O 4.º domingo da Páscoa é o “Domingo do Bom Pastor”, porque a
liturgia propõe, um trecho do capítulo 10 do Evangelho de João, em que Jesus Se
apresenta como “o Belo Pastor” (ho poimên ho kalós), tendo no Ano B as caraterísticas peculiares do
pastor que conhece e ama gratuita e desinteressadamente as suas ovelhas, as
chama pelos seus nomes – e elas ouvem-No – e dá a vida por elas (kalós abrange a
semântica do belo, perfeito, verdadeiro, bom).
Porém, à cabeça da Liturgia da Palavra, surge a 1.ª leitura (At
4,8-12) que
patenteia Jesus como o único Salvador, pois “não há debaixo do céu outro nome,
dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (oudè gàr ónomá
estin héteron hypò tòn ouranòn tò dedoménon en anthrôpois en hôi deî sôthênai hêmâs).
Ora, crer que Jesus é o “único salvador” equivale a crer que Ele é o único
pastor que nos guia na direção da vida verdadeira, pelo que não devemos iludir-nos
com outras figuras e caminhos que induzam modos falsos de salvação.
O testemunho apostólico sobre Jesus e sobre a libertação que
nos oferece, evidenciado nos gestos (cura do paralítico à entrada do Templo – cf At 3,1-11) e nas palavras de Pedro (discurso à multidão à entrada do Templo
– cf At 3,12-26),
provoca a reação das autoridades e a prisão de Pedro e de João, que são presos
e levados ao Sinédrio. O Sinédrio, presidido pelo sumo sacerdote em funções e
constituído por 70 membros, oriundos das principais famílias do país (no tempo de Jesus, dominado pelos
saduceus, que negavam a ressurreição, embora com um grupo significativo de
fariseus, que a aceitavam), era a autoridade que superintendia na organização da vida religiosa,
jurídica e económica dos judeus. Contudo, as divergências sinedritas são postas
de lado face à causa comum contra os discípulos de Jesus. E aos apóstolos os
membros do Sinédrio perguntam: “Com que
poder ou em nome de quem fizestes isto?” (At 4,7). E o trecho em referência constitui a resposta de Pedro.
O testemunho sobre o Messias crucificado pelas autoridades e
ora ressuscitado aparece como provocação aos líderes judaicos. No entanto, o
texto lucano configura uma catequese a mostrar aos crentes como se concretiza o
testemunho dos discípulos, comissionados por Jesus para levarem a sua proposta
salvífica a todos os homens.
Lucas, observando que Pedro está “cheio do Espírito Santo” (At 4,8: plêstheîs pneúmatos hagíou), mostra que os cristãos não estão sós a enfrentar o mundo no
anúncio da salvação. É o Espírito que os guia na missão e testemunho.
Cumpre-se, pois, a promessa de Jesus aos discípulos:
“Quando vos levarem às sinagogas, aos
magistrados e às autoridades, não vos preocupeis com o que haveis de dizer em
vossa defesa, pois o Espírito Santo vos ensinará, no momento próprio, o que
haveis de dizer” (Lc 12,11-12).
Pedro, como paradigma do discípulo que testemunha Jesus
diante do mundo, passa de réu a acusador. Os dirigentes judaicos,
entrincheirados nos seus preconceitos e interesses, rotularam a doutrina de
Jesus como avessa ao desígnio de Deus e mataram Jesus. Porém, a ressurreição mostrou
que Jesus veio de Deus tendo a sua vida e doutrina a chancela de Deus. Citando
um salmo (cf Sl 118,2), Pedro compara a insensatez dos
chefes judaicos à cegueira do construtor que rejeite como inútil a pedra que um
construtor sensato utilizará como a pedra principal noutro edifício (cf At 4,11: autós estin hô líthos ho exouthenêtheìs hyph’ hymôn tôn oihodómôn, ho
genómenos eis kephajên gônías). Ora, Jesus é a pedra base do projeto de vida que Deus
oferece aos homens. A prova está no paralítico que adquiriu a mobilidade pela
ação de Jesus (“é por Ele
que este homem se encontra perfeitamente curado na vossa presença” – At 4, 10). Verdadeiramente, Jesus é a fonte
única de onde brota a salvação – salvação entendida como totalidade, como
realização plena do homem. Jesus (em hebraico “Jesus” significa “Javé salva”) é o único canal pelo qual a salvação
de Deus atinge os homens. Com este anúncio radical, Lucas insta-nos a sermos testemunhas
da salvação, apresentando aos homens Jesus Cristo e levando-os a aderirem, total
e incondicionalmente ao projeto de vida a que Jesus nos chama a todos. Com a forma
com que Pedro dá testemunho de Jesus num ambiente hostil, Lucas sugere a forma
como os discípulos hão de anunciar Jesus. Nada nem ninguém os pode calar: são
chamados a colaborar com Jesus no anúncio da salvação.
