O ditado
que a sabedoria popular catapultou para a memória coletiva não se compadece com
o tecnicismo que invade os processos judiciais no atinente a fraude (fiscal
ou outra),
branqueamento de capitais, enriquecimento ilícito e corrupção (passiva
ou ativa).
A regra
é a de que a prova incumbe a quem acusa, não ao arguido. Porém, como toda a
regra admite exceções, também esta as deveria admitir, para a justiça, que não
pode ser cega, surda e muda, funcionar sempre. É que o bom funcionamento da
justiça requer a busca e a consecução da verdade. E, mercê dos alçapões das
leis, da capacidade técnica de muitos operadores da justiça, do zelo garantista
e da complexidade dos megaprocessos, muitos se movem legalmente na procura da
ocultação da verdade.
É certo
que os direitos dos arguidos, nomeadamente à defesa e à presunção da inocência,
são bens a nunca desvalorizar, antes a salvaguardar e a preservar, mas também
os tribunais devem ter em conta o bem comum e nunca dar azo a que os pequenos e
os pobres possam pensar que os poderosos e ricos se movem bem nas malhas dos
mecanismos policiais e judiciários.
O
despacho instrutório sobre a Operação
Marquês, cuja súmula foi comunicada às partes a 9 de abril, fez-me lembrar
a derrocada moral do CEP na Batalha de La Lys, cujo 103.º aniversário se
assinalou no mesmo dia. Efetivamente, caiu estrondosamente a artilharia duma
investigação excessivamente dilatada no tempo, servida por inúmeras peças
escritas ou eletrónicas e por testemunhos humanos, dum inquérito tornado
espetáculo, tendo o segredo de justiça conhecido diversos momentos de violação
totalmente impune, duma instrução em que foram reapreciadas as provas aduzidas
pela acusação e ouvidas e reouvidas testemunhas. Não é que não haja arguidos
sobre os quais pesa o ónus do crime até que o julgamento leve a uma eventual
decisão ilibatória. Porém, a volumetria e o espetáculo do processo, pouco
tratados tecnicamente, deu azo a que muitos crimes e arguidos ficassem pelo
caminho. Apenas 5 arguidos estão pronunciados para julgamento (23
ficaram livres). E
172 crimes caíram. O MP (Ministério Público) recorrerá para a Relação. Resta
saber o que irá recuperar o desembargador que analisar o despacho do JIC.
O JIC (juiz de instrução criminal) destruiu
quase por completo 4 anos de investigação do MP, precedida de muitos anos de
investigação policial e fustigou muito do trabalho do JIC que acompanhou o
inquérito, que validou e promoveu buscas, escutas e outras diligências. E Ivo
Rosa destruiu a tese de Sócrates de que não foi corrompido, parecendo ironicamente
agora mais forte a hipótese de vir a ser condenado em julgamento.
Na longa súmula da decisão de 6.728 páginas, o JIC não se coibiu de rotular
negativamente a acusação deduzida por sete procuradores. Cirurgicamente,
revisitou os principais factos que suportavam os crimes de que o
ex-primeiro-ministro e o ex-presidente do BES vinham acusados e classificou-os
de “especulação”, “fantasia”, “falta de lógica”.
Os três pilares do processo, que diziam respeito aos três crimes de
corrupção imputados pela equipa do procurador Rosário Teixeira caíram por
terra. Nenhum está sustentado em prova sólida. Não há indícios de que Sócrates
tenha influenciado o chumbo da OPA da Sonae sobre a Portugal Telecom em 2007, a
favor do GES (Grupo Espírito Santo),
interferido na atribuição de obra pública ao Grupo Lena ou sido cúmplice de
Armando Vara quando este era administrador da CGD, na concessão de empréstimo
para a compra do resort de luxo Vale do Lobo, no Algarve. Nestes casos, a prova
é inconsistente, vaga ou até inexistente porque foram outros decisores – não Sócrates
– que decidiram tais matérias e não há testemunhos a corroborar a tese do MP
sobre o papel decisivo do ex-primeiro-ministro. Até foi desconsiderada a forma
como Paulo Azevedo contou tudo o que ocorreu nos bastidores da OPA da PT, descrevendo
como o Governo boicotou a tentativa de tomada de controlo daquela telefónica,
quando o Estado era um dos seus acionistas de referência de detentor duma golden share.
Não é crível que o JIC seja ingénuo acreditando que os membros de órgãos
colegiais ou os subalternos tomam posição sem interferência daqueles que
representam ou a quem obedecem.
Embora tenha rompido a coluna vertebral do despacho de acusação do MP, de outubro
de 2017, contrapesou com uma ilação: com base na análise de todo o processo declarou
Sócrates como efetivamente corrompido, ainda que não seja possível provar por
que motivo tal sucedeu. O juiz não acreditou nas explicações da defesa sobre o
dinheiro que Sócrates foi recebendo de Carlos Santos Silva, empresário que foi
administrador do Grupo Lena, um conglomerado de empresas de construção e obras
públicas. Com efeito, apesar de os arguidos terem dito que Santos Silva
emprestou 567 mil euros a Sócrates e que este já devolveu 250 mil euros, o
magistrado está pela solidez dos indícios da entrega a Sócrates de um total de
1,7 milhões de euros e pela não justificação de tantos levantamentos e entregas
em numerário. Se, de facto, estivesse em causa o simples empréstimo entre amigos,
nada impedia que tudo se fizesse por transferência bancária. Por outro lado, o
JIC considerou relevante o modo como Sócrates e Santos Silva usavam uma
linguagem codificada, o que mostra a preocupação em esconder a circulação de
dinheiro.
Por isso, o juiz admitiu que “houve um mercadejar do cargo do
primeiro-ministro” em prol de interesse privado, uma “venda de personalidade”,
assumindo não haver dúvidas de que todos os pagamentos de Santos Silva a
Sócrates significam que houve um crime de corrupção passiva cometido pelo
ex-primeiro-ministro enquanto foi titular desse cargo político, embora não se
descortinem indícios dos atos concretos que terão estado na sua origem ou seja,
que possam identificar as contrapartidas do dinheiro recebido e levados a
julgamento como prova.
O juiz entende que tal crime de corrupção já prescreveu, mas não os
esquemas usados para fazer chegar os subornos ao corrompido, o que explica dois
crimes de branqueamento de capitais com que Sócrates foi pronunciado, tendo o
terceiro a ver com o modo como pagou ao professor Domingos Farinha para o
ajudar a fazer a tese de mestrado em Paris. Um dos crimes de falsificação de
documentos diz respeito a um contrato de arrendamento para o apartamento de
Paris, propriedade de Carlos Santos, onde chegou a viver, sendo que os outros
dois têm, mais uma vez, a ver com a tese de mestrado e Domingos Farinha.
O juiz não teve contemplações com o MP, mas ao não deixar Sócrates totalmente
impune, fica o sinal: se um JIC como ele, visto como decidindo normalmente a
favor dos arguidos, ficou convicto de que o ex-primeiro-ministro foi
corrompido, que dúvidas terá o tribunal coletivo que o irá julgar? Mas é obra:
de 31 crimes de que é acusado, 26 ficam prostrados no solo!
***
Outro arguido de proa, o antigo homem forte do BES/GES livra-se de 18 dos
21 crimes de que era acusado, restando de três de abuso de confiança. E continua
como protagonista de outro megaprocesso, o do Universo Espírito Santo. Em causa
está a apropriação de 10 milhões de euros que pertenciam ao GES para a sua
esfera pessoal através de paraísos fiscais. O MP vai recorrer pelo facto de
terem ficado para trás 18 outros crimes no caso do ex-banqueiro. Às imputações
de corrupção ativa, de branqueamento de capitais, de falsificação de documentos
e de fraude fiscal qualificada, Ivo Rosa decidiu que Ricardo Salgado, o
banqueiro que presidiu durante 22 anos ao BES (Banco Espírito Santo) e GES (Grupo Espírito Santo) não tem de responder perante a justiça. Restaram três e são de abuso de
confiança. Por eles é pronunciado para julgamento em processo comum com
intervenção do tribunal coletivo.
