sexta-feira, 9 de abril de 2021

Extinção do TCIC, minimalização da instrução, abolição dos megaprocessos

 

 

O episódio a que os portugueses puderam assistir por vídeo revela que António Joaquim Piçarra, presidente do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) – e, por inerência, presidente do CSM (Conselho Superior de Magistratura) – tinha razão no que defendeu em vésperas de se conhecer a decisão do juiz Ivo Rosa sobre a Operação Marquês, em entrevista à Lusa, publicada no dia 8 de abril.

Defende o magistrado a extinção do TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal ou Ticão), proposta que vai apresentar ao CSM, e que a fase de instrução deve ser reservada a casos em que objetivamente se justifique. E, no atinente à Operação Marquês, considera que houve uma “deturpação das finalidades” desta fase processual.

Piçarra alegou que o TCIC “está, na sua génese, mal concebido” e só faria sentido se existisse também uma audiência nacional ou tribunal central de julgamento como em Espanha para julgar a criminalidade complexa. E observou que a instrução, enquanto fase processual facultativa visa só a “comprovação judicial da decisão de levar os arguidos a julgamento ou do arquivamento do processo”, mas tem havido uma deturpação das suas finalidades, transformando-a em fase de pré-julgamento. Ora, como disse, “o juiz de instrução não é um julgador nem um investigador”.

Tendo a fase de instrução da Operação Marquês começado a 28 de Janeiro de 2019, Piçarra considera “insustentável” e incompreensível que um veredicto demore dois ou três anos a ser proferido e que um processo se arraste no tempo. Assim, propõe que, em caso de arquivamento, o ofendido pudesse exigir que o juiz se prenunciasse e nas situações em que haja lugar a uma acusação o processo vá diretamente para julgamento e aí os arguidos produzam a prova em sua defesa e contraditem as provas do inquérito.

Não obstante, o magistrado admite a possibilidade de os arguidos pedirem a abertura desta fase processual, “mas exclusivamente para um juiz apreciar se as provas que foram recolhidas num inquérito são ou não suficientes para os levarem a julgamento”, ficando vedada a produção de prova, audição de arguidos ou testemunhas. Assim, esclareceu nas declarações à Lusa:

A proposta que vou apresentar ao CSM é no sentido de a instrução ficar limitada apenas ao arquivamento. Nos casos de acusação ou não haveria instrução ou limitar-se-ia a que o juiz avaliasse as provas que foram produzidas e decidisse se aquele caso era ou não de levar a julgamento.”.

No entender do juiz conselheiro, a sua proposta impedirá que haja “processos a arrastar-se três ou mais anos na justiça”. Na verdade, como observa, a morosidade processual é inadmissível e “mina a confiança dos cidadãos, pois nenhum cidadão confiará numa justiça que demora tantos anos a decidir quem é ou não culpado e os arguidos também beneficiariam porque não ficariam tantos anos com a espada sobre eles”. De facto, qualquer cidadão tem dificuldade em perceber que “um processo demore tanto tempo a ser investigado e muito menos o tempo que demora a ser instruído e haver uma decisão”.

Além da incompreensibilidade e insustentabilidade que lhe advém do tempo que demora, o juiz conselheiro diz não compreender como é que esta fase tem tanta projeção no espaço mediático e nos cidadãos, uma vez que o tribunal é de instrução e, sendo esta fase facultativa, “qualquer decisão que dai provenha é sempre provisória”.

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O juiz conselheiro, que aponta como corrosiva para a imagem da justiça a posição negacionista sobre a pandemia de covid-19 assumida por um juiz, defende alterações no processo de formação e seleção de magistrados e considera que a decisão instrutória da Operação Marquês terá repercussões na justiça e na política e reconhece ser incompreensível o tempo excessivo da investigação e da instrução dos megaprocessos criminais.

Dizia o magistrado que, fosse qual fosse, a decisão instrutória da Operação Marquês constituirá “um teste à resiliência da justiça e também da política e terá influência necessariamente”.

Quanto à gestão dos megaprocessos, o conselheiro concorda com a proposta do Governo sobre a possibilidade de separação dos processos, com a alteração do artigo 30.º do Código Processo Penal, mas reconhece que estes grandes casos, quase todos sobre criminalidade económica e financeira, necessitam de mais tempo de investigação dada a sua complexidade. Contudo, acrescenta, “um julgamento que demore um ano é inexplicável por mais complexo que seja”.

O juiz conselheiro, que abandonará o cargo de presidente do STJ e do CSM a 18 de maio, quando fizer 70 anos e passar à condição de jubilado, sente frustração por não ter conseguido que os cidadãos tenham acesso as decisões judiciais em linguagem mais percetível e pela morosidade de alguns processos. A este respeito, confessou:

Gostaria de deixar uma imagem de total transparência e abertura à sociedade quer na comunicação do Conselho quer na comunicação do Supremo com a sociedade civil e com a comunicação social, mas o que eu gostaria, e nesse aspeto sinto mais frustração, é que ainda não há uma democratização da linguagem nas decisões judiciais”.