Em suma, os discípulos recebem a missão de apresentar ao
mundo e aos homens Jesus Cristo, o único Salvador. E é o Espírito que os anima
nessa missão e os encoraja a enfrentar a oposição das forças da opressão
interessadas em recusar ou em mascarar a proposta de Jesus.
***
Desde os primórdios, como hoje, entre os discípulos, surgem os
que distorcem a doutrina de Jesus e querem fazê-la coincidir com as suas
próprias ideias como se fossem donos da verdade. A isto responde a 1.ª Carta de
João, endereçada a comunidades cristãs do mundo joânico (situadas à volta de Éfeso, na parte
ocidental da Ásia Menor).
As questões dos hereges eram sobretudo de índole cristológica e ética. Do
ângulo cristológico, negavam que o Filho de Deus tenha encarnado através de
Maria e que tenha morrido na cruz; na sua ótica, o Cristo celeste veio sobre o
homem Jesus na altura do batismo, abandonando-O antes da paixão. Assim, a
humanidade de Jesus é irrelevante, interessando apenas a mensagem do Cristo
celeste, que Se serviu do homem para aparecer na terra. A nível ético-moral,
não cumprem os mandamentos desprezando, em especial, o do amor ao irmão. Por
isso, a carta apresenta as grandes coordenadas da vida cristã.
***
O trecho assumido como 2.ª leitura desta dominga (1Jo
3,1-2) integra 2.ª
parte da carta (cf 1 Jo
2,28-4,6), em que se
lembra que os crentes que são filhos de Deus (tékna Theoû), pelo que devem viver no quotidiano coerentes
com esta filiação. O contexto é o da polémica contra os “filhos do mal” que não
fazem as obras de Deus, porque não vivem conforme os mandamentos.
O autor recorda que Deus nos constituiu seus “filhos”. A raiz
desta filiação é o grande amor (agápên) de Deus pelos homens. Assim, o
título de “filhos de Deus” que os crentes ostentam não é título pomposo,
externo e sem conteúdo, mas título apropriado, que define o estatuto de todos
os que são e se sentem amados por Deus com um amor admirável, tendo, por
consequência, recebido de Deus a vida nova. Mas a condição de filhos implica
estar em comunhão com Deus e viver de forma coerente com essa comunhão. Os “filhos
de Deus” (tà tékna toû Theoû) realizam as obras de Deus, ao passo
que os “filhos do diabo” (tà tékna toû diabõlou) rejeitam a vida nova de Deus, não
praticam “a justiça, nem amam o seu irmão” (cf 1Jo 3,7-10).
A condição de filhos de Deus posiciona os crentes numa
posição singular diante do “mundo”, pelo que o mundo (ho
kósmos) os ignora ou
os persegue, rejeitando a sua palavra e o testemunho de vida. Não é nada de
surpreendente, pois o mundo também recusou Cristo e a sua doutrina.
Apesar de serem filhos de Deus desde o Batismo, os crentes
continuam a caminho da sua realização definitiva. Então, manifestar-se-á nos
crentes a vida definitiva, o Homem Novo plenamente realizado. E estarão em
total comunhão com Deus sendo, então, “semelhantes a Ele” (1Jo 3,2: hómoioi autôi).
A filiação divina é realidade que atinge o crente na sua peregrinação na terra
e postula uma vida de coerência com as obras de Deus. Mas só no céu, após a
libertação da condição de debilidade própria da fragilidade humana, terá o
crente a sua plena realização.
