O
episódio relatado no Evangelho tomado para proclamação e reflexão orante no 3.º
domingo da Páscoa neste Ano B (Lc 24,35-48), como os demais relatos das
aparições do Ressuscitado, espelham a dificuldade dos discípulos em acreditarem
e em reconhecerem Jesus ressuscitado (cf Mt 28,17; Mc
16,11.14; Lc 24,11.13-32.37-38.41; Jo 20,11-18.24-29; 21,1-8), o que remete para a realidade
histórica da não comprovação científica direta do facto da Ressurreição.
Passa-se do cenário do túmulo vazio, com as palavras dos anjos, para as várias
aparições do Ressuscitado.
Nas suas aparições, Jesus ressuscitado encontra os discípulos,
não como um grupo crédulo e idealista, pronto a aceitar qualquer ilusão, mas como
um grupo surpreendido, perplexo, desconfiado, crítico, que acabou por
reconhecer que Jesus está vivo e ressuscitado depois de um caminho
relativamente longo e difícil.
O trecho evangélico em referência situa-nos em Jerusalém
situa-nos em Jerusalém, pouco depois da ressurreição. Os onze estão reunidos e
já conhecem uma aparição de Jesus a Pedro (cf Lc 24,34) e o relato do encontro de Jesus com os discípulos de Emaús (cf Lc 24,35). Não obstante, o espaço e o tempo
psicológicos fazem a comunidade, cercada por um ambiente hostil, respirar medo,
perturbação e dúvida, desamparo e insegurança, o que resulta do facto de os
discípulos, no seu conjunto, não terem feito ainda a experiência do encontro
com Jesus ressuscitado.
Assim, Lucas procura mostrar como os discípulos descobrem
progressivamente o Ressuscitado. O escopo do evangelista é garantir aos
cristãos de todas as épocas que Cristo continua vivo e presente, guiando, acompanhando
e apoiando a Igreja, e dar a certeza de que a comunidade dos discípulos pode fazer
a experiência do encontro verdadeiro com o Jesus redivivo.
A catequese lucana utiliza diversas imagens a não tomar à
letra nem a absolutizar, pois, constituem tão simplesmente a roupagem que
envolve a mensagem nuclear, que é a capacidade de a comunidade cristã fazer e
mostrar a sua experiência de encontro com Jesus vivo e ressuscitado. Ao mesmo
tempo, Lucas desmonta a putativa ideia, feita circular por alguns, de que a
ressurreição de Jesus não passaria de mera invenção da Igreja primitiva ou
piedoso desejo dos discípulos, esperançados em que a aventura que viveram com
Jesus não terminasse no fracasso da cruz e num túmulo escavado numa rocha numa
das abas do Calvário.
Por conseguinte, a catequese de Lucas apresenta a
ressurreição de Jesus como um facto real, incontornável que os discípulos
descobriram e experimentaram só após um caminho longo, árduo, penoso, salpicado
de dúvidas e de incertezas.
Os
discípulos de Emaús contaram (exegoûnto: imperfeito de exêgéomai) o sucedido no caminho e como Ele
Se lhes (autoîs) deu a conhecer (egnôsthê:
aoristo passivo de ginôskô)
na fração do pão (en tê klásei toû ártou). Entretanto, Jesus põe-se no
meio deles e saúda-os: “A paz para vós”
(eirênê hymîn). Espantados e medrosos, pensam
que é um espírito. E eis que Jesus os interpela:
“Porque estais perturbados e porque se levantam esses pensamentos nos
vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo; tocai-Me e
vede: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que Eu tenho.”.
Depois, mostrou-lhes
as mãos e os pés. E, como, na sua alegria e admiração, não queriam ainda
acreditar, perguntou-lhes: “Tendes aí
alguma coisa para comer?”. Deram-Lhe uma posta de peixe assado, que Ele
tomou e começou a comer diante deles. Depois, disse-lhes:
“Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco: ‘Tem
de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos’ (deî
plêrôthêtai pánta gegramména en tô nómô Môÿséôs kaî toîs
prophétais kaì pslamoîs perí emoû).”.
