No próximo
dia 3 de maio, o Papa presidirá ao consistório ordinário para a canonização, entre
outros, do religioso francês Charles de Foucauld, eremita no deserto do Saara e
pioneiro do diálogo com outras culturas e religiões, que foi assassinado em
1916, em Tamanrasset (Argélia).
Nascido em
Estrasburgo, França, a 15 de setembro de 1858, Charles de Foucauld ficou órfão
aos 6 anos, crescendo com a sua irmã Marie na casa do avô materno. Na
adolescência, afastou-se da fé. Com efeito, nas suas biografias oficiais, é
descrito como “um amante dos prazeres e de uma vida fácil”. Aos 20 anos herdou
de seu avô a herança familiar.
Ao ingressar
na carreira militar, foi enviado inicialmente para a Argélia e depois para a
Tunísia. O testemunho de fé dos muçulmanos despertou nele esta questão: “Mas Deus existe?”. A esta pergunta respondeu:
“Meu Deus, se tu existes, deixa-me
conhecer-Te”.
Ao retornar
à França, quatro anos depois, demitiu-se do Exército, passando então a viajar
para explorar países e conhecer pessoas. Guiado na sua vida espiritual por Dom
Huvelin, encontrou Deus em outubro de 1886, aos 28 anos: “Como acreditava que Deus existia, compreendeu que não poderia fazer
outra coisa senão viver só para Ele”.
Assim, após vida
atribulada e boémia, Foucauld converteu-se, na idade adulta, e ingressou na
vida religiosa, vivendo de forma radical, como trapista, embora não num
convento, mas num dos desertos africanos.
Passado um
período de tempo na Terra Santa, em Nazaré, volta a Paris, sendo ordenado
sacerdote aos 43 anos, em 1901, na Diocese de Viviers, após o que é enviado
como missionário para a Argélia, onde se estabelece entre os nativos Beni
Abbes, transferindo-se para o coração do deserto do Saara entre a população Tuaregue:
“Seria necessário que muitos religiosos e
religiosas e bons cristãos – escrevia o Padre Charles – vivessem aqui para fazer contacto com todos
esses pobres muçulmanos e instruí-los”. “Os tuaregues perto de mim dão a maior doçura e satisfação; entre eles
tenho excelentes amigos”. Mas, volvidos 10 anos – observa em seus escritos –
“nem mesmo um único convertido! Devemos orar, trabalhar e ser pacientes”.
No deserto
argelino, viveu uma vida de oração – meditando continuamente a Sagrada
Escritura – e de contemplação, no desejo incessante de ser o “irmão universal”
de cada pessoa, à imagem do amor de Jesus por cada homem.
Fascinado
pela vida no deserto africano, que conhecia enquanto militar, o
sacerdote-eremita instalou-se na região do Saara, onde meditava e traduzia os
Evangelhos para os tuaregues, passando grande parte do tempo em adoração
eucarística. Entre os pobres da região e os militares que passavam por aquela
zona, Foucauld chegou a receber diariamente uma centena de pessoas no seu
“mosteiro-eremitério”.
Porém, no
ano de 1916, a guerra na Europa chegou ao deserto do Saara e o Padre Charles foi
vítima duma emboscada a 1 de dezembro de 1916. Um grupo de rebeldes atacou o
eremitério onde o sacerdote vivia, para o fazer refém, mas um adolescente desse
grupo assassinou-o.
Foi
beatificado em Roma por Bento XVI, a 13 de novembro de 2005. E a data da
canonização será revelada no próximo consistório presidido por Francisco.
Os seus
filhos e filhas espirituais estão espalhados pelo mundo. Em Portugal, existe
uma pequena fraternidade dos Irmãos de Jesus e o ramo feminino das Irmãzinhas
de Jesus, que vivem do exemplo de vida deste religioso, que ofereceu a vida
pelos mais pobres e esquecidos.
***
De acordo com nota divulgada pela Sala de Imprensa da Santa Sé, na segunda-feira, 3 de maio, às 10 horas, na Sala do
Consistório do Palácio Apostólico, o Santo Padre presidirá a celebração da Hora
Tércia e do Consistório Público Ordinário para a Causa de Canonização dos
Beatos: Lázaro, chamado Devasahayam, leigo, mártir; César de Bus, sacerdote,
fundador da Congregação dos Padres da Doutrina Cristã e da Congregação das
Filhas da Doutrina, também conhecidas como Ursulinas; Luigi Maria Palazzolo,
sacerdote, fundador do Instituto das Irmãs Poverelle – Istituto Palazzolo; Giustino
Maria da Santíssima Trindade Russolillo, sacerdote, fundador da Sociedade das
Divinas Vocações e da Congregação das Irmãs das Divinas Vocações; Charles de
Foucauld, sacerdote diocesano; Maria Francisca di Gesù (no século:
Anna Maria Rubatto), fundadora
das Irmãs Terciárias Capuchinhas de Loano; e Maria Domenica Mantovani,
cofundadora e primeira Superiora Geral do Instituto das Pequenas Irmãs da
Sagrada Família. Na ocasião, o Santo Padre anunciará a data ou as datas em que
proclamará os novos Santos durante Celebração Eucarística a realizar no
Vaticano.
