sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dois terços dos portugueses não confiam nos tribunais e nos juízes

 

É o que emerge em caixa alta nalguns órgãos de comunicação social neste dia 30 de abril, com base numa sondagem da Aximage para o JN, o DN e a TSF, que revela a descrença generalizada no regime. Ou seja, a justiça está na ponta da corda do regime que, tal como funciona, não concita a confiança do povo. E, segundo esta auscultação, por amostragem, aos portugueses, a situação de descrença resulta de os políticos, para 83% dos inquiridos, não serem devidamente fiscalizados e a justiça, para 63%, não ter capacidade para investigar se são corruptos.

A meu ver, é artificiosa a distinção entre políticos e operadores da justiça, porquanto os tribunais são órgãos de soberania como o Presidente da República, o Parlamento e o Governo, entrando todos eles no articulado constitucional que estabelece a organização do poder político. Todavia, os formadores da opinião pública têm vindo a classificar de políticos apenas aqueles e aquelas que ocupam os cargos que resultam do sufrágio direto (Presidente da República, Assembleia da República, assembleias legislativas regionais, assembleias de municipais) ou indireto do eleitorado (Governo, governos regionais, juntas de freguesia…). E, como a generalidade assim trata, não vou eu desafinar.

Entretanto, há uma asserção que não é explicada: “os políticos não são fiscalizados”. Resta saber quem é que fiscaliza os “políticos”. Não cabe tal fiscalização às polícias nem aos tribunais e juízes, a menos que haja suspeita fundada de ilícito criminal ou contraordenacional. Aliás, também poderíamos dizer que os tribunais e os juízes não são fiscalizados. A verdade é que o Governo é fiscalizado pelo Parlamento e, em certa medida, pelo Presidente da República, que pode fazer cair o Governo dissolvendo o Parlamento ou demitindo o Primeiro-Ministro quando estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. O Parlamento não tem outra fiscalização que não a dos eleitores em atos eleitorais ou a do Chefe de Estado em caso de dissolução. Já o produto legislativo do Parlamento e do Governo é fiscalizado através do veto presidencial ou da fiscalização prévia ou sucessiva da constitucionalidade e da legalidade.

Quanto aos tribunais e juízes, não se conhece outra fiscalização que não a do Conselho Superior da Magistratura e, quanto às decisões, a fiscalização em sede de recurso – sempre, nestes dois casos intrassistema, longe do escrutínio externo – o que devia ser corrigido a bem da sanidade das instituições e da utilidade do funcionamento em sistema de contrapesos.     

Com efeito, a separação de órgãos do poder político não impede, antes aconselha, o escrutínio recíproco e a exigência do cumprimento das suas funções, sem ingerências na área alheia, por parte de cada um. Mas a crítica deve ser bem-vinda e tida como inevitável. Por isso, é que os conselhos superiores da magistratura (juízes) e do Ministério Público (procuradores) deveriam ser constituídos maioritariamente por elementos indicados pelos outros órgãos de soberania e que pudessem, ao menos, em certos casos, opor o veto a algumas deliberações; e, tal como o Parlamento, o Governo e o Presidente da República deveriam ser dotados de serviços de consultoria e assessoria.  

O trabalho de campo desta sondagem terminou a 25 de abril e não reflete, portanto, o destaque que os partidos da oposição entenderam dar ao tema nas comemorações da revolução. Os portugueses já tinham formado uma opinião negativa e, mesmo que a sondagem não tenha perguntas sobre o caso em concreto, parece clara a contaminação que a Operação Marquês trouxe à avaliação, seja da Justiça, seja da eficácia com que combate a corrupção. Seja como for, os inquiridos estão a revelar que os “tribunais e juízes” são a instituição em que menos se confia, ficando quase a par o Ministério Público (MP) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), que também são bastante maltratados. Demasiado apostados na justiça espetáculo!

O cenário é particularmente penoso para “tribunais e juízes”, a instituição em quem os portugueses menos confiam: 62% fazem uma avaliação negativa, indo o destaque para 4 quintos dos inquiridos com 65 ou mais anos, contra apenas 15% que admitem que a confiança é grande ou muito grande. Demasiado presunçosos e maus gestores de comunicação!

No caso da fiscalização aos políticos e detentores de altos cargos públicos, a descrença é geral: 4 quintos dos portugueses acham que não está a fazer-se, com destaque para os inquiridos entre 50 e 64 anos e os que têm rendimentos mais elevados (nove em cada dez) e para os eleitores bloquistas e liberais (fazem praticamente o pleno).

