segunda-feira, 26 de abril de 2021

Cristo, a Pedra Angular do edifício eclesial e o Belo Pastor

 

 

O 4.º domingo da Páscoa é o “Domingo do Bom Pastor”, porque a liturgia propõe, um trecho do capítulo 10 do Evangelho de João, em que Jesus Se apresenta como “o Belo Pastor” (ho poimên ho kalós), tendo no Ano B as caraterísticas peculiares do pastor que conhece e ama gratuita e desinteressadamente as suas ovelhas, as chama pelos seus nomes – e elas ouvem-No – e dá a vida por elas (kalós abrange a semântica do belo, perfeito, verdadeiro, bom).

Porém, à cabeça da Liturgia da Palavra, surge a 1.ª leitura (At 4,8-12) que patenteia Jesus como o único Salvador, pois “não há debaixo do céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (oudè gàr ónomá estin héteron hypò tòn ouranòn tò dedoménon en anthrôpois en hôi deî sôthênai hêmâs). Ora, crer que Jesus é o “único salvador” equivale a crer que Ele é o único pastor que nos guia na direção da vida verdadeira, pelo que não devemos iludir-nos com outras figuras e caminhos que induzam modos falsos de salvação.

O testemunho apostólico sobre Jesus e sobre a libertação que nos oferece, evidenciado nos gestos (cura do paralítico à entrada do Templo – cf At 3,1-11) e nas palavras de Pedro (discurso à multidão à entrada do Templo – cf At 3,12-26), provoca a reação das autoridades e a prisão de Pedro e de João, que são presos e levados ao Sinédrio. O Sinédrio, presidido pelo sumo sacerdote em funções e constituído por 70 membros, oriundos das principais famílias do país (no tempo de Jesus, dominado pelos saduceus, que negavam a ressurreição, embora com um grupo significativo de fariseus, que a aceitavam), era a autoridade que superintendia na organização da vida religiosa, jurídica e económica dos judeus. Contudo, as divergências sinedritas são postas de lado face à causa comum contra os discípulos de Jesus. E aos apóstolos os membros do Sinédrio perguntam: “Com que poder ou em nome de quem fizestes isto?(At 4,7). E o trecho em referência constitui a resposta de Pedro.

O testemunho sobre o Messias crucificado pelas autoridades e ora ressuscitado aparece como provocação aos líderes judaicos. No entanto, o texto lucano configura uma catequese a mostrar aos crentes como se concretiza o testemunho dos discípulos, comissionados por Jesus para levarem a sua proposta salvífica a todos os homens.

Lucas, observando que Pedro está “cheio do Espírito Santo” (At 4,8: plêstheîs pneúmatos hagíou), mostra que os cristãos não estão sós a enfrentar o mundo no anúncio da salvação. É o Espírito que os guia na missão e testemunho. Cumpre-se, pois, a promessa de Jesus aos discípulos:

Quando vos levarem às sinagogas, aos magistrados e às autoridades, não vos preocupeis com o que haveis de dizer em vossa defesa, pois o Espírito Santo vos ensinará, no momento próprio, o que haveis de dizer” (Lc 12,11-12).

Pedro, como paradigma do discípulo que testemunha Jesus diante do mundo, passa de réu a acusador. Os dirigentes judaicos, entrincheirados nos seus preconceitos e interesses, rotularam a doutrina de Jesus como avessa ao desígnio de Deus e mataram Jesus. Porém, a ressurreição mostrou que Jesus veio de Deus tendo a sua vida e doutrina a chancela de Deus. Citando um salmo (cf Sl 118,2), Pedro compara a insensatez dos chefes judaicos à cegueira do construtor que rejeite como inútil a pedra que um construtor sensato utilizará como a pedra principal noutro edifício (cf At 4,11: autós estin hô líthos ho exouthenêtheìs hyph’ hymôn tôn oihodómôn, ho genómenos eis kephajên gônías). Ora, Jesus é a pedra base do projeto de vida que Deus oferece aos homens. A prova está no paralítico que adquiriu a mobilidade pela ação de Jesus (“é por Ele que este homem se encontra perfeitamente curado na vossa presença” – At 4, 10). Verdadeiramente, Jesus é a fonte única de onde brota a salvação – salvação entendida como totalidade, como realização plena do homem. Jesus (em hebraico “Jesus” significa “Javé salva”) é o único canal pelo qual a salvação de Deus atinge os homens. Com este anúncio radical, Lucas insta-nos a sermos testemunhas da salvação, apresentando aos homens Jesus Cristo e levando-os a aderirem, total e incondicionalmente ao projeto de vida a que Jesus nos chama a todos. Com a forma com que Pedro dá testemunho de Jesus num ambiente hostil, Lucas sugere a forma como os discípulos hão de anunciar Jesus. Nada nem ninguém os pode calar: são chamados a colaborar com Jesus no anúncio da salvação.