***
Depois de ilustrados pela imagem da pedra angular aplicada a
Cristo e no contexto da filiação divina que nos marca, estamos disponíveis para
a aceitação da catequese do Belo Pastor plasmada no capítulo 10 do 4.º
Evangelho. O evangelista, com esta imagem pastoril, especifica a missão de
Jesus. Com efeito, a obra do Messias consiste, nos termos do Salmo 23, em levar
cada homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas de que brota a água
– o Espírito Santo (cf Jo
7,37.39) – que dá a vida
em plenitude.
O discurso do Belo ou Bom Pastor é feito com materiais do AT,
sobretudo Ezequiel, cap. 34. A propósito dos exilados da Babilónia, o profeta
nota que os líderes de Israel foram maus pastores, que levaram o Povo por vias
de morte e desgraça. Por isso, o próprio Deus assume a condução do seu Povo e
porá à frente dele como Pastor perfeito o Messias que há de vir. Ficamos a
saber, pelo Evangelho de João, que a promessa divina veiculada por Ezequiel se
cumpre em Jesus.
O discurso do Belo Pastor (cf Jo 10) surge enquadrado na Festa judaica anual da Dedicação do Templo (vd Jo 10,22) e na polémica entre Jesus e alguns
líderes judaicos, sobretudo fariseus (cf Jo 9,40; 10,19-21.24.31-39).
Antíoco IV Epifânio profanara o Templo, introduzindo
cultos pagãos (167 a. C.). Contra esta paganização do judaísmo
lutaram os Macabeus e Judas procedeu, em 164 a. C., à purificação e dedicação do
Templo. Este importante acontecimento passou a ser celebrado todos os anos, durante
8 dias, com a Festa da Dedicação (tendo como símbolo o candelabro de 8 braços), a partir de 25 do mês de Kisleu,
que, no ano de 2021, corresponde ao 29 de novembro.
Diz o Talmude que, ao entrarem os fiéis no Templo
profanado pelos helenistas, só encontraram uma âmbula de azeite puro de
oliveira para acender o candelabro de 7 braços, um dos símbolos de Israel, que
deve arder em permanência, noite e dia, diante do Deus Vivo. Porém, uma âmbula
de azeite duraria só um dia e eram precisos 8 dias para preparar novo azeite.
Ora, o azeite da âmbula durou 7 dias. Por isso, na festa, acende-se um
candelabro de 8 braços, mas acende-se só uma luz por dia, depois do pôr do sol,
aumentando progressivamente até estarem acesas as 8 luzes. E, ao invés das
luzes da menôrah e do sábado, que iluminam o
interior do Santuário e da casa de família, as luzes do candelabro da
Dedicação, devem ser vistas por fora, alumiando o ambiente social, político,
comercial e cultural. E, ao invés das outras referidas luzes, não se acendem
todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, pois, quando as condições
são adversas, não basta acender uma luz e mantê-la. É preciso aumentá-la
constantemente.
Esta evocação da luz, remete-nos para Cristo luz do
mundo, como Ele afirmou de Si mesmo (cf Jo 8,12), devendo nós segui-Lo, para termos a luz, tal como as ovelhas seguem o
pastor para terem pastagens e água em abundância.
Tendo visto a pressão dos líderes sobre o cego de nascença
para que ele não abraçasse a luz (cf Jo 9,1-41), Jesus denuncia o tratamento que eles dão ao povo, apenas
interessados em proteger os seus próprios interesses e usando o povo em
benefício próprios. Enfim, “são ladrões e salteadores” (Jo 10,8: kléptai eisìn kaì lêstaí), que se apoderam do que não lhes pertence e roubam ao povo
qualquer possibilidade de libertação.
O trecho proclamado nesta dominga (Jo
10,11-18) põe na
boca de Jesus o enunciado lapidar: “Eu
sou o Belo Pastor” (Egô eimi ho poimên ho kalós). O adjetivo “kalós”
entende-se no sentido de perfeito, modelar, ideal, dedicado, desinteressado.