O Código Penal (CP) tipifica o
crime de abuso de confiança quando alguém “ilegitimamente se apropriar de coisa
móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da
propriedade” (ou seja, que tenha obtido sem operação regular e legal). Sendo o valor “consideravelmente elevado”, o agente
é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. E é para este valor que a decisão
instrutória aponta. O primeiro dos crimes de abuso de confiança para Salgado é
a transferência em outubro de 2011 de 4 milhões de euros com origem numa conta
do veículo na Suíça do GES, a ES Enterprises, para o paraíso fiscal Savoices, no
Panamá, controlada pelo arguido; o segundo é a transferência de 2,75 milhões da
ES Enterprises para a Green Emerald (de Helder Bataglia), na Suíça, para depois seguir em direção à Savoices,
de Salgado; e o terceiro é a transferência de 4,9 milhões de francos suíços (avaliada em
cerca de 4 milhões de euros). Em causa
está a saída desta verba duma conta de Henrique Granadeiro, antigo presidente
da Portugal Telecom, para a Begolino, offshore
controlada por Ricardo Salgado que estava localizada no Panamá.
Entre os factos indiciados está a palavra central do ex-banqueiro: a gestão
do GES “esteve sempre centralizada no arguido Ricardo Salgado”, que era “quem
materialmente dirigia os destinos do GES, dispondo de total autonomia e
exclusividade”.
Além das empresas do grupo e outras sociedades que gravitavam à sua volta,
Salgado dispunha de sociedades constituídas em offshore e que utilizava na concretização de operações financeiras
no interesse pessoal ou para efetuar pagamentos, sem que fosse detetada a
origem, fundamento e destino, e com o objetivo de obstar ao seu manifesto
fiscal. Sabia que tais fundos pertenciam ao GES, que “não lhe eram devidos” e
que “não tinha direito a fazê-los seus”. E tinha “plena consciência de que agia
em oposição aos deveres profissionais”. Com essas transferências causou “perda
patrimonial” ao GES de cerca de 10 milhões de euros, que não foram restituídos.
Salgado é um dos 5 (além de Sócrates, Carlos Santos Silva, Armando Vara e
João Perna) do total de
28 arguidos que se mantiveram com a imputação de crimes após a decisão
instrutória. Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, também acusados, viram cair as
acusações contra si.
Além de pronunciado para ser julgado por abuso de confiança, Salgado é o
protagonista de outro megaprocesso, denominado Universo Espírito Santo, em fase
mais atrasada, ainda que já tenha sido alvo de despacho de acusação. Aí são 65 os
crimes de que o antigo líder do BES/GES é acusado em práticas de associação
criminosa, corrupção ativa, falsificação de documento, burla qualificada,
manipulação de mercado, infidelidade e branqueamento. Estão mm causa
transferências de verbas e outras operações, sendo que o MP vê aí prejuízos
totais de 11,8 mil milhões de euros para o GES. E há processos autónomos daí
saídos, ainda em investigação.
***
Há 3
anos, o Presidente da República instava a uma reforma da Justiça; e o setor entregou
uma proposta no Parlamento que ficou na fila de espera. Há 2 anos, o líder do
PSD entregou uma proposta de reforma da Justiça ao Governo e aos partidos; e o
Governo ignorou o desafio.