O sentimento de frustração também está associado à morosidade dos processos, como frisou:

Nunca me passou pela cabeça que no fim do mandato, decorridos três anos, ainda estivesse agora a conhecer as decisões instrutórias de alguns processos. Fico de facto muito frustrado com isso porque para mim já deveriam estar julgados”.

Sobre a hipótese de o lugar cimeiro do STJ vir a ser ocupado por uma mulher, depois de, pela primeira vez, uma juíza ter ascendido à vice-presidência, o conselheiro disse “não ter qualquer rebuço” sobre isso, mas recusou falar sobre a sucessão por estar em curso a campanha eleitoral.

Sobre a postura que assumirá quando abandonar a judicatura, afirmou que será um “espectador atento e preocupado”, mas sem ter intervenção pública. E vincou:

Entendo que os juízes não devem estar submetidos ao silêncio, muito menos quem exerce ou exerceu cargos de responsabilidade, mas devem ter algum recato na sua intervenção pública. O espaço mediático não é para os juízes. Estes têm um espaço próprio que é o tribunal. A intervenção no espaço público deve ser utilizada com parcimónia.”.

Sobre o não agendamento da cerimónia de abertura do ano judicial – marcada para 27 de janeiro e cancelada devido à pandemia –, acha que não se realizará, mas anunciou que haverá uma cerimónia pública, com personalidades do judiciário e da política, para inaugurar as renovadas instalações do STJ, no Terreiro do Paço, em Lisboa.

Quanto ao juiz negacionista, o presidente do CSM admitiu que “as pessoas não compreendem como é que uma pessoa dessas está a exercer funções” e lembrou que o Conselho, “logo que teve conhecimento das suas posições públicas, rapidamente atuou, instaurou um inquérito e processo disciplinar e suspendeu-o preventivamente”, pois, a postura pública do juiz que se assumiu contra medidas do estado de emergência com declarações contra o uso de máscaras e as medidas de confinamento, durante a pandemia, é corrosiva para a imagem da justiça.

Revelou que, durante o seu mandato de quase três anos à frente do CSM, foram vários os casos de juízes a quem foram instaurados processos disciplinares por suspeitas de corrupção, viciação de sorteios, abuso de poder e disse que estes casos também se podem combater através de um mais rigoroso processo de seleção de quem vai para a judicatura. Nesse sentido, sustenta que “deve existir um maior rigor na seleção da entrada dos candidatos à magistratura”, o que, a seu ver, passa pela realização de exames psicológicos aos alunos do CEJ (Centro de Estudos Judiciários).

Para o presidente do STJ, o órgão de gestão e disciplina dos magistrados “deve ter uma atuação célere para erradicar todos estes fenómenos” e ser rigoroso, extremamente exigente”, tendo, nos casos mais graves, conseguido instaurar processos disciplinares e aplicar as sanções, mesmo antes de haver acusação criminal. Porém, entende que essa exigência também deve existir na fase de recrutamento dos magistrados judiciais, da responsabilidade do CEJ. E justifica:

Todos nós estamos sujeitos de facto a alterações da nossa vida pessoal e dos nossos comportamentos, mas é preciso que o Conselho esteja atento de modo a detetá-los a tempo de serem erradicados porque a magistratura não pode ter pessoas que não sejam íntegras. O Conselho demonstrou, eu próprio propus, que não precisa de aguardar pela acusação nem pela condenação para instaurar processos disciplinares e se entender que, face às provas que estão no processo disciplinar, ainda que recolhidas do inquérito crime, pode conduzir a sanções expulsivas.”.

O presidente do CSM disse que “a ação disciplinar é autónoma da ação criminal e no processo disciplinar estão em causa deveres funcionais e é isso que o Conselho tem que avaliar”. E, sobre os efeitos da situação pandémica e das medidas adotadas no estado de emergência, sublinhou que a pandemia veio interromper uma trajetória de recuperação de pendências notável.

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A decisão instrutória do juiz no quadro da Operação Marquês deixou cair todos os crimes de corrupção deduzidos na acusação. É caso para nos interrogarmos para quê uma detenção dum arguido na manga dum aeroporto, tantos meses de prisão preventiva, tanto alarido social, tantas peças escritas e videogravadas veiculadas pela comunicação social, tanta fuga impune ao segredo de justiça, que não é investigada. Como é que o Ministério Público (MP) fez um trabalho tão insustentado? Como é que o juiz de instrução criminal (JIC) entra em incoerências? Tanta parra para tão pouca uva! Se o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) confirmar a decisão do TCIC – o MP diz que vai recorrer –, José Sócrates e Carlos Silva irão a julgamento por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos; Ricardo Salgado, por três crimes de abuso de confiança; Armando Vara, por um crime de branqueamento; e João Perna, por detenção de arma proibida. Um balde de água fria para o MP!   

São os alçapões que a lei contém. A lei feita para prevenir a corrupção dificulta a corrupção, embora por si não a extinga, mas há ângulos de sombra por onde muitos se podem mover. E, se um político anda por aí, não será corrupto por definição, mas está a aproximar-se da ocasião.

