A sessão comemorativa do 25 de Abril, neste ano de 2021,
ofereceu aos cidadãos, entre outras, um boa pérola de discurso político nas
palavras de Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República, que pena
será que se obnubile na pouca expressividade retórica do orador.
No 47.º aniversário da revolução que propiciou a liberdade aos
portugueses, no 45.º aniversário da entrada em vigor da Constituição da
República Portuguesa, à luz da qual se elaboram as leis e se pauta o
funcionamento das instituições democráticas, e quando se assinala o 60.º
aniversário do início do da guerra colonial que ceifou vidas e levou o país a
um beco sem saída militar, Rodrigues, após referir a pandemia de covid-19 cuja terceira
vaga, pela sua inconcussa severidade, determinou novo “confinamento
generalizado do País, com as consequências sociais e económicas que todos
conhecemos”, salientou “o horizonte de redobrada esperança que as diferentes
vacinas vieram trazer”, permitindo esta sessão solene da Assembleia da
República.
Vincou o reconhecimento que merecem “os profissionais de saúde e
todos os que permitiram que o País não parasse” e a homenagem feita, há três
dias, no Parlamento, às muitas vítimas da pandemia. Saudou os deputados
presentes no hemiciclo, bem como os que acompanhavam a sessão a partir dos
respetivos gabinetes, e o diminuto leque de convidados, representativo das
principais instituições do Estado e da sociedade. E enalteceu a presença do
Presidente da República, “47 dias depois de tomar solenemente posse perante a
Assembleia da República, iniciando, assim, o seu segundo mandato”.
Sobre os 47 anos de liberdade e democracia, disse tratar-se dum
período curto relativamente aos quase 900 anos de história da nação,
mas “suficiente para nele se terem alcançado significativos avanços e
progressos” no domínio dos direitos fundamentais e das liberdades individuais,
nos domínios social e económico e no plano político. E apontou como
realizações marcantes da democracia a infraestruturação feita nas últimas
décadas na habitação social, na eletrificação, no abastecimento de água e no
saneamento, na rodovia, na modernização de várias áreas da administração pública;
a criação do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social; a evolução do
parque escolar; a evolução na qualificação das pessoas, das empresas e dos
territórios; e as conquistas da ciência. Isto, em “menos de meio século que
transformou Portugal, que nos trouxe ao país que somos, ao Portugal democrático
e aberto ao mundo”. E, frisando que “ainda há muito por fazer, mas muito de
substancial foi conseguido”, declarou que “há
objetivos sempre insatisfatoriamente cumpridos, como os de melhor justiça, mais
igualdade de oportunidades e forte solidariedade social”, mas não deixou de
assinalar que o país exerce hoje “com reconhecimento e prestígio” a
responsabilidade da “Presidência do Conselho da União Europeia em período de ameaças
à saúde e à paz no nosso continente”.
No âmbito dos 45 anos de vigência da Constituição, Ferro
Rodrigues começou por evocar quantos/as, oriundos de projetos ideológicos tão
distantes “souberam convergir no essencial, elaborando e aprovando o ambicioso
programa social, económico e político que foi a Constituição da República
Portuguesa de 1976”, a qual “possibilitou uma grande multiplicidade de
soluções de governo” e, sobretudo, “garantiu estabilidade política, sabendo
resistir à “prova do tempo”.
Da histórica lição,
plena de atualidade, da Assembleia Constituinte, num quadro de
pandemia, o Presidente do Parlamento colheu “a importância de todos sermos
parte da solução” e vincou:
“Representando a diversidade e a pluralidade
da sociedade portuguesa, é nossa obrigação honrar o legado dos constituintes, e
das treze legislaturas que se seguiram, ultrapassando bloqueios e traduzindo em
lei as soluções para os problemas do país, e para os muitos, e cada vez mais
exigentes, desafios com que nos deparamos e que teremos ainda pela
frente. Só assim seremos capazes de aprofundar a nossa democracia.”.
Depois, afirmou que, numa democracia consolidada, em 47
anos, “alcançámos
um Estado social robusto e importantes níveis de progresso social e económico”
e enfrentámos crises financeiras e orçamentais, institucionais e migratórias,
bem como “a crise climática que levará décadas a superar ou a crise pandémica
que ainda atravessamos” – tendo a democracia sido fundamental “para as
enfrentar e superar”. Por isso, é de esperar, como há 47 anos, que hoje,
face às ameaças iminentes, “os representantes democraticamente eleitos das
portuguesas e dos Portugueses na Assembleia da República” possam “convergir no
que é estritamente essencial”, “debatendo, no Parlamento, respostas e soluções
concretas aos problemas e às necessidades concretas do País, honrando a democracia
representativa que somos, que sempre soube superar as crises enormes por que
passou, nos limites da Constituição e à luz das regras do Estado de direito”. E,
em remoque a atoardas proferidas fora e dentro da aula parlamentar, Ferro
Rodrigues sustentou:
“Não há democracia sem Parlamento (…), não
há Parlamento sem partidos. Democracias robustas têm Parlamentos fortes e partidos
que conseguem representar e sintetizar os múltiplos interesses da sociedade,
num equilíbrio de vontades, nomeadamente entre a da maioria e o respeito pelas
minorias. É também nisto que reside a força da democracia.”.
