O episódio a
que os portugueses puderam assistir por vídeo revela que António Joaquim
Piçarra, presidente do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) – e, por inerência, presidente do CSM (Conselho Superior de Magistratura) – tinha razão no que defendeu em
vésperas de se conhecer a decisão do juiz Ivo Rosa sobre a Operação Marquês, em entrevista à Lusa, publicada no dia 8 de abril.
Defende o
magistrado a extinção do TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal ou Ticão), proposta que vai apresentar ao CSM,
e que a fase de instrução deve ser reservada a casos em que objetivamente se
justifique. E, no atinente à Operação
Marquês, considera que houve uma “deturpação das finalidades” desta fase
processual.
Piçarra
alegou que o TCIC “está, na sua génese, mal concebido” e só faria sentido se
existisse também uma audiência nacional ou tribunal central de julgamento como
em Espanha para julgar a criminalidade complexa. E observou que a instrução,
enquanto fase processual facultativa visa só a “comprovação judicial da decisão
de levar os arguidos a julgamento ou do arquivamento do processo”, mas tem
havido uma deturpação das suas finalidades, transformando-a em fase de pré-julgamento.
Ora, como disse, “o juiz de instrução não é um julgador nem um investigador”.
Tendo a fase
de instrução da Operação Marquês
começado a 28 de Janeiro de 2019, Piçarra considera “insustentável” e
incompreensível que um veredicto demore dois ou três anos a ser proferido e que
um processo se arraste no tempo. Assim, propõe que, em caso de arquivamento, o
ofendido pudesse exigir que o juiz se prenunciasse e nas situações em que haja
lugar a uma acusação o processo vá diretamente para julgamento e aí os arguidos
produzam a prova em sua defesa e contraditem as provas do inquérito.
Não obstante,
o magistrado admite a possibilidade de os arguidos pedirem a abertura desta
fase processual, “mas exclusivamente para um juiz apreciar se as provas que
foram recolhidas num inquérito são ou não suficientes para os levarem a
julgamento”, ficando vedada a produção de prova, audição de arguidos ou
testemunhas. Assim, esclareceu nas declarações à Lusa:
“A
proposta que vou apresentar ao CSM é no sentido de a instrução ficar limitada
apenas ao arquivamento. Nos casos de acusação ou não haveria instrução ou
limitar-se-ia a que o juiz avaliasse as provas que foram produzidas e decidisse
se aquele caso era ou não de levar a julgamento.”.
No entender
do juiz conselheiro, a sua proposta impedirá que haja “processos a arrastar-se
três ou mais anos na justiça”. Na verdade, como observa, a morosidade
processual é inadmissível e “mina a confiança dos cidadãos, pois nenhum cidadão
confiará numa justiça que demora tantos anos a decidir quem é ou não culpado e
os arguidos também beneficiariam porque não ficariam tantos anos com a espada
sobre eles”. De facto, qualquer cidadão tem dificuldade em perceber que “um
processo demore tanto tempo a ser investigado e muito menos o tempo que demora
a ser instruído e haver uma decisão”.
Além da
incompreensibilidade e insustentabilidade que lhe advém do tempo que demora, o
juiz conselheiro diz não compreender como é que esta fase tem tanta projeção no
espaço mediático e nos cidadãos, uma vez que o tribunal é de instrução e, sendo
esta fase facultativa, “qualquer decisão que dai provenha é sempre provisória”.
***
O juiz conselheiro, que aponta como corrosiva para a imagem da justiça a
posição negacionista sobre a pandemia de covid-19 assumida por um juiz, defende
alterações no processo de formação e seleção de magistrados e considera que a
decisão instrutória da Operação Marquês
terá repercussões na justiça e na política e reconhece ser incompreensível o
tempo excessivo da investigação e da instrução dos megaprocessos criminais.
Dizia o magistrado que, fosse qual fosse, a decisão instrutória da Operação Marquês constituirá “um teste à
resiliência da justiça e também da política e terá influência necessariamente”.
Quanto à gestão dos megaprocessos, o conselheiro concorda com a proposta do
Governo sobre a possibilidade de separação dos processos, com a alteração do
artigo 30.º do Código Processo Penal, mas reconhece que estes grandes casos,
quase todos sobre criminalidade económica e financeira, necessitam de mais
tempo de investigação dada a sua complexidade. Contudo, acrescenta, “um
julgamento que demore um ano é inexplicável por mais complexo que seja”.
O juiz conselheiro, que abandonará o cargo de presidente do STJ e do CSM a
18 de maio, quando fizer 70 anos e passar à condição de jubilado, sente
frustração por não ter conseguido que os cidadãos tenham acesso as decisões
judiciais em linguagem mais percetível e pela morosidade de alguns processos. A
este respeito, confessou:
“Gostaria de deixar uma imagem de total
transparência e abertura à sociedade quer na comunicação do Conselho quer na
comunicação do Supremo com a sociedade civil e com a comunicação social, mas o
que eu gostaria, e nesse aspeto sinto mais frustração, é que ainda não há uma
democratização da linguagem nas decisões judiciais”.
O sentimento de frustração também está associado à morosidade dos
processos, como frisou:
“Nunca me passou pela cabeça que no fim do
mandato, decorridos três anos, ainda estivesse agora a conhecer as decisões
instrutórias de alguns processos. Fico de facto muito frustrado com isso porque
para mim já deveriam estar julgados”.
Sobre a hipótese de o lugar cimeiro do STJ vir a ser ocupado por uma
mulher, depois de, pela primeira vez, uma juíza ter ascendido à
vice-presidência, o conselheiro disse “não ter qualquer rebuço” sobre isso, mas
recusou falar sobre a sucessão por estar em curso a campanha eleitoral.
Sobre a postura que assumirá quando abandonar a judicatura, afirmou que
será um “espectador atento e preocupado”, mas sem ter intervenção pública. E
vincou:
“Entendo que os juízes não devem estar
submetidos ao silêncio, muito menos quem exerce ou exerceu cargos de
responsabilidade, mas devem ter algum recato na sua intervenção pública. O
espaço mediático não é para os juízes. Estes têm um espaço próprio que é o
tribunal. A intervenção no espaço público deve ser utilizada com parcimónia.”.
Sobre o não agendamento da cerimónia de abertura do ano judicial – marcada
para 27 de janeiro e cancelada devido à pandemia –, acha que não se realizará,
mas anunciou que haverá uma cerimónia pública, com personalidades do judiciário
e da política, para inaugurar as renovadas instalações do STJ, no Terreiro do
Paço, em Lisboa.
Quanto ao juiz negacionista, o presidente do CSM admitiu que “as pessoas
não compreendem como é que uma pessoa dessas está a exercer funções” e lembrou
que o Conselho, “logo que teve conhecimento das suas posições públicas,
rapidamente atuou, instaurou um inquérito e processo disciplinar e suspendeu-o
preventivamente”, pois, a postura pública do juiz que se assumiu contra medidas
do estado de emergência com declarações contra o uso de máscaras e as medidas
de confinamento, durante a pandemia, é corrosiva para a imagem da justiça.
Revelou que, durante o seu mandato de quase três anos à frente do CSM,
foram vários os casos de juízes a quem foram instaurados processos
disciplinares por suspeitas de corrupção, viciação de sorteios, abuso de poder
e disse que estes casos também se podem combater através de um mais rigoroso
processo de seleção de quem vai para a judicatura. Nesse sentido, sustenta que
“deve existir um maior rigor na seleção da entrada dos candidatos à
magistratura”, o que, a seu ver, passa pela realização de exames psicológicos
aos alunos do CEJ (Centro de Estudos Judiciários).
Para o presidente do STJ, o órgão de gestão e disciplina dos magistrados “deve
ter uma atuação célere para erradicar todos estes fenómenos” e ser rigoroso,
extremamente exigente”, tendo, nos casos mais graves, conseguido instaurar
processos disciplinares e aplicar as sanções, mesmo antes de haver acusação criminal.
