no Parlamento), “o combate à corrupção faz-se com meios”. E é manifesta “a falta de meios periciais e humanos”.

Juízes, MP e advogados também consideram que a estratégia anticorrupção do Governo não passa das boas intenções. O bastonário da Ordem dos Advogados alerta para os perigos dos acordos de suspensão e diminuição de pena a quem se retrate e denuncie um crime, pelo risco de se apanhar o peixe miúdo e deixar os grandes criminosos de fora. Para a secretária-geral da ASJ (Associação Sindical dos Juízes), a vontade de acabar com os megaprocessos contém o risco de se perder o fio à meada dos casos, estando o mal na falta de respostas concretas no combate às fraudes do financiamento dos partidos e ilegalidades nas autarquias. E, para o presidente do SMMP (Sindicato dos Magistrados do Ministério Público), o que falha é o combate eficaz à corrupção.

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Todos põem o dedo na ferida da corrupção. Porém, nem a lei é audaz – tem, ao invés, muitos alçapões – nem se criminaliza o enriquecimento ilícito nem se suspeita dos verdadeiros sinais extenso de riqueza (mas questionam-se pequenos volumes de entradas e saídas de dinheiro de cidadãos comuns). E entretemo-nos na criação de figuras perversas como a delação premiada.

Ora é preciso abolir os megaprocessos e extinguir o TCIC, ou então dotá-lo dum corpo de juízes que permita verdadeiro sorteio e não dê a visão bipolar do tribunal, e criar uma audiência nacional. Por outro lado, em corrupção, há que valorizar a prova indireta desde que unívoca. 

Não é ovo, mas é branco e a galinha pô-lo! E… Quem vende cabritos e cabras não tem…

2021.04.10 – Louro de Carvalho

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