sexta-feira, 23 de abril de 2021

Decisão instrutória da Operação Marquês corre risco de nulidades

 

Poucos dias após a comunicação da decisão instrutória do juiz de instrução criminal (JIC) Ivo Rosa – que pronuncia para julgamento o ex-primeiro-ministro José Sócrates e o empresário Carlos Santos Silva por três crimes de branqueamento de capitais e outros três de falsificação de documentos, bem como o ex-presidente do BES Ricardo Salgado, por três crimes de abuso de confiança, o antigo ministro Armando Vara por lavagem de dinheiro (os quatro por crimes económico-financeiros) e o ex-motorista de Sócrates João Perna por posse ilegal de arma – soube-se que os procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto entregaram ao mesmo JIC requerimento a pedir 120 dias para o recurso Para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), referindo que a recusa a este alargamento (o dobro previsto na lei) pode ser inconstitucional.

Rosário Teixeira tentou fazê-lo no final da audiência, que foi transmitida em direto por vários meios de comunicação social, mas o JIC pediu-lhe que o fizesse por escrito.

Os 28 arguidos (19 pessoas singulares e 9 empresas) foram acusados de um total de 189 crimes, entre corrupção, branqueamento, fraude fiscal e falsificação de documento. Porém, o JIC entendeu que só há prova em relação a 17 desses crimes. E, dos 28 arguidos, só cinco vão a julgamento. Dois deles, o motorista de Sócrates e Ricardo Salgado, serão julgados em processos autónomos, sendo que Salgado não queria ser julgado sozinho. A defesa deste pediu a nulidade da decisão por violação do contraditório prévio, no que não foi atendida porque a separação dos processos não contende com as garantias de defesa do arguido.

Ao invés, o JIC decidiu não levar a julgamento Zeinal Bava e Henrique Granadeiro (ex-líderes da PT), Helder Bataglia (empresário) e Joaquim Barroca (ex-administrador do Grupo Lena), entre outros.

No requerimento, os magistrados pedem que o prazo de 30 dias que o Ministério Público (MP) tem para recorrer seja estendido por mais 90, num total de 120. A lei diz que o prazo de 30 dias pode ser duplicado, mas os procuradores consideram que tal seria “desrazoável”, uma vez que restringiria o direito ao recurso e à intervenção do MP no processo.

Como recordam no documento já junto ao processo, além da complexidade do processo – quer pelo número de arguidos, quer pela sua dimensão – o caso foi já considerado “exceção dentro dos casos excecionais”. E por isso, em vários momentos, os prazos foram alargados, tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução. Por exemplo, passaram 11 meses do despacho de acusação até à abertura de instrução, tendo o próprio JIC pedido mais tempo para poder decidir. Nestes termos, alegam que não permitir mais tempo ao MP para recorrer poderá mesmo ser inconstitucional, pois não dar mais tempo para os procuradores recorrerem do despacho do JIC violaria o princípio constitucional do processo equitativo assegurado aos sujeitos processuais.

Posteriormente, os procuradores pediram a nulidade da decisão instrutória, considerando que na pronúncia “houve alteração substancial dos factos”, como disse à Lusa fonte ligada ao processo.

Segundo a mesma fonte, o pedido de nulidade “tem a ver com a descrição que consta na decisão sobre o crime precedente, que é a corrupção e que conduz ao branqueamento” de capitais. “Do branqueamento de capitais faz parte o crime precedente, isto é, o facto ilícito de base”, como foi referido à Lusa, observando que no despacho instrutório, “os factos que descrevem o crime de corrupção mudam” e, ao mudarem, “muda também o crime de branqueamento em causa”.

Nesta arguição de nulidade, é apontado o facto de, na acusação, o empresário Carlos Santos Silva estar acusado de corrupção passiva e agora aparecer como “corruptor ativo”, do ex-primeiro-ministro. No entendimento do MP, isto constitui uma alteração dos factos, sendo agora questão decisiva determinar com rigor se essa alteração é substancial ou não. E, se o JIC rejeitar o pedido de nulidade da decisão, o MP pode recorrer desse despacho para o TRL.

A mesma fonte adiantou também que o juiz de instrução ainda não se pronunciou sobre o prazo de 120 dias pedido pelo MP para apresentar recurso da não ida a julgamento de vários dos 28 arguidos que estavam acusados.

Por outro lado, o MP não se dispensa de, como lhe convém, mimosear a decisão do juiz com adjetivação negativa, pagando com a mesma moeda a adjetivação com que o juiz apodou a acusação. Assim, os procuradores alegam que a pronúncia “reproduz de forma interpolada, um conjunto de artigos da acusação, com escassa, mas desajeitada, alteração de detalhes”.

Entretanto, segundo notícias recentes, o advogado de Sócrates, vai também arguir nulidades relacionadas com a decisão instrutória, por entender que o juiz não deu prazo à defesa para esta se pronunciar sobre o que considera ser novos factos trazidos pelo despacho. Tais alterações relacionam-se com o facto de o empresário Carlos Santos Silva, que era apontado, na acusação como o testa-de-ferro do antigo primeiro-ministro, surgir agora como o corruptor de Sócrates.