Durante três anos, ex-ministros ou ex-secretários de Estado não podem trabalhar para privados do setor que tutelaram (vd art.º 10.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho). Porém, tal limitação não impediu que, após serem ministras das Finanças, Manuela Ferreira Leite fosse administradora não executiva do Santander ou que Maria Luís Albuquerque o seja na financeira britânica Arrow Global. Pelos vistos, não violaram a lei, mesmo apesar de a empresa para onde foi Maria Luís Albuquerque ter interesses no Banif em vias de nacionalização ou resolução. Quer dizer: sem violar o regime jurídico dos impedimentos, um ex-governante pode trabalhar de imediato e sem restrições para um privado da área que tutelou, desde que a empresa não tenha sido privatizada por si ou que não lhe tenha dado incentivos financeiros ou benefícios fiscais de natureza contratual. Recentemente, a lei teve um acrescento: um político não pode trabalhar em empresas “relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular”. Quer dizer: se não privatizou a empresa, se não lhe concedeu subsídios e se não interveio diretamente nesse privado, então poderá trabalhar sem problemas em empresas da área que tutelou; e poderá voltar sempre para o setor se for quadro de uma empresa dessa área.

Contudo, na Estratégia Nacional Anticorrupção, o Governo propõe “melhorar a robustez” das limitações com uma sanção pecuniária dissuasora para quem violar estas normas. Ou seja, pretende-se obstar com as limitações às portas giratórias entre público e privado e à promiscuidade no exercício das funções públicas, para se evitarem promessas de benefícios futuros, utilização de informação privilegiada no imediato ou benefício a curto prazo da rede de contactos do político em causa no Estado. Mas há hipóteses de passar pela malha das restrições: um político que cessou funções até pode não ir diretamente para empresa do setor que tutelou para não violar a lei, mas pode trabalhar em organizações que tenham empresas desse setor como clientes. E aqui entra a questão do lóbi. E Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade (TI), considera necessária uma lei do lóbi – que o Parlamento discutiu, mas não aprovou na XIII legislatura – “para garantir que nenhum político é contratado para lobista”, pois, como sustenta, “não se pode limitar em excesso, porque as pessoas têm direito ao trabalho e as coisas não são a preto e branco”. Porém, no quadro da Estratégia Nacional Anticorrupção, a TI propôs ao Governo um sistema semelhante ao do Reino Unido, onde os políticos declaram a uma entidade para onde vão trabalhar depois de cessarem funções, que depois produz um parecer não vinculativo.

Em Portugal, os políticos entregam uma declaração todos os anos sobre o que têm e quanto ganham. E a incongruência entre património e rendimentos com intenção de ocultação é punível com prisão até três anos. Ora, Sócrates também entregou sempre a sua, mas, pelos vistos, não era possível conhecer toda a dimensão do seu património; e só depois de deixar a governação é que se tornou evidente a discrepância entre rendimentos e estilo de vida. Isto sucede porque, uma vez fora do cargo, o político deixa de ter a obrigação de apresentar declarações. E, se o benefício material ou financeiro, produto de qualquer corrupção, só chegar à sua posse um ou dois anos depois de deixar o cargo, não é possível identificar o acréscimo de património.

Na apresentação do seu pacote contra a corrupção, há 13 anos, João Cravinho propunha que a obrigatoriedade declarativa se mantivesse alguns anos depois de os titulares deixarem o poder. Mas o PS não agendou a sua proposta. E Susana Coroado defende um “registo dos beneficiários efetivos” do património, para se evitar a passagem de tudo para familiares.

A Estratégia Anticorrupção do Governo não identifica um problema de “omissão legislativa” quanto à lei de financiamento dos partidos e coloca a tónica nos constrangimentos da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, que acusa a falta de meios para fiscalizar organizações partidárias e campanhas. Mas se não há omissão, abriu-se um alçapão na última alteração à lei, em 2018: as ações de angariação de fundos deixaram de ter limites, que eram de 632 mil euros por ano (não se incluem os donativos individuais que continuam limitados). O Presidente vetou a lei, os partidos fizeram alterações, mas mantiveram esta disposição. Assim passou a ser possível a alguém entrar com uma mala de dinheiro numa festa de angariação de fundos e gastá-lo todo em tudo o que lá supostamente se possa vender.

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Enfim, o megaprocesso é moroso, complexo e emaranhado. Dali não sairá julgamento decente e o trânsito em julgado virá no comboio do Texas. A instrução pouco mais é que perda de tempo ou corre o risco de pretender fazer justiça mal e antes do tempo. E a corrupção lá segue de vento em popa sem dar mostras de si própria embora todos a sintam e o povo a pague.

Dizer que a justiça funciona e merece a confiança dos cidadãos é pensar que o rei vai ricamente vestido quando ele vai mesmo nu. Ainda iremos pagar a inocência tão apregoada pelos arguidos dispensados de ir a julgamento e dos que vão a julgamento por crimes menos significativos? O JIC tem de assegurar os direitos dos arguidos, mas também os dos potencialmente lesados. Não?

2021,04.09 – Louro de Carvalho

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