Referem o Dinheiro Vivo, de 17 de
abril, e o DN, de 18, que um grupo de
voluntários denominado The Brave
Ones vem reparando, “de forma voluntária e apenas com os próprios meios”, o
troço de 9 quilómetros que liga Pocinho e Coa, com vista à promoção da
reabertura da linha férrea naquela porção da Linha do Douro.
A ligação do Pocinho a Barca de Alva foi abolida na década de 80 do século
XX, juntamente com toda a Linha do Sabor (Pocinho –
Duas Igrejas), que foi, durante largos anos, o modo de transporte do ferro extraído nas
minas de Moncorvo. Todavia, a ligação a Barca de Alva estava disponível para eventuais
viagens turísticas requeridas à CP por grupos interessados, o que deixou de ser
viável pelo progressivo abandono a que a companhia votou a linha, tendo chegado
a querer suprimir as carreiras regulares de comboio entre a Régua e o Pocinho.
Assim, o troço Pocinho-Barca de Alva esteve sem quaisquer cuidados de
manutenção desde 2004, apesar de ainda pertencer ao Estado, através da
Infraestruturas de Portugal (IP). Efetivamente, desde outubro de
1988, os comboios não passam do Pocinho para junto da fronteira com Espanha.
Sucede, porém, que – dizem os mencionados periódicos – várias seleções
europeias de remo têm escolhido o Pocinho para se prepararem para os Jogos
Olímpicos de Tóquio, pelo que foi ali instalado o centro de alto rendimento,
aproveitando a plenitude do rio Douro no local.
Por isso, o pequeno grupo em referência, o dos que se confessam apaixonados
pelo comboio, começou, há três anos, a fazer o que parecia impossível:
recuperar o percurso de 9 quilómetros entre o Pocinho e o Coa sem receber nada
em troca. O The Brave Ones, fundado
em 2007, é constituído pelos aguerridos heróis que persistem em querer os
comboios de volta aos carris. São 4 os elementos mais ativos, não sendo nenhum
daquela região. José Costa é do Porto, Vítor Gomes mora em São João da Madeira,
João Moreira reside em Cete e Carlos Jesus tem base domiciliária em Freamunde.
A este respeito, disse ao Dinheiro
Vivo José Costa, um dos fundadores do grupo:
“Há o cuidado de, enquanto sociedade
civil, preservarmos um bem que é de todos. Já nos propusemos oferecer os nossos
veículos para qualquer manutenção pesada que queiram fazer. Com o trabalho que
estamos a fazer, um veículo de manutenção da IP ficará habilitado a passar por
aqui.”.
Estes entusiastas, desde 2018 prescindem do seu tempo pessoal para
recuperar a linha. Realinhar carris, colocar travessas de madeira, cortar
árvores foram alguns dos trabalhos realizados. E houve tempo para retirar
pedras gigantes apenas com a ajuda dum macaco hidráulico, sem recorrer a gruas
ou outros meios mais pesados.
Os voluntários,
que circulam na linha graças a um veículo
ferroviário – um V7 – construído por José Costa, recorrem a meios
próprios para as reparações, que apenas são realizadas nos tempos livres. Só usam meios próprios para reparar a linha:
escadote, luvas, caixa de ferramentas, barras de madeira nas laterais,
berbequim, pá, parafusos e anilhas da linha soltos ou aproveitados de outros
pontos do troço. Bom exemplo de economia circular, segundo a linguagem técnica.
Porém, este ano, foi agora a primeira vez que os Brave Ones foram ao Pocinho, pois as
sucessivas declarações do estado de emergência e, sobretudo, o segundo
confinamento os obrigaram à interrupção do trabalho do cuidado da linha desde o
final do ano passado.
Além de retirar a vegetação em excesso, foi preciso unir, através duma travessa
de ferro, os carris separados. E João e Carlos, enquanto furam e martelam para
o trabalho ficar direito, explicam:
“Não havendo uma junção de carril, a
linha tem tendência a sair do sítio e depois há o risco de descarrilamento”.
Entretanto, Vítor Gomes percorre a linha a pé marcando com um spray, sobre
os carris, as velocidades máximas permitidas naquele troço. E, nas próximas
semanas, os Brave Ones vão colocar
várias placas junto à via, para a segurança dos utilizadores.
Aquando da visita dos jornalistas, houve almoço volante junto à Casa da Linha
Férrea, antiga casa de cantoneiros convertida em alojamento local ao ponto
quilométrico 173,822.
É com o V7
que os quatro bravos do Douro se movem pelo troço sem terem de andar a pé. Este
veículo, construído por José Costa, pesa 425 kg e funciona com o motor de uma
moto4 de 250 cm3, embora sem marcha atrás.
O torço em referência foi concessionado pela IP ao abrigo dum protocolo,
mas a empresa pública fez questão de lá colocar quatro pilaretes para recordar
que aquilo é património do Estado, não fosse acontecer que os beneméritos se viessem
a esquecer disso e viessem a garantir a posse por usucapião através de escritura
de justificação notarial. Para quem nada faz, toda a desconfiança é pouca e
mais vale prevenir que remediar.
Uns metros adiante, ainda se podem ver os postes – primeiro, de telégrafo;
depois, de telefone – que foram usados para a comunicação entre estações.