Porém, entende que essa exigência também deve existir na fase de recrutamento
dos magistrados judiciais, da responsabilidade do CEJ. E justifica:
“Todos nós estamos sujeitos de facto a
alterações da nossa vida pessoal e dos nossos comportamentos, mas é preciso que
o Conselho esteja atento de modo a detetá-los a tempo de serem erradicados
porque a magistratura não pode ter pessoas que não sejam íntegras. O Conselho
demonstrou, eu próprio propus, que não precisa de aguardar pela acusação nem
pela condenação para instaurar processos disciplinares e se entender que, face
às provas que estão no processo disciplinar, ainda que recolhidas do inquérito
crime, pode conduzir a sanções expulsivas.”.
O presidente do CSM disse que “a ação disciplinar é autónoma da ação
criminal e no processo disciplinar estão em causa deveres funcionais e é isso
que o Conselho tem que avaliar”. E, sobre os efeitos da situação pandémica e
das medidas adotadas no estado de emergência, sublinhou que a pandemia veio
interromper uma trajetória de recuperação de pendências notável.
***
A
decisão instrutória do juiz no quadro da Operação
Marquês deixou cair todos os crimes de corrupção deduzidos na acusação. É
caso para nos interrogarmos para quê uma detenção dum arguido na manga dum
aeroporto, tantos meses de prisão preventiva, tanto alarido social, tantas
peças escritas e videogravadas veiculadas pela comunicação social, tanta fuga
impune ao segredo de justiça, que não é investigada. Como é que o Ministério
Público (MP) fez um trabalho tão
insustentado? Como é que o juiz de instrução criminal (JIC)
entra em
incoerências? Tanta parra para tão pouca uva! Se o Tribunal da Relação de
Lisboa (TRL)
confirmar a decisão
do TCIC – o MP diz que vai recorrer –, José Sócrates e Carlos Silva irão a
julgamento por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação
de documentos; Ricardo Salgado, por três crimes de abuso de confiança; Armando
Vara, por um crime de branqueamento; e João Perna, por detenção de arma proibida.
Um balde de água fria para o MP!
São os
alçapões que a lei contém. A lei feita para
prevenir a corrupção
dificulta a corrupção, embora por si não a extinga, mas há ângulos de sombra
por onde muitos se podem mover. E, se um político anda por aí, não será
corrupto por definição, mas está a aproximar-se da ocasião.
Durante três anos, ex-ministros ou ex-secretários de Estado não podem
trabalhar para privados do setor que tutelaram (vd art.º 10.º da Lei n.º 52/2019,
de 31 de julho). Porém, tal
limitação não impediu que, após serem ministras das Finanças, Manuela Ferreira
Leite fosse administradora não executiva do Santander ou que Maria Luís
Albuquerque o seja na financeira britânica Arrow Global. Pelos vistos, não
violaram a lei, mesmo apesar de a empresa para onde foi Maria Luís Albuquerque ter
interesses no Banif em vias de nacionalização ou resolução. Quer dizer: sem violar o regime jurídico dos impedimentos, um
ex-governante pode trabalhar de imediato e sem restrições para um privado da
área que tutelou, desde que a empresa não tenha sido privatizada por si ou que
não lhe tenha dado incentivos financeiros ou benefícios fiscais de natureza
contratual. Recentemente, a lei teve um acrescento: um político não pode
trabalhar em empresas “relativamente às quais se tenha verificado uma
intervenção direta do titular”. Quer dizer: se não privatizou a empresa, se não
lhe concedeu subsídios e se não interveio diretamente nesse privado, então
poderá trabalhar sem problemas em empresas da área que tutelou; e poderá voltar
sempre para o setor se for quadro de uma empresa dessa área.
Contudo, na Estratégia
Nacional Anticorrupção, o Governo propõe “melhorar a robustez” das limitações
com uma sanção pecuniária dissuasora para quem violar estas normas. Ou seja, pretende-se
obstar com as limitações às portas giratórias entre público e privado e à
promiscuidade no exercício das funções públicas, para se evitarem promessas de
benefícios futuros, utilização de informação privilegiada no imediato ou
benefício a curto prazo da rede de contactos do político em causa no Estado.
Mas há hipóteses de passar pela malha das restrições: um político que cessou
funções até pode não ir diretamente para empresa do setor que tutelou para não
violar a lei, mas pode trabalhar em organizações que tenham empresas desse
setor como clientes. E aqui entra a questão do lóbi. E Susana Coroado, presidente
da Transparência e Integridade (TI), considera necessária
uma lei do lóbi – que o Parlamento discutiu, mas não aprovou na XIII legislatura
– “para garantir que nenhum político é contratado para lobista”, pois, como
sustenta, “não se pode limitar em excesso, porque as pessoas têm direito ao
trabalho e as coisas não são a preto e branco”. Porém, no quadro da Estratégia
Nacional Anticorrupção, a TI propôs ao Governo um sistema semelhante ao do
Reino Unido, onde os políticos declaram a uma entidade para onde vão trabalhar
depois de cessarem funções, que depois produz um parecer não vinculativo.
Em Portugal, os políticos entregam uma declaração todos os anos sobre o que
têm e quanto ganham. E a incongruência entre património e rendimentos com
intenção de ocultação é punível com prisão até três anos. Ora, Sócrates também
entregou sempre a sua, mas, pelos vistos, não era possível conhecer toda a
dimensão do seu património; e só depois de deixar a governação é que se tornou
evidente a discrepância entre rendimentos e estilo de vida. Isto sucede porque,
uma vez fora do cargo, o político deixa de ter a obrigação de apresentar declarações.
E, se o benefício material ou financeiro, produto de qualquer corrupção, só
chegar à sua posse um ou dois anos depois de deixar o cargo, não é possível
identificar o acréscimo de património.
Na apresentação do seu pacote contra a corrupção, há 13 anos, João Cravinho
propunha que a obrigatoriedade declarativa se mantivesse alguns anos depois de
os titulares deixarem o poder. Mas o PS não agendou a sua proposta. E Susana
Coroado defende um “registo dos beneficiários efetivos” do património, para se
evitar a passagem de tudo para familiares.
A Estratégia Anticorrupção do Governo não identifica um problema de
“omissão legislativa” quanto à lei de financiamento dos partidos e coloca a
tónica nos constrangimentos da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos,
que acusa a falta de meios para fiscalizar organizações partidárias e campanhas.
Mas se não há omissão, abriu-se um alçapão na última alteração à lei, em 2018:
as ações de angariação de fundos deixaram de ter limites, que eram de 632 mil euros
por ano (não se
incluem os donativos individuais que continuam limitados). O Presidente vetou a lei, os partidos fizeram
alterações, mas mantiveram esta disposição. Assim passou a ser possível a alguém
entrar com uma mala de dinheiro numa festa de angariação de fundos e gastá-lo
todo em tudo o que lá supostamente se possa vender.
***
Enfim, o megaprocesso é moroso, complexo e emaranhado. Dali não sairá
julgamento decente e o trânsito em julgado virá no comboio do Texas. A
instrução pouco mais é que perda de tempo ou corre o risco de pretender fazer
justiça mal e antes do tempo. E a corrupção lá segue de vento em popa sem dar
mostras de si própria embora todos a sintam e o povo a pague.
Dizer que a justiça funciona e merece a confiança dos cidadãos é pensar que
o rei vai ricamente vestido quando ele vai mesmo nu. Ainda iremos pagar a
inocência tão apregoada pelos arguidos dispensados de ir a julgamento e dos que
vão a julgamento por crimes menos significativos? O JIC tem de assegurar os
direitos dos arguidos, mas também os dos potencialmente lesados. Não?
2021,04.09 –
Louro de Carvalho
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