É o que emerge
em caixa alta nalguns órgãos de comunicação social neste dia 30 de abril, com
base numa sondagem da Aximage para o JN, o DN e a TSF, que revela a descrença
generalizada no regime. Ou seja, a justiça está na ponta da corda do regime
que, tal como funciona, não concita a confiança do povo. E, segundo esta auscultação,
por amostragem, aos portugueses, a situação de descrença resulta de os
políticos, para 83% dos inquiridos, não serem devidamente fiscalizados e a justiça,
para 63%, não ter capacidade para investigar se são corruptos.
A meu ver, é
artificiosa a distinção entre políticos e operadores da justiça, porquanto os
tribunais são órgãos de soberania como o Presidente da República, o Parlamento
e o Governo, entrando todos eles no articulado constitucional que estabelece a organização
do poder político. Todavia, os formadores da opinião pública têm vindo a
classificar de políticos apenas aqueles e aquelas que ocupam os cargos que
resultam do sufrágio direto (Presidente da República, Assembleia da República,
assembleias legislativas regionais, assembleias de municipais) ou indireto do eleitorado (Governo,
governos regionais, juntas de freguesia…). E, como a
generalidade assim trata, não vou eu desafinar.
Entretanto,
há uma asserção que não é explicada: “os
políticos não são fiscalizados”. Resta saber quem é que fiscaliza os “políticos”.
Não cabe tal fiscalização às polícias nem aos tribunais e juízes, a menos que
haja suspeita fundada de ilícito criminal ou contraordenacional. Aliás, também
poderíamos dizer que os tribunais e os juízes não são fiscalizados. A verdade é
que o Governo é fiscalizado pelo Parlamento e, em certa medida, pelo Presidente
da República, que pode fazer cair o Governo dissolvendo o Parlamento ou
demitindo o Primeiro-Ministro quando estiver em causa o regular funcionamento
das instituições democráticas. O Parlamento não tem outra fiscalização que não
a dos eleitores em atos eleitorais ou a do Chefe de Estado em caso de dissolução.
Já o produto legislativo do Parlamento e do Governo é fiscalizado através do
veto presidencial ou da fiscalização prévia ou sucessiva da constitucionalidade
e da legalidade.
Quanto aos
tribunais e juízes, não se conhece outra fiscalização que não a do Conselho
Superior da Magistratura e, quanto às decisões, a fiscalização em sede de
recurso – sempre, nestes dois casos intrassistema, longe do escrutínio externo –
o que devia ser corrigido a bem da sanidade das instituições e da utilidade do funcionamento
em sistema de contrapesos.
Com efeito,
a separação de órgãos do poder político não impede, antes aconselha, o
escrutínio recíproco e a exigência do cumprimento das suas funções, sem ingerências
na área alheia, por parte de cada um. Mas a crítica deve ser bem-vinda e tida
como inevitável. Por isso, é que os conselhos superiores da magistratura (juízes) e do Ministério Público (procuradores) deveriam ser constituídos maioritariamente por
elementos indicados pelos outros órgãos de soberania e que pudessem, ao menos,
em certos casos, opor o veto a algumas deliberações; e, tal como o Parlamento,
o Governo e o Presidente da República deveriam ser dotados de serviços de
consultoria e assessoria.
O trabalho
de campo desta sondagem terminou a 25 de abril e não reflete, portanto, o
destaque que os partidos da oposição entenderam dar ao tema nas comemorações da
revolução. Os portugueses já tinham formado uma opinião negativa e, mesmo que a
sondagem não tenha perguntas sobre o caso em concreto, parece clara a
contaminação que a Operação Marquês
trouxe à avaliação, seja da Justiça, seja da eficácia com que combate a
corrupção. Seja como for, os inquiridos estão a revelar que os “tribunais e
juízes” são a instituição em que menos se confia, ficando quase a par o
Ministério Público (MP) e a
Procuradoria-Geral da República (PGR), que também
são bastante maltratados.
O cenário é
particularmente penoso para “tribunais e juízes”, a instituição em quem os
portugueses menos confiam: 62% fazem uma avaliação negativa, indo o destaque
para 4 quintos dos inquiridos com 65 ou mais anos, contra apenas 15% que
admitem que a confiança é grande ou muito grande.
No caso da
fiscalização aos políticos e detentores de altos cargos públicos, a descrença é
geral: 4 quintos dos portugueses acham que não está a fazer-se, com destaque
para os inquiridos entre 50 e 64 anos e os que têm rendimentos mais elevados (nove em
cada dez) e para os eleitores bloquistas e
liberais (fazem
praticamente o pleno).
O saldo é
negativo para os tribunais, tal como para as outras duas instituições igualmente
testadas no inquérito. A confiança no MP é pequena ou muito pequena entre 42%
da população – só 31% faz uma avaliação positiva –, ao passo que a PGR recebe
nota negativa de 35% dos inquiridos, sendo que 27% faz uma avaliação positiva. Nestes
dois últimos casos, a análise por segmentos indica que há algumas exceções:
entre os mais novos (18 a 34 anos) e os mais
pobres, são em maior número os que confiam no MP e na PGR. Da avaliação por parte
das escolhas partidárias, a PGR merece o benefício da dúvida entre os eleitores
do PS e do PSD. Mais à esquerda (BE e CDU), a
confiança é menor. Onde a desconfiança é mais forte é à direita (Chega e
Iniciativa Liberal), tanto nos
procuradores como nos juízes.
No passado
dia 12 de abril, Rui Rio recorreu ao que parecia ser um tremendismo retórico.
Poucos dias após o despacho do juiz Ivo Rosa relativo à Operação Marquês – que fez cair, pelas prescrições e falta de
provas, a maior parte das acusações sobre personalidades como José Sócrates e
Ricardo Salgado –, o líder do PSD denunciava uma justiça que “o povo não
entende” e que constitui “o pior exemplo da doença do regime”.
A julgar
pelos resultados do barómetro de abril da Aximage, o líder socialdemocrata está
em sintonia com a grande maioria dos portugueses. Mas não ficou sozinho nesse
palco por muito tempo. Na sessão comemorativa do 25 de Abril na Assembleia da
República, o combate à corrupção, a criminalização do enriquecimento ilícito, a
impunidade dos poderosos e a descrença na justiça dominaram os discursos, da
direita à esquerda. A exceção foi o PS, mas que viu, no dia 29, o Conselho de
Ministros aprovar a Estratégia Nacional contra a Corrupção, que alguns
consideram insuficiente e denotadora da falta de vontade política para minorar o
flagelo que depaupera o Estado e a sua eficácia e credibilidade.
Quando o que
está em causa é a capacidade de a justiça investigar a corrupção entre os
políticos e os altos cargos públicos, dois terços dizem que ela não existe. Os
mais pessimistas são os homens (mais 9% que as mulheres); a faixa etária dos 35 aos 49 anos e os que estão no
topo das classes sociais (7 em cada 10); e os
eleitores da nova direita liberal e radical (8 em cada 10).
A sondagem
também procurou avaliar o grau de confiança dos cidadãos numa série de
instituições com algum papel na legislação, fiscalização, denúncia,
investigação ou julgamento de casos de corrupção. O cenário não é animador para
a maioria. Mas é particularmente penoso para tribunais e juízes, como se viu, e
também para o MP e a PGR.
Também os
partidos, que têm uma função instrumental na democracia, não estão imunes da desconfiança.
Quando se pergunta aos portugueses se confiam neles para liderar os destinos do
país, 45% dão resposta negativa, sendo que 21% manifestam uma confiança grande
ou muito grande. E o saldo é positivo só entre os mais pobres e entre os
eleitores socialistas e comunistas.
À comunicação social, que alguns definem como um contrapoder e outros como
o quarto poder, muitos dos cidadãos a
obsequeiam com a sua desconfiança: 43% dão nota negativa, enquanto 27% mantêm a
confiança. Há, no entanto, dois segmentos da amostra em que é maior a confiança
do que a desconfiança: entre os mais pobres e entre os que vivem na Região
Norte.
Já a Assembleia da República, a “Casa da
Democracia” e “casa dos partidos” está mais bem cotada que os partidos
que a compõem. Não obstante, o saldo é negativo: 39% dizem que a sua confiança
no Parlamento para legislar para o bem comum é pequena ou muito pequena,
enquanto 34% dizem ser grande ou muito grande. O saldo só é positivo entre os
mais jovens, os habitantes da Área Metropolitana do Porto, os mais pobres e os
que votam no PS e na CDU.
Por seu
turno, o Governo, que emana da vontade dos partidos com assento na Assembleia
da República, consegue arrecadar um saldo positivo: são mais os que confiam (42%) do que aqueles que desconfiam (30%). Nesta matéria, a posição no espectro político faz a
diferença: à esquerda há mais confiança, com destaque para os eleitores
socialistas, enquanto à direita o saldo é negativo, com destaque para a direita
radical e liberal.
No atinente à Presidência da República, embora a questão não fosse
diretamente sobre Marcelo, mas sobre a
instituição em si, todavia, o contágio entre a personalidade e o cargo é
inevitável. E a Presidência da República é, sem dúvida, a instituição que gera
maior confiança entre os portugueses: 65% acreditam que é o garante da Constituição,
havendo apenas 12% a manifestar a sua descrença. É assim em todos os segmentos
da amostra, com destaque para os cidadãos mais velhos e os eleitores socialistas,
comunistas e socialdemocratas.
***
Isto
não é novo. Só a título de exemplo, é de referir:
A
9 de julho de 2013, a Lusa dava conta
de que um estudo pedido pela associação
Transparência e Integridade – coordenado por Luís de Sousa, do Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e feito por três investigadores de
universidades de Lisboa e da referida associação – referia que 70% dos
portugueses encaravam a corrupção como um problema sério ou muito sério no setor
público; 78% consideravam que a corrupção piorara em Portugal nos últimos dois
anos; 60% achavam que os contactos pessoais eram importantes para obter
serviços ou acelerar procedimentos na administração pública; e mais de metade (53%) considerava que “o Governo estava nas mãos dum
conjunto restrito de grupos económicos” e temia que as decisões políticas
fossem tomadas sem independência, favorecendo esses grandes interesses
económicos.
No respeitante
à justiça, 42% achavam que a justiça não protege de represálias quem denuncia a
corrupção ou colabora com as autoridades. De acordo com o estudo, 85% acreditavam
que o envolvimento dos cidadãos é fundamental no combate à corrupção.
Já no que
toca ao pagamento de subornos a nível da Europa, 11% dos inquiridos admitem ter
pago subornos em pelo menos um de 8 tipos de serviços públicos nos últimos 12
meses.
***
A
25 de outubro de 2016, um estudo da DECO revelava que o
desconhecimento e a desconfiança do sistema judicial estão ligados, em
particular nas mulheres, nos cidadãos com idades compreendidas entre os 30 e os
44 anos e em pessoas com escolaridade média e baixa.
Os resultados do estudo foram publicados na edição de novembro/dezembro da
revista “Dinheiro&direitos”.
E,
numa escala de 1 a 10, o índice de confiança no sistema de justiça é de 3,4 e,
mesmo no caso dos homens com mais de 45 anos, que se revelaram menos céticos e
com escolaridade elevada (cujo patamar mínimo era o bacharelato), o índice de confiança situa-se
abaixo de quatro.
À pergunta “Se for do interesse
nacional, o Governo pode alterar uma sentença do tribunal?”, sendo três as
hipóteses de resposta “verdadeiro”, “falso” e “não sei”, menos de metade dos
inquiridos (49%) respondeu corretamente, o que, para
os responsáveis do estudo, significa que a maior parte dos portugueses
desconhece ou tem dúvidas acerca da separação de poderes, um dos mais
importantes pilares da democracia; 34% dos inquiridos disseram não saber; e 17%
responderam “verdadeiro” àquela questão.
Questionados sobre se qualquer cidadão que tenha cometido um crime tem
acesso a advogado pago pelo Estado, 81% dos inquiridos responderam verdadeiro,
9% responderam “falso” e 10% disseram “não sei”.
De acordo com o estudo, o índice de conhecimento sobre a justiça (numa escala
de 0 a 5) era de 1,98, enquanto o de
confiança (de um a 10) se situava
nos 3,4 e o de confiança por género (também numa escalada de um a 10) se cifrava em 3,2 (no caso das mulheres) e de 3,6 (homens).
E 61% dos inquiridos tinham baixo nível de informação sobre o sistema
judicial, 29% um nível médio e apenas 10% têm um nível alto de informação. Relativamente
aos direitos dos cidadãos face à justiça, 54% dos inquiridos têm um nível de
informação baixo, 36% têm um nível de informação médio e 10% têm nível de
informação baixo. Quanto à confiança geral na justiça, 69% dos inquiridos
tinham um baixo grau de confiança, 24% tinham um grau médio e 7% dos inquiridos
tinham um grau elevado de confiança. E relativamente à independência do sistema
judicial, 77% tinham um nível de confiança baixo, 18% um nível de confiança
médio e 5% um nível de confiança alto.
No atinente ao nível de confiança relativa à questão sobre se se todos os
cidadãos são iguais perante a lei, 71% tinham um nível de confiança baixo, 22%
tinham um nível de confiança médio e 7% tinham um nível de confiança alto.
***
E,
a 29 de março de 2020, o Correio da Manhã (CM) referia que
8 em cada 10 portugueses não confiavam na
Justiça. Mais: as suspeitas de irregularidades nos sorteios para a distribuição de processos no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) aumentaram a
desconfiança de 46,3%. Para 32,4% nada mudou: a confiança já era baixa.
Tais suspeitas
foram levantadas após ser revelada uma troca de mensagens entre o ex-presidente
do TRL, Vaz das Neves e Rui Rangel, que indiciavam a viciação dum caso que
opunha o último ao CM, e fizeram
mossa na confiança que os portugueses têm na Justiça.
Quase 8 em
cada 10 inquiridos numa sondagem CM/Intercampus assumiam que pouco confiavam
no sistema judicial. Tínhamos então quase 80% dos portugueses com reduzida
confiança nesta área. Ainda assim, a maioria (56%) fez questão de acompanhar a discussão pública sobre o tema, mostrando-se “relativamente informados”.
***
Quer
isto dizer que a justiça carece de urgente reforma, mas que não pode ser
dissociada da urgente reforma de todo o Estado, sem que isso o venha a descaraterizar
como Estado de direito democrático e Estado social. E a justiça há de ser o
barómetro desse Estado.
2021.04.30 – Louro de Carvalho
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