O saldo é negativo para os tribunais, tal como para as outras duas instituições igualmente testadas no inquérito. A confiança no MP é pequena ou muito pequena entre 42% da população – só 31% faz uma avaliação positiva –, ao passo que a PGR recebe nota negativa de 35% dos inquiridos, sendo que 27% faz uma avaliação positiva. Nestes dois últimos casos, a análise por segmentos indica que há algumas exceções: entre os mais novos (18 a 34 anos) e os mais pobres, são em maior número os que confiam no MP e na PGR. Da avaliação por parte das escolhas partidárias, a PGR merece o benefício da dúvida entre os eleitores do PS e do PSD. Mais à esquerda (BE e CDU), a confiança é menor. Onde a desconfiança é mais forte é à direita (Chega e Iniciativa Liberal), tanto nos procuradores como nos juízes.

No passado dia 12 de abril, Rui Rio recorreu ao que parecia ser um tremendismo retórico. Poucos dias após o despacho do juiz Ivo Rosa relativo à Operação Marquês – que fez cair, pelas prescrições e falta de provas, a maior parte das acusações sobre personalidades como José Sócrates e Ricardo Salgado –, o líder do PSD denunciava uma justiça que “o povo não entende” e que constitui “o pior exemplo da doença do regime”.

A julgar pelos resultados do barómetro de abril da Aximage, o líder socialdemocrata está em sintonia com a grande maioria dos portugueses. Mas não ficou sozinho nesse palco por muito tempo. Na sessão comemorativa do 25 de Abril na Assembleia da República, o combate à corrupção, a criminalização do enriquecimento ilícito, a impunidade dos poderosos e a descrença na justiça dominaram os discursos, da direita à esquerda. A exceção foi o PS, mas que viu, no dia 29, o Conselho de Ministros aprovar a Estratégia Nacional contra a Corrupção, que alguns consideram insuficiente e denotadora da falta de vontade política para minorar o flagelo que depaupera o Estado e a sua eficácia e credibilidade.

Quando o que está em causa é a capacidade de a justiça investigar a corrupção entre os políticos e os altos cargos públicos, dois terços dizem que ela não existe. Os mais pessimistas são os homens (mais 9% que as mulheres); a faixa etária dos 35 aos 49 anos e os que estão no topo das classes sociais (7 em cada 10); e os eleitores da nova direita liberal e radical (8 em cada 10).

A sondagem também procurou avaliar o grau de confiança dos cidadãos numa série de instituições com algum papel na legislação, fiscalização, denúncia, investigação ou julgamento de casos de corrupção. O cenário não é animador para a maioria. Mas é particularmente penoso para tribunais e juízes, como se viu, e também para o MP e a PGR.

Também os partidos, que têm uma função instrumental na democracia, não estão imunes da desconfiança. Quando se pergunta aos portugueses se confiam neles para liderar os destinos do país, 45% dão resposta negativa, sendo que 21% manifestam uma confiança grande ou muito grande. E o saldo é positivo só entre os mais pobres e entre os eleitores socialistas e comunistas.

À comunicação social, que alguns definem como um contrapoder e outros como o quarto poder, muitos dos cidadãos a obsequeiam com a sua desconfiança: 43% dão nota negativa, enquanto 27% mantêm a confiança. Há, no entanto, dois segmentos da amostra em que é maior a confiança do que a desconfiança: entre os mais pobres e entre os que vivem na Região Norte.

Já a Assembleia da República, a “Casa da Democracia” e “casa dos partidos” está mais bem cotada que os partidos que a compõem. Não obstante, o saldo é negativo: 39% dizem que a sua confiança no Parlamento para legislar para o bem comum é pequena ou muito pequena, enquanto 34% dizem ser grande ou muito grande. O saldo só é positivo entre os mais jovens, os habitantes da Área Metropolitana do Porto, os mais pobres e os que votam no PS e na CDU.

Por seu turno, o Governo, que emana da vontade dos partidos com assento na Assembleia da República, consegue arrecadar um saldo positivo: são mais os que confiam (42%) do que aqueles que desconfiam (30%). Nesta matéria, a posição no espectro político faz a diferença: à esquerda há mais confiança, com destaque para os eleitores socialistas, enquanto à direita o saldo é negativo, com destaque para a direita radical e liberal.

No atinente à Presidência da República, embora a questão não fosse diretamente sobre Marcelo, mas sobre a instituição em si, todavia, o contágio entre a personalidade e o cargo é inevitável. E a Presidência da República é, sem dúvida, a instituição que gera maior confiança entre os portugueses: 65% acreditam que é o garante da Constituição, havendo apenas 12% a manifestar a sua descrença. É assim em todos os segmentos da amostra, com destaque para os cidadãos mais velhos e os eleitores socialistas, comunistas e socialdemocratas.