Abriu-lhes
então o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes:
“Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e de ressuscitar dos
mortos ao terceiro dia e que havia de ser pregado em seu nome o arrependimento
e o perdão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém. Vós sois as
testemunhas de todas estas coisas (hymeîs
éste mártyes toútôn).”.
A primeira reação dos discípulos mostra que eles, após
a morte de Jesus, já tinham desistido de Jesus e nada mais esperavam Dele (Lc 24,21). Por isso, um novo início só poderia
vir de Deus. Mais uma vez se torna evidente que Deus não intervém na
consequência dum pedido ou desejo nosso, para satisfazer os nossos anseios ou
projeções mais insistentes. É sempre sua a iniciativa, impensável e
imprevisível do nosso lado. Não deixa, pois, Lucas de assinalar que os
discípulos de Jesus deram o encantador plano de Jesus por encerrado e tentaram planear
à sua maneira o tempo “pós-Jesus” como se Ele não estivesse no meio deles e
como está agora no meio de nós.
Face à intervenção de Jesus até são capazes de O
desafiar. Veja-se o caso dos discípulos de Emaús, que, frente à verdade oculta
a seus olhos, clamaram: “Tu és o único
que não sabe as coisas que aconteceram em Jerusalém nestes dias?” (Lc 24,18). Ou o de Tomé, que diz que, se não
vir os lugares dos cravos e lá não meter o dedo e a chaga do lado e não meter
lá a mão, não acreditará (cf
Jo 20,25).
Porém, Jesus, na sua teofania, que não se fez
anunciar, identifica-se, não com um retrato ou um documento, mas exibindo as
mãos e os pés (Lc
24,39-40) e mostrando as
mãos e o lado (Jo 20,20.
27), para que os
discípulos reconheçam o Ressuscitado como o que foi Crucificado, sendo as mãos
e os pés, como as mãos e o lado, as marcas da sua vida dada por nós.
Anota Dom António Couto que “não é pelo rosto que
identificamos Jesus Ressuscitado”, pois, se fosse, “aqueles discípulos, que com
Ele tinham convivido de perto, tê-lo-iam identificado sem demora”. É, antes, “a
sua maneira de ser que diz Quem Ele é”.
Por outro lado, aqueles discípulos, à vista do quem
veem, não dizem nada. Porém, Jesus continua a ser Aquele que fala com
autoridade (Mc 1,22), que diz a Palavra criadora (Jo 1,3). Ele disse (eîpen): “É necessário (deî) que se cumpram todas as coisas escritas (pánta gegramména) na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos acerca de mim” (perì
emoû). Ora foi escrito (gégraptai) que “o Cristo havia de sofrer, ressuscitar dos mortos ao
terceiro dia e ser anunciada (kêrýkhthênai) no seu nome a conversão para a remissão dos pecados a todas
as nações” (Lc 24,44-47). E proclama com autoridade: “Vós
sois testemunhas (mártyres) destas coisas” (Lc 24,48).
Por isso, a missão do anúncio do Evangelho não é
facultativa, mas insere-se na necessidade do desígnio de Deus, ao nível da morte e da ressurreição de Jesus.
O cristão, batizado na morte de Cristo, vive a vida nova da Ressurreição de
Cristo, mas isso implica viver do/e para o anúncio do Evangelho. Diz o prelado
que este é o único lugar do NT que vinca esta tripla necessidade: sofrimento e morte de Jesus;
ressurreição de Jesus; e anúncio do Evangelho a todas as nações.
Importa ainda precisar, frisa o prelado académico, que
este necessário anúncio do Evangelho não afeta
apenas os Onze, mas “os Onze e os outros com eles” (Lc 24,33), isto é, todos os discípulos de
Jesus. Assim, esta missão afeta-nos a todos, todos os discípulos de Jesus de
todos os tempos e lugares. Mais: o anúncio do Evangelho não decorre por conta e risco do arauto, que não o faz em nome próprio, mas por conta de
Cristo, pois é em seu nome que o discípulo prega e testemunha, tendo de se
apresentar sempre vinculado a Jesus Cristo, pois é Ele quem envia o arauto.