Como dizia o Padre Paulo Sérgio Silva na festividade de São Jorge em Pevidém,
este pastor tem caraterísticas peculiares: conhece cada uma das suas ovelhas e
elas conhecem-no; ele chama cada uma pelo seu nome e elas ouvem-no; ele vai à
frente delas como seu caminho e elas seguem-no; ele dá a vida por elas, mesmo
que elas não reconheçam essa dádiva, mas frequentemente as ovelhas sentem o seu
carinho, apoio e proteção; e preocupa-se com as ovelhas que ainda não estão no
redil. Ora, Jesus, ao afirmar-se o Pastor, apresenta-se como Deus que apascenta
o rebanho, o povo. É o modelo de pastor, o pastor ideal e perfeito. E, como
tal, “dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10, 11: tên psikhên
títhêsin hypèr tôn probátôn). O conhecimento que tem delas é, não um saber teórico, mas a
expressão viva, quase corpórea, do contacto pessoal e do diálogo amoroso.
Depois, Jesus põe em paralelo duas figuras de pastor: o mercenário
(misthôtós),
que não é pastor, e o verdadeiro pastor (Jo 4,12-13). Distingue-se o verdadeiro pastor do mercenário pela diferente atitude
diante do lobo, que representa, nesta parábola, tudo o que põe em perigo as
ovelhas: os interesses instalados, a opressão, a injustiça, a violência, o ódio
do mundo.
O mercenário é contratado por dinheiro. O rebanho não é dele
e ele não ama as ovelhas que lhe foram confiadas. Cumpre o contrato, fugindo de
tudo o que ponha em perigo a ele próprio e aos seus interesses. O seu coração
não está com o rebanho. Enquadra o rebanho e dirige-o, mas a sua ação é ditada
pela lógica do egoísmo e do interesse. Por isso, quando pressente o perigo,
abandona o rebanho à sua sorte. Ao invés, o verdadeiro pastor presta o seu
serviço por amor. Não está apenas interessado em cumprir o contrato, mas em
fazer com que as ovelhas tenham vida e se sintam felizes. A sua prioridade é o
bem das ovelhas. Por isso, arrisca tudo em benefício do rebanho e está disposto
a dar a vida pelas ovelhas que ama. Nele as ovelhas podem confiar, pois sabem
que ele não defende os seus interesses pessoais, mas os do rebanho.
Jesus é o modelo do verdadeiro pastor (Jo 10,14-15). Conhece cada uma das ovelhas, tem
com cada uma relação pessoal e única, ama cada uma, conhece os seus
sofrimentos, dramas, sonhos e esperanças. Esta relação é tão especial, que Ele
até a compara à relação de amor e intimidade que tem com o próprio Pai. É este
amor, pessoal e íntimo, que leva Jesus a pôr a própria vida ao serviço das ovelhas
e até a oferecer a própria vida para que todas elas tenham vida e a tenham em
abundância. Nenhum risco, dificuldade ou sofrimento O faz desanimar. A defesa do
rebanho é ditada por um amor ilimitado, que vai até ao dom da vida.
Definida a missão e a atitude para com o rebanho, Jesus
explica quem são as suas ovelhas e quem pode fazer parte do rebanho. Ao dizer “tenho ainda outras ovelhas que não são deste
redil e preciso de as reunir” (Jo 10,16a), esclarece que a sua missão não se encerra nas fronteiras do judaísmo,
mas é missão universal, destinada a todos os povos. Por isso, a comunidade de
Jesus não está encerrada numa instituição nacional ou cultural. Para integrar esta
comunidade, é decisivo segui-Lo. Nascerá uma comunidade única, cuja referência
é Jesus e que caminhará com Jesus ao encontro da vida (“elas
ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” – Jo 10,16b).
Por fim, explicita que a sua missão está conforme o desígnio
do Pai: dar vida aos homens (Jo 10,17-18) –
desígnio a que Jesus dedica toda a sua vida terrena cumprindo a missão que o
Pai Lhe confiou. O que O move não é o interesse pessoal, mas o cumprimento da
vontade do Pai, que coincide com a realização da sua condição de Filho.
Enfim, é de anotar que, ao dizer “Eu sou”, está a dizer “vós
sois”, a estabelecer uma relação pessoal de proximidade e intimidade
connosco, marcada pelas expressões “chamar pelo nome”, “conhecer”, “ouvir a voz”,
“dar a vida”. Ele é o Pastor, é a Pedra angular, é a Luz, é o Amor. Ele é a Cruz
que, pela ressurreição, se tornou a Árvore da Vida.
2021.04.25
– Louro de Carvalho
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