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Isto não é novo. Só a título de exemplo, é de referir:

A 9 de julho de 2013, a Lusa dava conta de que um estudo pedido pela associação Transparência e Integridade – coordenado por Luís de Sousa, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e feito por três investigadores de universidades de Lisboa e da referida associação – referia que 70% dos portugueses encaravam a corrupção como um problema sério ou muito sério no setor público; 78% consideravam que a corrupção piorara em Portugal nos últimos dois anos; 60% achavam que os contactos pessoais eram importantes para obter serviços ou acelerar procedimentos na administração pública; e mais de metade (53%) considerava que “o Governo estava nas mãos dum conjunto restrito de grupos económicos” e temia que as decisões políticas fossem tomadas sem independência, favorecendo esses grandes interesses económicos.

No respeitante à justiça, 42% achavam que a justiça não protege de represálias quem denuncia a corrupção ou colabora com as autoridades. De acordo com o estudo, 85% acreditavam que o envolvimento dos cidadãos é fundamental no combate à corrupção.

Já no que toca ao pagamento de subornos a nível da Europa, 11% dos inquiridos admitem ter pago subornos em pelo menos um de 8 tipos de serviços públicos nos últimos 12 meses.

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A 25 de outubro de 2016, um estudo da DECO revelava que o desconhecimento e a desconfiança do sistema judicial estão ligados, em particular nas mulheres, nos cidadãos com idades compreendidas entre os 30 e os 44 anos e em pessoas com escolaridade média e baixa.

Os resultados do estudo foram publicados na edição de novembro/dezembro da revista “Dinheiro&direitos”.

E, numa escala de 1 a 10, o índice de confiança no sistema de justiça é de 3,4 e, mesmo no caso dos homens com mais de 45 anos, que se revelaram menos céticos e com escolaridade elevada (cujo patamar mínimo era o bacharelato), o índice de confiança situa-se abaixo de quatro.

À pergunta “Se for do interesse nacional, o Governo pode alterar uma sentença do tribunal?”, sendo três as hipóteses de resposta “verdadeiro”, “falso” e “não sei”, menos de metade dos inquiridos (49%) respondeu corretamente, o que, para os responsáveis do estudo, significa que a maior parte dos portugueses desconhece ou tem dúvidas acerca da separação de poderes, um dos mais importantes pilares da democracia; 34% dos inquiridos disseram não saber; e 17% responderam “verdadeiro” àquela questão.

Questionados sobre se qualquer cidadão que tenha cometido um crime tem acesso a advogado pago pelo Estado, 81% dos inquiridos responderam verdadeiro, 9% responderam “falso” e 10% disseram “não sei”.

De acordo com o estudo, o índice de conhecimento sobre a justiça (numa escala de 0 a 5) era de 1,98, enquanto o de confiança (de um a 10) se situava nos 3,4 e o de confiança por género (também numa escalada de um a 10) se cifrava em 3,2 (no caso das mulheres) e de 3,6 (homens).

E 61% dos inquiridos tinham baixo nível de informação sobre o sistema judicial, 29% um nível médio e apenas 10% têm um nível alto de informação. Relativamente aos direitos dos cidadãos face à justiça, 54% dos inquiridos têm um nível de informação baixo, 36% têm um nível de informação médio e 10% têm nível de informação baixo. Quanto à confiança geral na justiça, 69% dos inquiridos tinham um baixo grau de confiança, 24% tinham um grau médio e 7% dos inquiridos tinham um grau elevado de confiança. E relativamente à independência do sistema judicial, 77% tinham um nível de confiança baixo, 18% um nível de confiança médio e 5% um nível de confiança alto.

No atinente ao nível de confiança relativa à questão sobre se se todos os cidadãos são iguais perante a lei, 71% tinham um nível de confiança baixo, 22% tinham um nível de confiança médio e 7% tinham um nível de confiança alto.

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E, a 29 de março de 2020, o Correio da Manhã (CM) referia que 8 em cada 10 portugueses não confiavam na Justiça. Mais: as suspeitas de irregularidades nos sorteios para a distribuição de processos no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) aumentaram a desconfiança de 46,3%. Para 32,4% nada mudou: a confiança já era baixa.

Tais suspeitas foram levantadas após ser revelada uma troca de mensagens entre o ex-presidente do TRL, Vaz das Neves e Rui Rangel, que indiciavam a viciação dum caso que opunha o último ao CM, e fizeram mossa na confiança que os portugueses têm na Justiça.

Quase 8 em cada 10 inquiridos numa sondagem CM/Intercampus assumiam que pouco confiavam no sistema judicial. Tínhamos então quase 80% dos portugueses com reduzida confiança nesta área. Ainda assim, a maioria (56%) fez questão de acompanhar a discussão pública sobre o tema, mostrando-se  “relativamente informados”.

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Quer isto dizer que a justiça carece de urgente reforma, mas que não pode ser dissociada da urgente reforma de todo o Estado, sem que isso o venha a descaraterizar como Estado de direito democrático e Estado social. E a justiça há de ser o barómetro desse Estado.

2021.04.30 – Louro de Carvalho   

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