Ademais, este anúncio do
Evangelho não fica circunscrito a um horizonte espacial limitado, paroquial,
diocesano, nacional, continental, pois o seu verdadeiro horizonte são “todas as
nações” (Lc 24,47). Ora todas as nações, no sentido
original, será tudo o que nasceu, nasce e nascerá. Por isso, o anúncio é para
todos os lugares, tempos e corações.
Fica sabido que o caminho da fé não é o das evidências
materiais, mas um caminho que se percorre com o coração aberto à revelação de
Deus, pronto a acolher a experiência de Deus e da vida nova que Ele oferece a
todos. Foi este o caminho que os discípulos percorreram e em cujo topo experimentaram,
sem margem para dúvidas, que Jesus está vivo, caminhava connosco pelos caminhos
da história. Das dúvidas e incertezas, pela experiência de encontro com Cristo
vivo, chegaram à certeza da ressurreição, certeza que os relatos da
ressurreição, na sua linguagem muito própria, nos transmitem.
O até agora exposto permite relevar importantes dados da catequese
lucana a ter em conta:
Ao longo da caminhada de fé, os discípulos descobrem Jesus
vivo e ressuscitado no meio da comunidade e veem-No como o centro à volta do
qual a comunidade se constrói, se articula e se sente imbuída da paz que Jesus
derrama sobre a sua comunidade em marcha pela história.
Este Jesus, o Senhor, é o filho de Deus que, após caminhar
com os homens, reentrou no mundo de Deus. Por isso, o “espanto” e “medo” com
que os discípulos O acolhem são a reação normal do homem diante da divindade. E
Jesus não é um homem reanimado para a vida que levava antes, mas o Deus que
reentrou definitivamente na esfera divina.
As dúvidas dos discípulos dão conta da dificuldade que
sentiram em percorrer o caminho da fé, até ao encontro pessoal com o Ressuscitado.
A ressurreição não é, para eles, um facto evidente, mas o cume da caminhada de
amadurecimento da fé, até chegar à experiência do Ressuscitado.
Na catequese de Lucas, certos elementos sensíveis e materiais
constituem uma forma de ensinar que a experiência de encontro dos discípulos
com o Ressuscitado não foi uma ilusão ou produto da imaginação, mas uma
experiência forte e marcante. São um modo de dizer que o Jesus que os
discípulos encontraram, diferente e irreconhecível, é o mesmo que andou com
eles pelos caminhos da Palestina, anunciando-lhes e propondo-lhes a salvação. E
são ainda uma forma de vincar Jesus ressuscitado não está ausente e distante do
mundo em que os discípulos têm de continuar a caminhar, mas que Ele continua,
pelo tempo fora, a sentar-Se à mesa com eles, a estabelecer laços de familiaridade
e de comunhão com eles e a compartilhar com eles os seus sonhos, lutas, as
esperanças, dificuldades e sofrimentos.
Jesus ressuscitado desvenda aos discípulos o sentido profundo
das Escrituras, pois Ele as cumpre efetivamente e as interpreta com autoridade.
Assim, a comunidade de Jesus peregrina pela vida deve, continuamente, reunir-se
à volta de Jesus ressuscitado para escutar a Palavra que alimenta e que dá
sentido à sua caminhada histórica.
Os discípulos, alimentados pela Palavra, recebem de Jesus a
missão de dar testemunho diante de “todas as nações, começando por Jerusalém”,
tendo como tema central a morte e ressurreição de Jesus, o libertador anunciado
desde sempre. A missão da Igreja é pregar o arrependimento e o perdão dos
pecados a todos, propondo a opção pela vida nova de Deus, pela salvação, pela
vida.
Por tudo, é urgente pedir a Jesus que nos abra as
Escrituras e inflame o coração para a missão.
***
A missão
da Igreja exposta por Lucas na parte final do 3.º Evangelho é desenvolvida nos Atos dos Apóstolos, também de
Lucas, e com particular incidência no trecho que serviu de 1.ª leitura desta
dominga (At 3,13-15.17-19). Pedro e João (“dupla”
frequentemente associada na 1.ª parte do Livro: cf At 4,7-8.13.19) tinham subido ao Templo para a
oração da hora nona. Um coxo de nascença, que estava à entrada do Templo a
mendigar junto da porta Formosa, dirige-se-lhes e pede-lhes esmola. Pedro diz
que não tem “ouro nem prata”, mas, “em nome de Jesus Cristo Nazareno”, cura-o.
Assombrada e estupefacta, a multidão reúne-se sob o pórtico de Salomão para
ouvir da boca de Pedro a explicação para o estranho facto (cf
At 3,1-11). O
assombro e a estupefação exprimem o estado de alma de quem presencia a ação de
Deus manifestada através dos apóstolos; é a reação com que as multidões
acolheram os gestos de Jesus, o que revela que a ação dos apóstolos vem na
continuidade da ação de Jesus. E Pedro explica-se à multidão.
Em Pedro
e João, Lucas mostra o testemunho da primitiva comunidade de Jerusalém,
apostada em continuar a missão de Jesus e em apresentar aos homens o desígnio
de Deus. Lucas está convicto de que o testemunho se concretiza pela pregação e
ação dos discípulos. As suas palavras e gestos mostram como o mundo muda quando
a salvação chega e como o homem torna livre. O testemunho concita a oposição
dos que, instalados em velhos esquemas, recusam o desafio de Deus. E os
discípulos, arautos do mundo novo, serão perseguidos (cf
At 4,1-22).
Pedro dá
a entender à multidão que a cura do homem coxo foi realizada em nome de Jesus,
mostrando a continuidade do projeto de Jesus e garantindo que Jesus está vivo.
Enquanto percorreu os caminhos da Palestina, manifestou, em gestos concretos, a
presença da salvação de Deus entre os homens. E, se essa salvação continua a
derramar-se sobre os homens doentes e privados de vida e de liberdade, é porque
Jesus continua presente, oferecendo aos homens a vida nova, sendo agora os
discípulos os agentes da obra libertadora e salvadora no mundo.
Pedro começa
por referir os dramáticos acontecimentos que culminaram na morte de Jesus,
explicando-os como o resultado da rejeição da salvação pelos israelitas. Deus
ofereceu-lhes a vida e eles escolheram a morte; preferiram preservar a vida de
quem trouxe a morte e condenar à morte quem oferecia a vida (“Negastes o Santo e o Justo e pedistes a
libertação de um assassino. Destes a morte ao Príncipe da vida” – At 2,14-15a). Porém, Deus ressuscitou (êgeiren) Jesus dos mortos (ek nekrôn), demonstrando como o projeto de Jesus gera a vida.
A ressurreição é a prova de que o seu Projeto, que os israelitas rejeitaram, é
a proposta geradora de vida e de vida que a morte não pode vencer.
Nada,
porém, está perdido. Pedro sabe (e Deus também o sabe) que o Povo agiu por ignorância (katà ágnoian). Por isso, Deus, na sua imensa e
inefável bondade, continua a oferecer ao seu Povo a possibilidade de corrigir
os seus erros e fazer as opções certas. E a prova disso é que o homem coxo
recebeu de Deus o dom da vida.
Para
tanto, é necessário arrepender-se e converter-se (formas verbais
no imperativo: metanoêsate kaì
epistrápsate). São
estes dois verbos que definem o movimento de reorientar a vida para Deus, de
modo que Deus passe a estar no centro da vida do homem e o homem passe a “dar
ouvidos” a Deus vivendo em conformidade com o desígnio de Deus. E, pelo facto
de Cristo ser a manifestação de Deus, arrepender-se e converter-se implicam
aderir à pessoa de Cristo, crer n’Ele, acolher a sua mensagem e fazer-se
pregoeiro dela. Os israelitas podem apanhar a carruagem da salvação, deixando a
autossuficiência, o preconceito, o comodismo, e podem aderir a Jesus e à vida
que Ele propõe a cada pessoa em sede comunitária, mas têm de aceitar a entrada
de todos as pessoas e povos nesta economia da salvação.
2021.04.18 –
Louro de Carvalho
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