***
Como refere
o Vatican News, Charles de Foucauld é
uma figura muito querida pelo Papa. Na Encíclica “Fratelli tutti”, Francisco define-o como uma “pessoa
de profunda fé que, a partir da sua intensa experiência de Deus, fez um caminho
de transformação a ponto de se sentir irmão de todos”. E, sobre o
franciscanismo do Beato, escreveu:
“A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das
criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma
rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na
vida do Beato Charles de Foucauld e seus discípulos”.
Já na Missa a
que presidiu na capela da Casa de Santa Marta, no centenário da morte do futuro
Santo, a 1 de dezembro de 2016, o Papa afirmou que Charles de Foucauld foi “um
homem que venceu muitas resistências e deu um testemunho que fez bem à Igreja”.
Por seu turno,
Dom Paul Desfarges, Arcebispo de Argel, capital da Argélia, ao comentar a Encíclica,
disse que o facto de o Papa ter escrito que se inspirou no Beato Charles de
Foucauld para o seu documento é importante “porque a relação com o outro,
intensa e plena” que o futuro Santo “viveu até o fim, é o que dá vida à
fraternidade e faz a Igreja viver mais plenamente”.
E o Cardeal Cristóbal López Romero, arcebispo de Rabat, Marrocos, ao comentar o anúncio
do reconhecimento por parte do Papa Francisco de um milagre atribuído à
intercessão do religioso francês falecido na Argélia, em 1916, assegurava, a 30
de maio de 2020, que a decisão do Papa Francisco de canonizar Charles de
Foucauld canoniza, por assim dizer, o estilo de vida cristã da Igreja do
Magrebe, cujo carisma tem as suas raízes no norte da África. A este respeito, o
purpurado escreve, em carta aos fiéis:
“É um grande estímulo para nossa ação pastoral, é a consagração de uma
espiritualidade que apoiamos e promovemos”.
O cardeal
López Romero recorda que na escola de Charles de Foucauld formaram-se padre
Charles-André Poissonnier e padre Albert Peyriguère, que deixaram uma forte
marca na Diocese de Rabat, fortalecendo aquela que o próprio cardeal chama de “espiritualidade
e tradição franciscano-foucaultiana”.
O Arcebispo
de Rabat convidava, naquela data, os fiéis da diocese a acompanharem o Rosário
que o Papa Francisco iria recitar na Gruta de Lourdes nos Jardins Vaticanos, no
final da tarde de sábado, em conexão com vários santuários marianos em redor do
mundo, e que devido à emergência coronavírus tiveram que interromper as suas
atividades e peregrinações. A transmissão ao vivo estaria disponível no portal
da arquidiocese e seus canais nas redes sociais.
Por fim, na
esperança de que as igrejas reabrissem para o culto com os fiéis nos próximos
dias e que, em 7 de junho, a Solenidade da Santíssima Trindade pudesse ser
celebrada com a presença dos fiéis, o que veio a suceder, o cardeal convidava
as paróquias a organizarem-se no respeito pelas medidas anticovid-19 e exortava
a refletir sobre a experiência de confinamento devido à emergência sanitária e
à doença que causou a pandemia.
Não será excessivo
recordar o que disse São João Paulo II na Mesquita Omeyade, em Damasco, na
Síria, a 6 de maio de 2001:
“O Irmão Charles, que, para traduzir os Evangelhos,
aprendeu a língua dos Tuaregues, compondo um léxico e uma gramática nesse
idioma, não exorta porventura as pessoas que se inspiram no seu carisma a
entrar em diálogo com as culturas dos homens de hoje e a percorrer o caminho do
encontro com as outras tradições religiosas, em particular com o Islão? Assim,
as diferentes comunidades religiosas serão verdadeiramente como comunidades
comprometidas num diálogo de respeito, e nunca mais como comunidades em
conflito.”.
***
É de recordar que a diocese de Setúbal assinalou o centenário da morte do
Beato Charles com uma Eucaristia, uma exposição de pintura e a estreia de um filme.
Efetivamente,
a programação evocativa dos 100 anos da morte de Charles de Foucauld começou
com uma celebração eucarística em memória do beato francês, presidida pelo Bispo
de Setúbal, Dom José Ornelas Carvalho, na Igreja de Nossa Senhora da Anunciada,
às 16 horas. Em seguida, a Comissão de Arte Sacra da Diocese de Setúbal (CDASS) inaugurou a exposição “Nazareth”, na Biblioteca Pública Municipal setubalense, que
organizou em parceria com a Comunidade de Setúbal da Fraternidade dos Irmãos de
Jesus – no total, 30 obras da autoria do pintor L. Sadino, que pretenderam
revisitar a vida e a obra do sacerdote assassinado a 1 de dezembro de 1916 por
tuaregues rebeldes, na Argélia e que ficaram expostas até 4 de janeiro de 2017.
E, para encerrar a exposição, procedeu-se à exibição do filme “Dos Homens e dos Deuses”, de Xavier
Beauvois, a partir das 18 horas, na Biblioteca Pública Municipal de Setúbal,
com comentários do jornalista da RTP Mário Augusto.