Entretanto,
no passado dia 5 de abril, o Governo apresentou a sua “nova estratégia de
combate à corrupção”, que mexe com regras sensíveis da investigação dos grandes
processos judiciais. Isto sucedeu 5 dias antes da pronúncia da decisão
instrutória da Operação Marquês, que
envolve Sócrates, ex-primeiro-ministro socialista. O timing do Executivo não passou despercebido e fez franzir alguns
sobrolhos: é uma “coincidência feliz, poderá ter sido por dificuldade de agenda
do Ministério da Justiça”, ironizou ao Expresso
a deputada do PSD, Mónica Quintela, vincando que “a Justiça não pode estar fulanizada”.
Com o Chega a capitalizar o sentimento de descredibilização
da Justiça e dos políticos, o tema é politicamente polémico, pelo que o Chefe
de Estado optou, no dia 7, pela desdramatização, pois, “de cada vez que há
avanços num processo judicial, nomeadamente nos megaprocessos, isso é visto
como a Justiça a funcionar”. Porém, adiantando-se, PS e PSD acordaram em
algumas propostas ser vistas como resposta dos partidos centrais da democracia
a eventual rombo na credibilidade do sistema judicial. Duas delas são
pertinentes: o combate aos megaprocessos; e o fim da dupla de juízes no TCIC (Tribunal Central de Instrução
Criminal ou Ticão).
Qualquer decisão do Ticão está conotada com Carlos Alexandre
ou com Ivo Rosa, o que não pode acontecer, bem como os megaprocessos”, diz
fonte socialdemocrata. Em algumas matérias os votos do PSD podem ser
determinantes, e Rio tem vincado uma agenda de maior escrutínio sobre os
agentes da justiça.
O fim do duopólio no ‘Ticão’ é considerado um imperativo por
todos os partidos, por as decisões serem lidas à medida do perfil de um dos
dois juízes: Alexandre, visto como mais duro; e Rosa como mais perdulário. “Ou
é um ou é outro, o que é muito criticável, até do ponto de vista do princípio
do juiz natural, e veio dar à instrução uma relevância que não deveria ter, um pré-julgamento”,
como diz a socialista Constança Urbano de Sousa.
Contudo, BE, CDS, PCP e PAN encaram o documento do Governo
como um conjunto de “enunciados genéricos” e “de intenções” que carecem de
concretização, “a parte mais relevante”. Telmo Correia e António Filipe
convergem num ponto: “mais do que com soluções legislativas”, que são importantes
(e esta estratégia será
densificada no Parlamento), “o combate à corrupção faz-se com meios”. E é manifesta “a falta de
meios periciais e humanos”.
Juízes, MP e advogados também consideram que a estratégia
anticorrupção do Governo não passa das boas intenções. O bastonário da Ordem
dos Advogados alerta para os perigos dos acordos de suspensão e diminuição de
pena a quem se retrate e denuncie um crime, pelo risco de se apanhar o peixe
miúdo e deixar os grandes criminosos de fora. Para a secretária-geral da ASJ (Associação Sindical dos Juízes), a vontade de acabar com os
megaprocessos contém o risco de se perder o fio à meada dos casos, estando o
mal na falta de respostas concretas no combate às fraudes do financiamento dos
partidos e ilegalidades nas autarquias. E, para o presidente do SMMP (Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público), o
que falha é o combate eficaz à corrupção.
***
Todos põem o dedo na ferida da corrupção. Porém, nem a lei é
audaz – tem, ao invés, muitos alçapões – nem se criminaliza o enriquecimento
ilícito nem se suspeita dos verdadeiros sinais extenso de riqueza (mas questionam-se pequenos volumes de
entradas e saídas de dinheiro de cidadãos comuns). E entretemo-nos na criação de figuras perversas como
a delação premiada.
Ora é preciso abolir os megaprocessos e extinguir o TCIC, ou então dotá-lo dum corpo de juízes que permita verdadeiro sorteio e não dê a visão bipolar do tribunal, e criar uma audiência nacional. Por outro lado, em corrupção, há que valorizar a prova indireta desde que unívoca.
Não é ovo, mas
é branco e a galinha pô-lo! E… Quem vende cabritos e cabras não tem…
2021.04.10 – Louro
de Carvalho
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