Estanho a chegar ao seu termo o trabalho destes 4 voluntários, depois de
quatro anos de tempo livre gasto para fazer o trabalho que deveria estar a
cargo do Estado, vai ser criado um grupo de trabalho para definir qual o melhor
modelo de reabertura do troço da Linha do Douro entre as estações do Pocinho e
Barca de Alva, reabertura que implica um investimento de 43 milhões de euros,
segundo um estudo de 2017 da IP.
A equipa será liderada pela CCDR (Comissão de
Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) contará com o apoio do Ministério da Coesão
Territorial e da IP. A este propósito, a Ministra Ana Abrunhosa considerou:
“A ideia é definirmos que modelo queremos
para retomar esse troço. O grupo de trabalho vai fazer a análise
custo-benefício e vai tentar perceber, com os atores da região, o melhor modelo
para essa retoma.”.
As conclusões serão conhecidas até ao final deste ano de 2021. O
modelo-base deverá passar pela reabertura da linha para o transporte de
turistas, mas sem excluir o serviço de mercadorias.
***
Tudo isto me faz lembrar o que, há anos, me dizia um médico num hospital
público em que trabalhavam alguns médicos espanhóis e bastantes enfermeiros
espanhóis: “Se Afonso Henriques cá
voltasse agora pegaria outra vez na espada e espadeiraria tudo a eito por
andarmos a gozar com ele ou ficaria descoroçoado por ter andado a perder o seu
tempo”.
Penso que algo semelhante diriam os próceres do fontismo e seus sequazes,
que souberam construir estradas por todo o país, obviamente em curva e
contracurva em muitos casos, pois não havia os meios de minação, terraplanagem
e enchimento que há hoje; e, ao mesmo tempo, souberam armadilhar o território
de vias férreas. Enfim, conseguiram permitir as deslocações regulares de muitos
dos cidadãos pelos meios que o progresso, na altura, soube colocar à disposição
das pessoas e da sociedade.
Magda Pinheiro, em entrevista a Clara Teixeira no n.º 59 da Visão – História, afirma que, “visto como motor do progresso a partir de
meados do século XIX, o caminho de ferro tornou-se ‘obsoleto’ quando Salazar e
Duarte Pacheco se deixaram fascinar pela modernidade do automóvel”. Com
efeito, para Salazar, Carmona e Pacheco, o automóvel passou a símbolo do
desenvolvimento induzindo o Estado Novo a desprezar a ferrovia. Contudo,
Salazar, segundo Franco Nogueira, na sua obra em seis volumes sobre o
governante, quando via as coisas mal paradas em Lisboa, metia-se no comboio
rápido da Beira e refugiava-se na sua residência de Santa Cruz do Vimieiro, Santa
Comba Dão, até que da capital surgisse a fidedigna informação de que o ambiente
ficara serenado.
Não obstante, foi em 1953 que rede ferroviária atingiu o seu pico,
perfazendo então 4386 Km de linha, em contraste com os atuais 2546 Km.
Entretanto, após sucessivos aumentos, até 1974, perderam-se 43Km, ficando a
rede com 4343 Km; e de 1974 a 1986 (sendo a
década de 70 neutra), a redução foi de 33 Km, tendo atingido, em 2020, a redução de 1764. E foi
em 1990 que o país se desfez, de uma assentada, da exploração de 676 Km de
linhas, sendo o Alentejo e Trás-os-Montes as regiões mais afetadas.
Entretanto, foi também em 1990 que se iniciou a modernização da Linha da
Beira Alta e se instalou o Convel, ou Controlo de Velocidade, o computador de
bordo que vai comunicando com a sinalização exterior tornando a condução mais
segura. Em 1999 é inaugurado o troço Campolide-Fogueteiro, um acrescento de 17
Km à rede, para possibilitar o comboio na Ponte 25 de Abril, destinado ao
tráfego suburbano, mas, 5 anos depois, com o prolongamento da linha do
Fogueteiro ao Pinhal Novo, ficou viabilizado o serviço de longo curso de Lisboa
para o Alentejo e o Algarve sem necessidade da travessia do Tejo por barco.
Apesar de algumas obras de modernização, nalguns lugares assaz reiteradas,
e do desenho intermitente de vários projetos inovadores, o painel ferroviário
do país no dealbar do século XXI presenta duas realidades contratantes: linhas
praticamente novas, com sistemas de sinalização e telecomunicações ao nível dos
melhores do mundo; e linhas já inexistentes ou obsoletas, porque paradas no
tempo, com padrões tecnológicos antiquados.
Por opção do poder central, secundado por vários autarcas, que bem fizeram
a sua parte, a ferrovia tem ficado para trás, ofuscada pela febre da construção
das autoestradas e outras vias rápidas, bem como diversas vias de penetração de
índole municipal e intermunicipal.
Seja como for, se o Estado Novo hostilizou a ferrovia, o regime
democrático, em termos gerais, não lhe ficou atrás nessa postura entre abandono
e alguns laivos de modernização. E, no desfazer da via férrea, ao invés de
promover a sua modernização, contribuiu, também por este meio, para a
desertificação do interior.
Depois de enchermos a pança com a rodovia, em que os operadores a cada
passo, alegando falta de viabilidade, deixam de honrar os compromissos sociais,
e que ajuda a esgotar os combustíveis naturais e a poluir o ambiente, dizem que
nos viraremos para a ferrovia. Iremos a tempo de acompanhar a Europa e o resto
do mundo? Seremos capazes de alinhar com a rede comunicação ferroviária
europeia renunciando à bitola ibérica? Haverá vontade política e mobilização de
meios financeiros e logísticos?
2021.04.19 – Louro de Carvalho
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