A seguir, engrandecendo o contributo do poder local para a
concretização de abril e da democracia, observou que às autarquias se deve muito
do desenvolvimento do país nas últimas décadas e observou que mais de 1 milhão
de pessoas “se
ocuparam da coisa pública, nas
assembleias de freguesia, nas juntas de freguesias, nas câmaras e nas
assembleias municipais, e, mais recentemente, nas entidades intermunicipais”,
batendo-se, de forma abnegada e, muitas vezes, voluntária, “pela satisfação das
necessidades das suas populações, dos seus territórios, dos seus costumes e
tradições”. Por isso, em ano de mudança de ciclo autárquico, Ferro
Rodrigues deixou “uma palavra de apreço para todos os autarcas do país, que
ajudam a construir os consensos necessários ao progresso de todos”.
***
Observando que a Revolução de Abril, apesar das inúmeras
conquistas que trouxe e do “analfabetismo brutificante” a que pôs termo, “não
logrou erradicar as ideias e os valores que caraterizaram aquele período negro
da nossa história, muitos deles adormecidos desde então”, salientou que “uma das
grandes virtudes da democracia e da liberdade é a de permitir a convivência
entre todos os credos políticos, incluindo os antidemocratas”; e frisou que os
promotores de falsas notícias, ódio, desinformação, calúnias e mentiras, nas
redes sociais, se contam “por muitas centenas e atingem milhões de alvos”,
sendo as caixas
de comentários de alguns órgãos ditos de comunicação social, “um esgoto a céu
aberto” – facto não apenas nacional, que enfraquece “a democracia,
o Estado de direito e a convicção por valores fundamentais que são os nossos”. Apontou,
a propósito, o caso da invasão do Capitólio nos EUA, sede do Congresso, “apoiada
– ou, pelo menos, tolerada – ao mais alto nível”, inferindo que, onde “pareciam
florescer democracias, estas são ameaçadas, num retrocesso histórico que nos
reaproxima da realidade sombria de um passado aonde ninguém deveria querer
voltar”.
E, citando o Papa Francisco, que alerta para “novas formas de
egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas por uma suposta defesa dos
interesses nacionais”, disse que se trata de “sinais de regressão”, mas que “não é fácil combater o discurso simplista dos
antidemocratas” ou “combater a desinformação, a mentira, o medo”. Não obstante,
sabe que a democracia “é suficientemente resiliente para resistir a esta
investida e robusta o suficiente para a combater”, cabendo aos democratas “um
papel fundamental” na batalha pela nossa sobrevivência enquanto “sociedade
aberta, tolerante e inclusiva” – “combate, em que todos somos poucos” e em que
“os partidos democráticos são fundamentais”, por serem “parte da muralha que
nos deve defender dos avanços da intolerância, da xenofobia, do ódio”; combate
em que o fortalecimento do Estado de direito e a responsabilização de todos os
protagonistas são essenciais; combate em que “é fundamental uma
comunicação social livre, isenta e credível, capaz de informar factos, com
verdade”; combate “onde a liberdade de expressão não se pode confundir com a
expressão sem regras, a qual, fazendo mão do anonimato, mais não ambiciona que
o insulto, a ofensa e a injúria”; combate “onde
o combate contra o chamado politicamente correto muitas
vezes esconde o saudosismo pelos tempos de impunidade da violência doméstica,
da supremacia racial, da homofobia, do desprezo pela dignidade e pela
individualidade dos outros”.
***
No atinente ao 60.º aniversário do início das guerras coloniais,
de 13 anos, a que a Revolução de Abril veio pôr um fim, disse que assinalar o
facto nesta Sessão Solene “é um imperativo – político,
moral e de consciência”. Com efeito, em 13 anos de guerras, perderam-se
milhares de vidas, de portugueses e africanos, ficou um rasto de destruição sem
paralelo, ainda hoje bem visível, e sobressai a faceta do tempo perdido e da oportunidade
desperdiçada. Esse logo período podia ter sido ganho “em termos políticos, sociais e económicos”, se
tivesse azado “a abertura democrática do regime e de negociação política”; e poderia
ter mudado o rumo da nossa história e da dos países irmãos “se a sua
independência tivesse chegado mais cedo, e, com ela, o direito à sua
autodeterminação”. E, evocando a denominada primavera marcelista, acentuou que,
“7 anos mais tarde, o ano de 1968 voltou a ser uma oportunidade perdida”.
Verificando que “há ainda marcas bem presentes deste passado”,
como “os discursos xenófobo e racista” em franjas da sociedade ou representações
sociais do período colonial, sinal de feridas abertas, ou, melhor, de feridas
ainda não completamente saradas, advertiu que “não podemos ignorar estes
sinais”, cabendo ao Parlamento “um papel da maior relevância no longo caminho
que há ainda a percorrer, revisitando este período à luz dos valores
democráticos, discutindo a memória do colonialismo e, 47 anos depois,
refletindo sobre a presença colonial em África”.
***
E, frisando o papel insubstituível da Assembleia da República,
até pela centralidade que detém no sistema político, “visto ser aqui, e só
aqui, que está representada a pluralidade de vontades de todas as portuguesas e
de todos os portugueses”, especificou que é nela que “são aprovadas as leis
estruturantes para o país”, que, “de forma transparente”, a ação do Governo “é diariamente
fiscalizada e escrutinada” e que “têm palco os principais debates políticos
nacionais”.
Se tudo isto remete para o cumprimento dos deveres
constitucionais da Assembleia, é óbvio que dum Parlamento moderno se espera e
exige mais, desde logo “um maior envolvimento com os cidadãos, uma progressiva
aproximação aos cidadãos”, ou seja, “a aproximação de eleitos e eleitores, no
duplo sentido”, importando que “todos tenham consciência disso”, a começar
pelos que servem as portuguesas e os portugueses na Assembleia”, pelo trabalho
e pelo exemplo de se deixar ser, “no conjunto das instituições, a mais
transparente, mais escrutinada, mais escrutinável”, e pelo orgulho de deputados
servindo a República, a Democracia e Portugal.
E, no quadro da tentativa de inversão da tendência de
distanciamento entre os cidadãos e as instituições, sensíveis ao pulsar da
sociedade, sobretudo dos mais novos, cujas primeiras preocupações estão hoje na
forma como cuidamos do planeta, apontou “a Casa do Parlamento –
Centro Interpretativo
da Assembleia da República, cuja abertura, depois de um atribulado
processo administrativo, se espera para breve, ainda no decurso da presente
Legislatura, e, nessa medida, antes mesmo de celebrarmos os 50 anos da
Constituição”. Salientou a iniciativa “Parlamento dos Jovens,
nascido em 1995 por impulso dos antigos Presidentes Barbosa de Melo e Almeida
Santos com o propósito de estimular o gosto pela participação cívica e política
e, sobretudo, promover o respeito pelo debate democrático e pela diversidade de
opiniões, que envolveu, na edição transata, mais de 1.000 escolas”, vincando
que o número atesta a relevância deste programa de aprendizagem da democracia
e “nos convoca para a importância do debate político, fundamental para aproximar
os mais novos da participação pública, para a coisa e para a causa pública”. E
destacou “a importância de o debate político ser feito além das juventudes
partidárias, em casa, nas escolas – como temos exemplos motivadores no Norte da
Europa”.
Tudo isto comporta desafios para o Parlamento, mas de que o
Parlamento “sairá mais forte, mais sólido e mais robusto”: “o desafio do
compromisso, construindo os consensos necessários a assegurar o apoio a
governos e a políticas que permitam o desenvolvimento do País”; “o desafio
legislativo, erigindo o edifício democrático e as leis estruturantes da democracia”;
“o desafio da fiscalização, acompanhando a evolução verificada nos Parlamentos
das democracias mais antigas, criando instrumentos para controlo eficaz do
Governo, valorizando as oposições; e o já referido desafio de abertura à
sociedade.
Em relação ao
desafio legislativo, atentou em que “os
titulares de cargos públicos e políticos têm de participar e decidir para
aperfeiçoar a legislação sobre eles próprios”, mas avisou que “não há donos da
transparência, nem é aceitável nenhuma lógica que ponha os eleitos, os
magistrados judiciais, os procuradores, como suspeitos à partida”.
E, quanto à sociedade, disse que o Parlamento é convocado a
celebrar acontecimentos ou personalidades que ajudam a compreender melhor o
País que somos e que queremos ser. Assim, será homenageada
e perpetuada a memória de figuras ímpares, como Aristides de Sousa Mendes ou
Eça de Queiroz, com vista a conceder-lhes Honras de Panteão Nacional, e tem
vindo a comemorado o Bicentenário do Constitucionalismo Português e da
Revolução Liberal que está na sua origem e onde encontramos as origens do nosso
sistema político. Enfim, celebra-se o passado, mas com olhos no futuro, “assumindo
que a liberdade de que todos disfrutam tem de ser diariamente defendida com o
vigor necessário”, em prol dum “país mais justo, mais livre e mais democrático” para
o qual contribuíram tantos heróis discretos, civis e militares, muitos
anónimos, que, antes de Abril, lutaram, das mais diversas formas, contra a
Ditadura, ajudando a fazer cair o regime do Estado Novo”.
É este País que celebramos hoje com a mesma determinação com
que, há 47 anos, sonharam os Capitães de Abril, ora representados pela
Associação 25 de Abril, pais duma Revolução que não tem proprietários, porque aos que
participaram na libertação do País se seguiram várias gerações que ajudaram a
construir o Portugal Democrático em que vivemos – disse Ferro Rodrigues.
E nada disto
deveria ser esquecido, por constituir a chave de prata de abertura à sessão que
encerrou com a discursiva chave de ouro pela mão de Marcelo, Presidente da
República!
2021.04.25 – Louro de Carvalho
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