Com efeito, o juiz decidiu que Sócrates, acusado de 31 ilícitos, vai a julgamento por 3 crimes de branqueamento de capitais e 3 de falsificação de documentos, os mesmos pelos quais o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva está pronunciado, dando como provado que empresário corrompeu o antigo chefe de Governo, configurando um crime de corrupção ativa sem demonstração de ato concreto, que considerou prescrito.

Alega, pois, a defesa de José Sócrates que os seis crimes imputados ao ex-primeiro-ministro “são outros, novos, diferentes, opostos e contraditórios” relativamente aos factos da acusação.

No requerimento entregue ao JIC, a defesa do ex-primeiro-ministro considera que a imputação de três crimes de branqueamento e outros três de falsificação de documento pressupõe alterações substanciais de factos e que, por isso, a pronúncia está viciada de nulidade.

Segundo o advogado Pedro Delille, o juiz substituiu os crimes constantes na acusação por um crime de corrupção passiva sem demonstração de ato concreto, transformando o arguido em corruptor quando, para o MP, este figurava como corrompido e coautor na prática dos crimes, isto é, como intermediário ou testa de ferro, quando, para a acusação, relativamente ao grupo Lena, o corruptor ativo era o seu administrador Joaquim Barroca.

O advogado alerta que, na base da decisão judicial de mandar Sócrates e o seu amigo para julgamento, estão factos que indiciam que a vantagem tem origem em Santos Silva “e que é ele o dono também da fortuna”, enquanto na acusação “o dono da vantagem era originariamente o Grupo Lena e o dono da fortuna” José Sócrates.

Ademais, a defesa entende que o direito de defesa de Sócrates foi violado por não ter sido dado prazo para se pronunciar sobre a alteração dos factos, que considera substancial. Contudo, no entendimento da defesa de Sócrates, estas alterações não são meras irregularidades, mas sim nulidades, pelo que solicitou uma dilação do prazo para “apresentar, aprofundar e completar, ou mesmo corrigir e alterar, a fundamentação” plasmada no requerimento. No mesmo documento é também solicitado que lhe seja concedido mais tempo para apresentar os argumentos da defesa.

***

Em síntese, vão a julgamento e pelos crimes que lhes são imputados: Sócrates, por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos, mas era acusado de 31 crimes (3 de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, 9 de falsificação de documento e 3 de fraude fiscal qualificada); Santos Silva, por 3 crimes de branqueamento de capitais e 3 de falsificação de documento (era acusado de 33 crimes); Ricardo Salgado, por 3 crimes de abuso de confiança (era acusado de 21 crimes), sendo que a decisão instrutória o despronuncia dos restantes crimes que lhe eram imputados: corrupção ativa de titular de cargo político (um), corrupção ativa (dois), branqueamento de capitais (nove), falsificação de documento (três) e fraude fiscal qualificada (três); Armando Vara, ex-ministro e antigo administrador da CGD, por um crime de branqueamento, tendo sido ilibado de um de corrupção passiva de titular de cargo político, um de branqueamento de capitais e dois de fraude fiscal qualificada; e João Perna,  ex-motorista de José Sócrates, por detenção de arma proibida, tendo sido despronunciado de um crime de branqueamento de capitais.

Ivo Rosa determinou, ainda, que Sócrates e Carlos Santos Silva sejam julgados em conjunto por um tribunal coletivo e que Salgado e Armando Vara sejam julgados em processos autónomos. João perna será julgado por um juiz singular.

Não vão a julgamento (ou não foram pronunciados pela totalidade dos crimes): Rui Mão de Ferro, sócio administrador e gerente de diversas empresas (acusado de branqueamento de capitais e falsificação de documento); Sofia Fava, ex-esposa de Sócrates (acusada de branqueamento de capitais e falsificação de documento); Inês Pontes do Rosário, mulher de Carlos Silva (acusada de branqueamento de capitais); José Paulo Pinto de Sousa, primo de Sócrates (acusado de branqueamento de capitais); José Luís Ribeiro, ex-funcionário das Infraestruturas de Portugal (acusado de corrupção passiva e branqueamento de capitais); Luís Ferreira Marques, ex-funcionário das Infraestruturas de Portugal (acusado de corrupção passiva e branqueamento de capitais); Joaquim Barroca, ex-administrador do Grupo Lena (acusado de corrupção ativa de titular de cargo político, corrupção ativa, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada); Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT (acusado de corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada); Henrique Granadeiro, ex-gestor da PT (acusado de corrupção passiva, branqueamento de capitais, peculato, abuso de confiança e fraude fiscal qualificada); Helder Bataglia, empresário (acusado de branqueamento de capitais, falsificação de documento, abuso de confiança e fraude fiscal qualificada); Rui Horta e Costa, ex-administrador de Vale do Lobo (acusado de corrupção ativa de titular de cargo político, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada); José Diogo Gaspar Ferreira, ex-diretor executivo do empreendimento Vale de Lobo (acusado de corrupção ativa de titular de cargo político, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada); e Gonçalo Trindade Ferreira, advogado (acusado de branqueamento de capitais e falsificação de documento).