Em suma, os discípulos recebem a missão de apresentar ao mundo e aos homens Jesus Cristo, o único Salvador. E é o Espírito que os anima nessa missão e os encoraja a enfrentar a oposição das forças da opressão interessadas em recusar ou em mascarar a proposta de Jesus.

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Desde os primórdios, como hoje, entre os discípulos, surgem os que distorcem a doutrina de Jesus e querem fazê-la coincidir com as suas próprias ideias como se fossem donos da verdade. A isto responde a 1.ª Carta de João, endereçada a comunidades cristãs do mundo joânico (situadas à volta de Éfeso, na parte ocidental da Ásia Menor). As questões dos hereges eram sobretudo de índole cristológica e ética. Do ângulo cristológico, negavam que o Filho de Deus tenha encarnado através de Maria e que tenha morrido na cruz; na sua ótica, o Cristo celeste veio sobre o homem Jesus na altura do batismo, abandonando-O antes da paixão. Assim, a humanidade de Jesus é irrelevante, interessando apenas a mensagem do Cristo celeste, que Se serviu do homem para aparecer na terra. A nível ético-moral, não cumprem os mandamentos desprezando, em especial, o do amor ao irmão. Por isso, a carta apresenta as grandes coordenadas da vida cristã.

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O trecho assumido como 2.ª leitura desta dominga (1Jo 3,1-2) integra 2.ª parte da carta (cf 1 Jo 2,28-4,6), em que se lembra que os crentes que são filhos de Deus (tékna Theoû), pelo que devem viver no quotidiano coerentes com esta filiação. O contexto é o da polémica contra os “filhos do mal” que não fazem as obras de Deus, porque não vivem conforme os mandamentos.

O autor recorda que Deus nos constituiu seus “filhos”. A raiz desta filiação é o grande amor (agápên) de Deus pelos homens. Assim, o título de “filhos de Deus” que os crentes ostentam não é título pomposo, externo e sem conteúdo, mas título apropriado, que define o estatuto de todos os que são e se sentem amados por Deus com um amor admirável, tendo, por consequência, recebido de Deus a vida nova. Mas a condição de filhos implica estar em comunhão com Deus e viver de forma coerente com essa comunhão. Os “filhos de Deus” (tà tékna toû Theoû) realizam as obras de Deus, ao passo que os “filhos do diabo” (tà tékna toû diabõlou) rejeitam a vida nova de Deus, não praticam “a justiça, nem amam o seu irmão” (cf 1Jo 3,7-10).

A condição de filhos de Deus posiciona os crentes numa posição singular diante do “mundo”, pelo que o mundo (ho kósmos) os ignora ou os persegue, rejeitando a sua palavra e o testemunho de vida. Não é nada de surpreendente, pois o mundo também recusou Cristo e a sua doutrina.

Apesar de serem filhos de Deus desde o Batismo, os crentes continuam a caminho da sua realização definitiva. Então, manifestar-se-á nos crentes a vida definitiva, o Homem Novo plenamente realizado. E estarão em total comunhão com Deus sendo, então, “semelhantes a Ele” (1Jo 3,2: hómoioi autôi). A filiação divina é realidade que atinge o crente na sua peregrinação na terra e postula uma vida de coerência com as obras de Deus. Mas só no céu, após a libertação da condição de debilidade própria da fragilidade humana, terá o crente a sua plena realização.

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Depois de ilustrados pela imagem da pedra angular aplicada a Cristo e no contexto da filiação divina que nos marca, estamos disponíveis para a aceitação da catequese do Belo Pastor plasmada no capítulo 10 do 4.º Evangelho. O evangelista, com esta imagem pastoril, especifica a missão de Jesus. Com efeito, a obra do Messias consiste, nos termos do Salmo 23, em levar cada homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas de que brota a água – o Espírito Santo (cf Jo 7,37.39) – que dá a vida em plenitude.

O discurso do Belo ou Bom Pastor é feito com materiais do AT, sobretudo Ezequiel, cap. 34. A propósito dos exilados da Babilónia, o profeta nota que os líderes de Israel foram maus pastores, que levaram o Povo por vias de morte e desgraça. Por isso, o próprio Deus assume a condução do seu Povo e porá à frente dele como Pastor perfeito o Messias que há de vir. Ficamos a saber, pelo Evangelho de João, que a promessa divina veiculada por Ezequiel se cumpre em Jesus.

O discurso do Belo Pastor (cf Jo 10) surge enquadrado na Festa judaica anual da Dedicação do Templo (vd Jo 10,22) e na polémica entre Jesus e alguns líderes judaicos, sobretudo fariseus (cf Jo 9,40; 10,19-21.24.31-39).

Antíoco IV Epifânio profanara o Templo, introduzindo cultos pagãos (167 a. C.). Contra esta paganização do judaísmo lutaram os Macabeus e Judas procedeu, em 164 a. C., à purificação e dedicação do Templo. Este importante acontecimento passou a ser celebrado todos os anos, durante 8 dias, com a Festa da Dedicação (tendo como símbolo o candelabro de 8 braços), a partir de 25 do mês de Kisleu, que, no ano de 2021, corresponde ao 29 de novembro.

Diz o Talmude que, ao entrarem os fiéis no Templo profanado pelos helenistas, só encontraram uma âmbula de azeite puro de oliveira para acender o candelabro de 7 braços, um dos símbolos de Israel, que deve arder em permanência, noite e dia, diante do Deus Vivo. Porém, uma âmbula de azeite duraria só um dia e eram precisos 8 dias para preparar novo azeite. Ora, o azeite da âmbula durou 7 dias. Por isso, na festa, acende-se um candelabro de 8 braços, mas acende-se só uma luz por dia, depois do pôr do sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as 8 luzes. E, ao invés das luzes da menôrah e do sábado, que iluminam o interior do Santuário e da casa de família, as luzes do candelabro da Dedicação, devem ser vistas por fora, alumiando o ambiente social, político, comercial e cultural. E, ao invés das outras referidas luzes, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, pois, quando as condições são adversas, não basta acender uma luz e mantê-la. É preciso aumentá-la constantemente.

Esta evocação da luz, remete-nos para Cristo luz do mundo, como Ele afirmou de Si mesmo (cf Jo 8,12), devendo nós segui-Lo, para termos a luz, tal como as ovelhas seguem o pastor para terem pastagens e água em abundância.

Tendo visto a pressão dos líderes sobre o cego de nascença para que ele não abraçasse a luz (cf Jo 9,1-41), Jesus denuncia o tratamento que eles dão ao povo, apenas interessados em proteger os seus próprios interesses e usando o povo em benefício próprios. Enfim, “são ladrões e salteadores” (Jo 10,8: kléptai eisìn kaì lêstaí), que se apoderam do que não lhes pertence e roubam ao povo qualquer possibilidade de libertação.