Da nota biográfica então difundida, destaca-se:
O bem-aventurado Charles de Foucauld tornou-se,
na infância, uma criança muito culta, lendo todo o tipo de livros, mas na
adolescência viveu uma crise de fé.
Ingressou na
carreira militar na escola francesa de St. Cyr. Viveu uma vida mundana, de banquete
em banquete, mantendo várias relações amorosas. Mais tarde, saiu do Exército e,
em 1883, disfarçado de judeu peregrino, fez uma expedição a Marrocos, país
fechado ao cristianismo. A viagem deu-lhe uma medalha de ouro da Sociedade de
Geografia. Na visita, ficou extremamente impressionado com a fé dos muçulmanos,
descobrindo a lei sagrada da hospitalidade. Depois, voltou para Paris e ficou
na casa duma prima, cristã fervorosa. Querendo conhecer a fé cristã, em 1886,
dirigiu-se a um padre amigo da família e, quando recebeu o sacramento da
reconciliação, converteu-se.
A sua
conversão completa-se com uma peregrinação a Jerusalém, à cidade de Nazaré,
onde descobre a sua verdadeira vocação: seguir Jesus na sua vida de Nazaré. Daí
o título da aludida exposição de pintura, “Nazareth”.
Procura uma comunidade onde possa viver de forma simples, acabando por entrar
no Mosteiro de Trapa, onde fica a morar durante sete anos. No entanto, sente
que não é o que pretende para a sua vida e sai para viver como eremita junto a
um Convento de Irmãs Clarissas, em Nazaré. Em 1901, é ordenado padre, em
França. Já presbítero, em vez de retornar à Palestina, segue para a Argélia,
perto da fronteira com Marrocos e torna-se amigo dos tuaregues. Aprende a sua
língua e costumes e reúne tudo em livro, algo que ninguém tinha feito até
então. Parte para Tamanrasset, no centro da Argélia. A 1 de dezembro de 1916,
com 58 anos, é assassinado por tuaregues rebeldes que vinham assaltar o seu
acampamento.
Foi beatificado a 13 de novembro de
2005, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, pelo Papa Bento XVI. Inicialmente,
a cerimónia de beatificação estava marcada para o dia 15 de maio e seria feita
pelo Papa São João Paulo II, mas ficou suspensa por causa do seu falecimento.
O Cardeal José Saraiva Martins, então
prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (Santa Sé), na cerimónia de promulgação do
decreto de reconhecimento de um milagre atribuído à sua intercessão, recordou:
“Viveu
na pobreza, na contemplação e na humildade, testemunhando fraternalmente o amor
de Deus entre os cristãos, os judeus e os muçulmanos”.
Atualmente
são vinte os grupos inspirados na vida do irmão Charles, que tentam compreender
a vida de Nazaré, feita de oração, trabalho e convívio com os vizinhos,
incluindo fraternidades seculares para leigos, casais e solteiros e
fraternidades sacerdotais para os padres que querem viver a mesma
espiritualidade do bem-aventurado. Na Diocese de Setúbal, existe, há mais de 40
anos, uma pequena fraternidade dos Irmãos de Jesus, a única em Portugal, que
vive de acordo com os preceitos deixados por Charles de Foucauld.
***
E uma
referência ao livrinho “Cristo rezava
assim”, de Charles de Foucauld, organizado por Jean Daniélou a partir dum
canhenho manuscrito do autor, com textos que “derivam do próprio andamento da oração
cristã, que é de apreender o Cristo da fé através do Cristo histórico”, sendo na
inteira verdade deste que se fixa o olhar do Padre Charles de Foucauld “procurando
imitar o seu comportamento” e sendo através da humanidade de Cristo que a oração
apreende realmente a sua realidade divina”. O percurso orante de Foucauld é o
Evangelho e, em especial, a oração de Jesus, arquétipo da oração do crente, em
que se expõe a dificuldade do homem e se pede a realização da vontade de Deus
em nós (vd “I – Prece”). Mais: a prece de Foucauld radica na fé e fortalece a
fé (vd “II – Fé”). E exprime-se em testemunho na comunicação (vd “Cartas
à família”).
Enfim,
“A
exemplo de Charles de Foucauld, também nós somos chamados a viver um novo modo
de ser Igreja, sacramento de salvação para a humanidade. Na fraternidade
evangélica, antes de mais, que não é apenas uma fraternidade reunida no amor à
volta de Jesus e com Jesus, mas uma fraternidade que faz da caridade, tanto por
dentro como por fora, o mandamento supremo até ‘fazer da salvação do próximo,
bem como da salvação pessoal, a grande tarefa da vida’. Este ideal só é
atingível se formos capazes de ver um irmão em cada ser humano. Se vivermos
superficialmente, só acolhemos o outro superficialmente. Se vivermos em
profundidade, que é onde Deus habita, acolheremos o outro com profundidade, ou
seja, como irmão e filho do mesmo Pai.”
(Pedro
Simões, A Espiritualidade da vida oculta
de Jesus de Nazaré, 2014).
2021.04.27 – Louro
de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário