quarta-feira, 21 de abril de 2021

Sobre o enriquecimento ilícito ou injustificado, só um pequeno passo

 

A ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses) considerou, a 13 de abril, necessário alterar a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que aprova o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, de modo que o crime de ocultação de riqueza seja efetivamente investigado e punido. E rejeita as designações de “enriquecimento ilícito” ou “enriquecimento injustificado”, já que estas remetem para “normas inconstitucionais”.

A proposta entregue à AR (Assembleia da República) não resulta, segundo o documento, de “intenção deslocada, imprópria e populista de justicialismo penal” ou de “cruzada moral contra os políticos”. É, antes, uma proposta da “associação que representa os juízes e destinada, também, ao controlo do exercício, pelos mesmos, das funções judiciais”. Isto, porque uma das alterações da lei publicada há ano e meio inclui os magistrados judiciais e do Ministério Público nestas obrigações de justificação de rendimentos e património.

Os juízes não poupam críticas ao que chamam regras “ineficazes” dizendo que, por exemplo, a lei não obriga à declaração de “vantagens patrimoniais futuras cuja promessa de aquisição ocorra no período do exercício do cargo”. No entanto, para a ASJP, a obrigatoriedade dessa declaração será essencial para “uma melhor proteção do valor da transparência e também para assegurar melhor a prevenção dos fenómenos corruptivos”.

A lei prevê que o titular de alta função pública pode receber a prestação de serviços gratuitos de elevado valor durante o exercício de funções, por exemplo, a reconstrução dum imóvel, sem ter de o declarar e sem a ocultação da vantagem económica ser punida como crime. Ora, se, por exemplo, alguém que tenha exercido altas funções públicas, vier a detetar, 5 anos depois, a posse de património de valor elevado e incongruente que não foi declarado no momento devido, a eventual responsabilidade criminal estará extinta por prescrição.

A proposta surge após a lei incluir os juízes em funções nos tribunais. Porém, a lei apenas contempla a obrigação de discriminar os rendimentos e o património, mas sem a obrigação de identificar os factos que os geraram, o que a ASJP considera insuficiente. Segundo ela, o titular dum cargo deve declarar um aumento no seu património superior a 50 salários mínimos mensais, por exemplo, a aquisição da propriedade de um bem ou a liquidação de um empréstimo bancário, sem ter de explicar a proveniência dos respetivos meios financeiros. Nestes termos, se atualmente houver  investigação criminal para encontrar uma explicação para aumento de riqueza e se descobrir a prática de crime, o arguido não será obrigado a justificar, nesse inquérito, a origem do dinheiro ou do bem, porque, segundo a lei, ninguém é obrigado a autoincriminar-se ou a contribuir para a sua própria condenação.

A nossa ordem jurídica continua a não dar cumprimento à CNUCC (Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção), que “recomenda aos Estados membros a adoção de medidas legislativas que se revelem necessárias para classificar como infração penal, quando praticado intencionalmente, o enriquecimento ilícito, isto é o aumento significativo do património de um agente público para o qual ele não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo”.

São óbvias “as dificuldades de investigar e provar a prática de crimes de corrupção no exercício de altas funções públicas”, pelo que é reduzido o número de casos investigados e punidos, quando comparado com a perceção existente sobre a dimensão do fenómeno. Daí resulta que “as normas penais incriminadoras e a multiplicação dos tipos legais para prevenir e reprimir comportamentos dessa natureza são reconhecidamente tidos como ineficazes”. Todavia, o conceito de enriquecimento ilícito não é constitucionalmente viável, pois não respeita “o princípio da proporcionalidade”,  viola “o princípio da subsidiariedade do sistema penal” e não respeita “o princípio da legalidade”, pois não identifica a ação ou omissão proibida. E, sobretudo, “não respeita a proibição da presunção de inocência, pela inversão do ónus da prova, do “in dubio pro reo e do “direito ao silêncio e à não autoincriminação”.

Nas declarações deve constar a descrição de promessas de vantagens patrimoniais futuras que possam alterar os valores declarados, em montante superior a 50 salários mínimos mensais, cuja causa de aquisição ocorra entre a data de início do exercício das respetivas funções e os três anos após o seu termo; e a indicação dos factos geradores das alterações que deram origem ao aumento dos rendimentos ou do ativo patrimonial, à redução do passivo ou à promessa de vantagens patrimoniais futuras. A tipificação penal da omissão de entrega de declaração ou de ocultação de rendimentos e património deve ser feita em norma autónoma.

Desde o ano passado (com a redação dada pela Lei n.º 69/2020, de 1 de setembro), todos os magistrados do MP (Ministério Público), titulares do inquérito e da investigação criminal, incluindo os jubilados (aposentados), são obrigados a entregar a declaração de rendimentos e património. A periodicidade para apresentação de declarações é de 5 anos, mas, a partir do começo do exercício de funções, têm dois meses para entregar a declaração. E, sempre que haja alguma alteração da sua situação patrimonial, terão de avisar o CSMP (Conselho Superior do Ministério Público).

Já para os juízes, o Código de Conduta aprovado pelo CSMP, em junho de 2020, engloba a questão da obrigação de os juízes entregarem uma declaração de rendimentos, património e interesses junto do CSM, à semelhança do que os titulares de cargos públicos têm de fazer junto do TC (Tribunal Constitucional).

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O PCP quer criar o crime de enriquecimento injustificado com pena agravada para políticos. As penas iriam até 3 anos ou até 5 anos no caso de titulares de cargos políticos e públicos. É a 4.ª vez, em 14 anos, que o PCP faz esta proposta, rejeitada com os votos do PS, PSD e CDS.

O projeto prevê o dever geral de declaração às Finanças a quem tem património e rendimentos de valor superior a 400 salários mínimos nacionais (SMN) mensais (226.000 euros) e de atualização sem que se registe “um acréscimo superior a 100 salários mínimos” (66.500 euros), tendo a pessoa o “dever de justificação da origem desse enriquecimento”.

medida foi anunciada pelo líder parlamentar do PCP, João Oliveira, e pelo deputado António Filipe, no passado dia 14, em conferência de imprensa em que anunciou um projeto para a proibição do recurso pelo Estado à arbitragem.

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Por seu turno, Catarina Martins sustenta que pode existir uma lei de enriquecimento ilícito ou injustificado nos altos titulares de cargos públicos  que é constitucional, que não inverte o ónus da prova, se assumir o que deve ser assumido. E, prometendo que o seu partido apresentará em breve uma proposta na AR, observou:

É claro que Portugal teve um primeiro-ministro que viveu de forma que não é explicável pelos rendimentos e pelo património que declarou. E é difícil encontrar algo de mais grave do que isto. Este é um problema que deve ser tratado e uma das formas de o tratar é claramente a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado.”.

A líder do BE, falando aos jornalistas em Viseu, à margem dum plenário de sapadores florestais, a propósito da decisão instrutória, há uma semana, da Operação Marquês, que, no seu entender, é um processo que mostrou “todas as deficiências do próprio sistema e justiça”, disse:

O Bloco de Esquerda apresentará muito em breve no Parlamento, novamente, a proposta de enriquecimento injustificado para altos titulares de cargos públicos, não criando nenhum problema com o Tribunal Constitucional”.

Antes, frisou que o partido irá ouvir a ASJP, que “tem propostas sobre essa matéria, e que, em boa medida, vão encontro das propostas que o Bloco tem proposto também”. E, referindo que o partido tem propostas sobre esta matéria desde 2009, admitiu:

Seguramente com outras sugestões, analisaremos a melhor forma de as incluir e assim reforçar a nossa proposta”.

E, depois de criticar o PS e CDS, que “fizeram uma maioria de bloquear qualquer possibilidade de se avançar no enriquecimento injustificado”, considerou:

Mais tarde, foi possível avançar, mas com uma proposta que foi considerada inconstitucional, porque exigia tanto a cidadãos que não têm funções públicas, como aos de funções públicas, a mesma justificação da sua riqueza e, portanto, o tribunal considerou que se invertia o ónus da prova”.

Ora, segundo a líder bloquista, que existir uma lei de enriquecimento injustificado que é constitucional, que não inverte o ónus da prova, se assumir o que deve ser assumido, ou seja, “cabe aos altos titulares de cargos públicos uma obrigação especial de justificarem os seus rendimentos que um qualquer cidadão em funções privadas não tem”. E salientou:

Concentrando a legislação nos altos titulares de cargos públicos, seja nos políticos ou, por exemplo, nos magistrados, conseguimos seguramente uma lei constitucional e que dê à justiça instrumentos necessários para combater a corrupção. Isso é fundamental.”.

Mais esclareceu que “não é legislar a quente”, até porque “é uma discussão que está no parlamento desde 2007” e, neste sentido, disse que “não é a quente, já vem é tarde”.

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O Presidente da República, no passado dia 19, considerando que a estratégia contra a corrupção é uma “prioridade nacional”, mostrou-se favorável à punição do enriquecimento que não tenha justificação na remuneração. À margem da visita a uma escola secundária na reabertura deste nível de ensino, Marcelo falou sobre a justiça portuguesa, um dos assuntos que tem dominado a agenda mediática por causa da Operação Marquês, dizendo que é preciso “repensar a justiça”, dar-lhe uma “importância ainda maior” e torná-la “mais rápida para poder ser mais justa”. E uma das mudanças passa por se passar a prever o crime de enriquecimento ilícito.

Reconhecendo que “hoje há quem fala na ideia de ir mais longe na estratégia contra a corrupção”, o Presidente acentuou a necessidade de “uma justiça que corresponda aos novos desafios da sociedade portuguesa” e disse que o Governo agendará para breve um Conselho de Ministros sobre o tema, esperando que seja desta vez que o tema vá adiante na AR, aduzindo que nos países onde a justiça não funciona bem há menor desenvolvimento económico.

Questionado sobre a criminalização do enriquecimento ilícito, o Chefe de Estado recorreu à sua opinião anterior às funções que ocupa e disse:

Eu para aí há dez anos, ainda não era Presidente, defendia que era preciso prever um crime, chamasse-se ele como se chamasse, que, respeitando a Constituição, punisse aquilo que é um enriquecimento nomeadamente de titulares dos poderes públicos que não tem justificação naquilo que é a remuneração do exercício de funções públicas”.

Considerando que “já se esperou tempo demais para dar esse passo” e que “um dia teremos de dar esse passo, quanto mais depressa melhor”, recordou que é competência da AR sobre o tema e saudou as propostas dos partidos para a justiça. Para Marcelo “estamos a entrar num período bom para a democracia”. E, frisando que desde 2016 vem fazendo este apelo aos partidos, disse:

Devem estar todos muito empenhados para encontrar consensos e acordos para que as medidas que aparentemente todos querem, todos façam o que está ao seu alcance para que isto se concretize”.

Segundo o Chefe de Estado, “há vários caminhos e há várias propostas” para fazer isso respeitando a Constituição da República Portuguesa, pelo que apelou:

Procurem-se esses caminhos para que se não perca uma boa ideia por causa da forma da concretização”.

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Já o PSD afirmou que só apoiará uma “medida pontual” de criminalização do enriquecimento ilícito se esta for “eficaz e constitucional”, distinguindo crise da justiça e combate à corrupção.

Questionada pela Lusa sobre o apelo feito pelo Presidente da República para que se encontre o meio adequado para criminalizar o enriquecimento injustificado, fonte da direção do PSD começou por separar os vários planos.

Antes de mais é preciso esclarecer: Uma coisa é a crise da Justiça, outra é o combate à corrupção e outra ainda – pontual – é a criminalização do enriquecimento ilícito.”.

A direção socialdemocrata defende que “o PSD foi o principal partido, senão o único, a promover uma profunda reforma da Justiça em Portugal, em 2018”, e entende que “o Sistema de Justiça não se tem mostrado capaz de combater a corrupção, pelo que serão necessárias alterações nesse sentido”. Em concreto, o PSD “apoiará sempre qualquer norma nesse sentido, desde que seja eficaz e constitucional”, mas, “a não ser assim, não o poderá fazer”.

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António Costa afirmou, neste dia 21, que a ASJP desbloqueou o enriquecimento ilícito. Com efeito, em Andorra, onde participa na XXVII Cimeira Ibero-Americana, elogiou a iniciativa dos juízes sobre enriquecimento ilícito, anunciou que o Governo prepara instrumentos legislativos contra a corrupção e salientou que este tema não pode ser arma política. E declarou:

Penso que é altura de todos os responsáveis políticos compreenderem que a corrupção não é um fator de divisão ou uma arma de arremesso político, mas de união entre todos. Essa é a única forma de os cidadãos sentirem confiança nas instituições e perceberem que as instituições no seu conjunto estão empenhadas em combater a corrupção.”.

Perante os jornalistas, o líder do executivo referiu que no Conselho de Ministros da próxima semana será aprovado o conjunto dos instrumentos legislativos que darão tradução à “Estratégia Nacional de Luta contra a Corrupção – plano que esteve em debate público. E explicitou:

Há um entendimento que o Governo tem com a Assembleia da República de que as matérias que foram tratadas pelo parlamento no âmbito do chamado pacote da transparência devem ser agora tratadas na Assembleia da República. Todos os grupos parlamentares já tomaram posição, designadamente o PS, e todos eles manifestando abertura para que, com base na proposta agora formulada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, introduzir as melhorias que o regime aprovado em 2019 criou.”.

Disse o Primeiro-Ministro que esta discussão é “completamente diferente do que foi falado há duas legislaturas e que, por duas vezes, o TC declarou inconstitucional”. E sustentou:

O contributo da Associação Sindical dos Juízes é muito importante, porque desbloqueia o debate. Abandona-se a obsessão em que alguns insistiam com uma solução que é inconstitucional – e, como tal, impossível – e que permite melhorar o que foi aprovado em 2019.”.

Por fim, disse que é missão do Governo aprovar o conjunto de instrumentos legislativos, seja em matéria penal, seja em matéria de processo penal, e, ainda em matéria de prevenção, que está previsto na “Estratégia Nacional de Luta contra a Corrupção”, pois, hoje, há capacidade de investigação e capacidade de tratar as matérias, mas que “devem ser tratadas no local próprio”.

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Será desta feita que teremos lei eficaz contra a corrupção e contra o enriquecimento ilícito ou injustificado que não esbarre no TC? É verdade que nenhum cidadão poderá ser obrigado a autoincriminar-se. Todavia, há cidadãos – os detentores de cargos políticos e de alto cargos públicos e equiparados: e só esses – que, pela obrigatoriedade de declaração de rendimentos e património, se expõem à mostra de eventual prática de crime. Ora, como ficam de fora todos os próceres da alta finança e das megaempresas (que dão cabo de tudo), o combate ao desfalque público e à fraude empresarial e financeira fica na berma da estrada, ou seja, peixe muito graúdo dificilmente será apanhado por mais sangue novo que haja na AR, PGR, MP e tribunais.

2021.04.21 – Louro de Carvalho

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