O trecho proclamado nesta dominga (Jo 10,11-18) põe na boca de Jesus o enunciado lapidar: “Eu sou o Belo Pastor(Egô eimi ho poimên ho kalós). O adjetivo “kalós” entende-se no sentido de perfeito, modelar, ideal, dedicado, desinteressado. Como dizia o Padre Paulo Sérgio Silva na festividade de São Jorge em Pevidém, este pastor tem caraterísticas peculiares: conhece cada uma das suas ovelhas e elas conhecem-no; ele chama cada uma pelo seu nome e elas ouvem-no; ele vai à frente delas como seu caminho e elas seguem-no; ele dá a vida por elas, mesmo que elas não reconheçam essa dádiva, mas frequentemente as ovelhas sentem o seu carinho, apoio e proteção; e preocupa-se com as ovelhas que ainda não estão no redil. Ora, Jesus, ao afirmar-se o Pastor, apresenta-se como Deus que apascenta o rebanho, o povo. É o modelo de pastor, o pastor ideal e perfeito. E, como tal, “dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10, 11: tên psikhên títhêsin hypèr tôn probátôn). O conhecimento que tem delas é, não um saber teórico, mas a expressão viva, quase corpórea, do contacto pessoal e do diálogo amoroso.

Depois, Jesus põe em paralelo duas figuras de pastor: o mercenário (misthôtós), que não é pastor, e o verdadeiro pastor (Jo 4,12-13). Distingue-se o verdadeiro pastor do mercenário pela diferente atitude diante do lobo, que representa, nesta parábola, tudo o que põe em perigo as ovelhas: os interesses instalados, a opressão, a injustiça, a violência, o ódio do mundo.

O mercenário é contratado por dinheiro. O rebanho não é dele e ele não ama as ovelhas que lhe foram confiadas. Cumpre o contrato, fugindo de tudo o que ponha em perigo a ele próprio e aos seus interesses. O seu coração não está com o rebanho. Enquadra o rebanho e dirige-o, mas a sua ação é ditada pela lógica do egoísmo e do interesse. Por isso, quando pressente o perigo, abandona o rebanho à sua sorte. Ao invés, o verdadeiro pastor presta o seu serviço por amor. Não está apenas interessado em cumprir o contrato, mas em fazer com que as ovelhas tenham vida e se sintam felizes. A sua prioridade é o bem das ovelhas. Por isso, arrisca tudo em benefício do rebanho e está disposto a dar a vida pelas ovelhas que ama. Nele as ovelhas podem confiar, pois sabem que ele não defende os seus interesses pessoais, mas os do rebanho.

Jesus é o modelo do verdadeiro pastor (Jo 10,14-15). Conhece cada uma das ovelhas, tem com cada uma relação pessoal e única, ama cada uma, conhece os seus sofrimentos, dramas, sonhos e esperanças. Esta relação é tão especial, que Ele até a compara à relação de amor e intimidade que tem com o próprio Pai. É este amor, pessoal e íntimo, que leva Jesus a pôr a própria vida ao serviço das ovelhas e até a oferecer a própria vida para que todas elas tenham vida e a tenham em abundância. Nenhum risco, dificuldade ou sofrimento O faz desanimar. A defesa do rebanho é ditada por um amor ilimitado, que vai até ao dom da vida.

Definida a missão e a atitude para com o rebanho, Jesus explica quem são as suas ovelhas e quem pode fazer parte do rebanho. Ao dizer “tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir(Jo 10,16a), esclarece que a sua missão não se encerra nas fronteiras do judaísmo, mas é missão universal, destinada a todos os povos. Por isso, a comunidade de Jesus não está encerrada numa instituição nacional ou cultural. Para integrar esta comunidade, é decisivo segui-Lo. Nascerá uma comunidade única, cuja referência é Jesus e que caminhará com Jesus ao encontro da vida (“elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” – Jo 10,16b).

Por fim, explicita que a sua missão está conforme o desígnio do Pai: dar vida aos homens (Jo 10,17-18) – desígnio a que Jesus dedica toda a sua vida terrena cumprindo a missão que o Pai Lhe confiou. O que O move não é o interesse pessoal, mas o cumprimento da vontade do Pai, que coincide com a realização da sua condição de Filho.

Enfim, é de anotar que, ao dizer “Eu sou”, está a dizer “vós sois”, a estabelecer uma relação pessoal de proximidade e intimidade connosco, marcada pelas expressões “chamar pelo nome”, “conhecer”, “ouvir a voz”, “dar a vida”. Ele é o Pastor, é a Pedra angular, é a Luz, é o Amor. Ele é a Cruz que, pela ressurreição, se tornou a Árvore da Vida.

2021.04.25 – Louro de Carvalho

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