E não são pronunciadas as empresas Lena Engenharia e Construções, SA; Lena Engenharia e Construção SGPS; Lena SGPS;  XLM-Sociedade de Estudos e Projetos Lda; RMF-Consulting; Gestão e Consultoria Estratégica Lda; XMI;  Oceano Clube – Empreendimentos Turísticos do Algarve SA; Vale do Lobo Resort Turístico de Luxo SA; e Pepelan.

Entre os crimes que caíram, contam-se: dois crimes de falsificação de documento imputados aos arguidos Sócrates e Santos Silva, tendo Ivo Rosa considerado que o juiz de instrução, Carlos Alexandre, não tinha poder para autorizar a diligência que foi feita junto do Banco de Portugal; crimes de corrupção imputados a Sócrates nos concursos da Parque Escolar e TGV (concurso da linha ferroviária de alta velocidade Poceirão/Caia), não tendo o JIC topado ilegalidades nas acusações apresentadas pelo MP e não ficando provado que Sócrates tivesse qualquer intervenção junto dos ministros das Obras Públicas e das Finanças, bem como junto do júri dos concursos, para adjudicação das empreitadas em causa; favorecimento ao Grupo Lena, imputado a Sócrates e Santos Silva, nos negócios da construção de habitação social na Venezuela, tendo concluído Ivo Rosa pela inexistência deste crime.

Por falta de indícios caíram as acusações de corrupção contra Vara, Gaspar Ferreira e Horta e Costa, bem como os crimes de branqueamento de capitais associados.

O JIC considerou ainda não ser possível concluir que Sócrates manteve contactos com as autoridades brasileiras e com o ex-Presidente do Brasil Lula da Silva para beneficiar Salgado no negócio da PT relativo à operadora Oi. E entendeu também que o antigo primeiro-ministro não pode ser julgado pelos três crimes de fraude fiscal, visto que, para tal, seria obrigado a “autodenunciar-se”, caso declarasse os ganhos ilícitos.

Além de tudo isto, Sócrates foi despronunciado do crime de corrupção passiva na acusação de favorecimento do grupo Lena, pois, segundo a decisão instrutória, o crime de corrupção passiva de titular de cargo político em coautoria com Santos Silva e Grupo Lena estava prescrito. E foram despronunciados, na acusação de corrupção envolvendo o Grupo Lena, Joaquim Barroca (ex-administrador do Grupo) e o empresário Santos Silva, alegado testa de ferro de Sócrates.

Prescreveu o crime de corrupção associado ao Grupo Espírito Santo (GES), imputado a Sócrates, por subornos alegadamente recebidos de Salgado no âmbito dos interesses do GES na Portugal Telecom. Ivo Rosa diz que este crime prescreveu em 2015, dois anos antes de Sócrates ter sido confrontado com a acusação. Era imputado a Salgado um crime de corrupção ativa e a Sócrates um crime de corrupção passiva, que prescreveram. E Ivo Rosa considera que não fica provada a intervenção de Sócrates na OPA Sonae/PT.

Prescreveu também o crie de corrupção passiva imputada a Sócrates, em coautoria com Vara, sobre o financiamento pela Caixa Geral de Depósitos do empreendimento Vale do Lobo.

Ivo Rosa admitiu que os empréstimos feitos por Santos Silva a Sócrates configuravam o crime de corrupção, mas que o crime prescreveu.

É ainda de recordar que Ivo Rosa remeteu para o MP a investigação do sorteio que entregou o processo a Carlos Alexandre e decidiu que as escutas do processo Face Oculta não podem migrar e ser usadas na Operação Marquês.

***

Ora, se a defesa de Sócrates pode interpor recurso da decisão de Ivo Rosa, porque não o faz? Do meu ponto de vista, parece que o pedido de nulidade só fará sentido se a decisão, nessa parte, for irrecorrível. Quanto ao MP, percebe-se que pretenda o alargamento do prazo para recorrer, dada a complexidade do processo. Porém, o pedido de nulidade, de cuja recusa é admissível recurso, só parece uma manobra dilatória. Perdemos tempo e dinheiro.

Já não bastava ficarem de fora os “grandes” e os crimes não se provarem ou prescreverem, a não ser que o TRL reabilite toda a acusação ou a sua maior parte (as listagens apresentadas supra bem evidenciam a crueza dos atos que o MP não terá demonstrado), para ficarmos a assistir a piropadas, manobras dilatórias e guerras entre operadores da justiça, que teima em não se reformar e a morder só os descalços! Entretanto, encanta-se com o espetáculo e os megaprocessos…, a parra em vez da uva, a palha em vez do grão, o farelo em vez da farinha! E o povo paga.

2021.04.23 – Louro de Carvalho

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