segunda-feira, 19 de abril de 2021

Pelo comboio depois de boa parte da ferrovia ter sido desmantelada

 

Referem o Dinheiro Vivo, de 17 de abril, e o DN, de 18, que um grupo de voluntários denominado ​​​​​​​The Brave Ones vem reparando, “de forma voluntária e apenas com os próprios meios”, o troço de 9 quilómetros que liga Pocinho e Coa, com vista à promoção da reabertura da linha férrea naquela porção da Linha do Douro.

A ligação do Pocinho a Barca de Alva foi abolida na década de 80 do século XX, juntamente com toda a Linha do Sabor (Pocinho – Duas Igrejas), que foi, durante largos anos, o modo de transporte do ferro extraído nas minas de Moncorvo. Todavia, a ligação a Barca de Alva estava disponível para eventuais viagens turísticas requeridas à CP por grupos interessados, o que deixou de ser viável pelo progressivo abandono a que a companhia votou a linha, tendo chegado a querer suprimir as carreiras regulares de comboio entre a Régua e o Pocinho. Assim, o troço Pocinho-Barca de Alva esteve sem quaisquer cuidados de manutenção desde 2004, apesar de ainda pertencer ao Estado, através da Infraestruturas de Portugal (IP). Efetivamente, desde outubro de 1988, os comboios não passam do Pocinho para junto da fronteira com Espanha.

Sucede, porém, que – dizem os mencionados periódicos – várias seleções europeias de remo têm escolhido o Pocinho para se prepararem para os Jogos Olímpicos de Tóquio, pelo que foi ali instalado o centro de alto rendimento, aproveitando a plenitude do rio Douro no local.

Por isso, o pequeno grupo em referência, o dos que se confessam apaixonados pelo comboio, começou, há três anos, a fazer o que parecia impossível: recuperar o percurso de 9 quilómetros entre o Pocinho e o Coa sem receber nada em troca. O The Brave Ones, fundado em 2007, é constituído pelos aguerridos heróis que persistem em querer os comboios de volta aos carris. São 4 os elementos mais ativos, não sendo nenhum daquela região. José Costa é do Porto, Vítor Gomes mora em São João da Madeira, João Moreira reside em Cete e Carlos Jesus tem base domiciliária em Freamunde.

A este respeito, disse ao Dinheiro Vivo José Costa, um dos fundadores do grupo:

Há o cuidado de, enquanto sociedade civil, preservarmos um bem que é de todos. Já nos propusemos oferecer os nossos veículos para qualquer manutenção pesada que queiram fazer. Com o trabalho que estamos a fazer, um veículo de manutenção da IP ficará habilitado a passar por aqui.”.

Estes entusiastas, desde 2018 prescindem do seu tempo pessoal para recuperar a linha. Realinhar carris, colocar travessas de madeira, cortar árvores foram alguns dos trabalhos realizados. E houve tempo para retirar pedras gigantes apenas com a ajuda dum macaco hidráulico, sem recorrer a gruas ou outros meios mais pesados.

Os voluntários, que circulam na linha graças a um veículo ferroviário – um V7 – construído por José Costa, recorrem a meios próprios para as reparações, que apenas são realizadas nos tempos livres. Só usam meios próprios para reparar a linha: escadote, luvas, caixa de ferramentas, barras de madeira nas laterais, berbequim, pá, parafusos e anilhas da linha soltos ou aproveitados de outros pontos do troço. Bom exemplo de economia circular, segundo a linguagem técnica.

Porém, este ano, foi agora a primeira vez que os Brave Ones foram ao Pocinho, pois as sucessivas declarações do estado de emergência e, sobretudo, o segundo confinamento os obrigaram à interrupção do trabalho do cuidado da linha desde o final do ano passado.

Além de retirar a vegetação em excesso, foi preciso unir, através duma travessa de ferro, os carris separados. E João e Carlos, enquanto furam e martelam para o trabalho ficar direito, explicam:

Não havendo uma junção de carril, a linha tem tendência a sair do sítio e depois há o risco de descarrilamento”.

Entretanto, Vítor Gomes percorre a linha a pé marcando com um spray, sobre os carris, as velocidades máximas permitidas naquele troço. E, nas próximas semanas, os Brave Ones vão colocar várias placas junto à via, para a segurança dos utilizadores.

Aquando da visita dos jornalistas, houve almoço volante junto à Casa da Linha Férrea, antiga casa de cantoneiros convertida em alojamento local ao ponto quilométrico 173,822.

É com o V7 que os quatro bravos do Douro se movem pelo troço sem terem de andar a pé. Este veículo, construído por José Costa, pesa 425 kg e funciona com o motor de uma moto4 de 250 cm3, embora sem marcha atrás.

O torço em referência foi concessionado pela IP ao abrigo dum protocolo, mas a empresa pública fez questão de lá colocar quatro pilaretes para recordar que aquilo é património do Estado, não fosse acontecer que os beneméritos se viessem a esquecer disso e viessem a garantir a posse por usucapião através de escritura de justificação notarial. Para quem nada faz, toda a desconfiança é pouca e mais vale prevenir que remediar.

Uns metros adiante, ainda se podem ver os postes – primeiro, de telégrafo; depois, de telefone – que foram usados para a comunicação entre estações.

Estanho a chegar ao seu termo o trabalho destes 4 voluntários, depois de quatro anos de tempo livre gasto para fazer o trabalho que deveria estar a cargo do Estado, vai ser criado um grupo de trabalho para definir qual o melhor modelo de reabertura do troço da Linha do Douro entre as estações do Pocinho e Barca de Alva, reabertura que implica um investimento de 43 milhões de euros, segundo um estudo de 2017 da IP.

A equipa será liderada pela CCDR (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) contará com o apoio do Ministério da Coesão Territorial e da IP. A este propósito, a Ministra Ana Abrunhosa considerou:

A ideia é definirmos que modelo queremos para retomar esse troço. O grupo de trabalho vai fazer a análise custo-benefício e vai tentar perceber, com os atores da região, o melhor modelo para essa retoma.”.

As conclusões serão conhecidas até ao final deste ano de 2021. O modelo-base deverá passar pela reabertura da linha para o transporte de turistas, mas sem excluir o serviço de mercadorias.

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Tudo isto me faz lembrar o que, há anos, me dizia um médico num hospital público em que trabalhavam alguns médicos espanhóis e bastantes enfermeiros espanhóis: “Se Afonso Henriques cá voltasse agora pegaria outra vez na espada e espadeiraria tudo a eito por andarmos a gozar com ele ou ficaria descoroçoado por ter andado a perder o seu tempo”.

Penso que algo semelhante diriam os próceres do fontismo e seus sequazes, que souberam construir estradas por todo o país, obviamente em curva e contracurva em muitos casos, pois não havia os meios de minação, terraplanagem e enchimento que há hoje; e, ao mesmo tempo, souberam armadilhar o território de vias férreas. Enfim, conseguiram permitir as deslocações regulares de muitos dos cidadãos pelos meios que o progresso, na altura, soube colocar à disposição das pessoas e da sociedade.

Magda Pinheiro, em entrevista a Clara Teixeira no n.º 59 da Visão – História, afirma que, “visto como motor do progresso a partir de meados do século XIX, o caminho de ferro tornou-se ‘obsoleto’ quando Salazar e Duarte Pacheco se deixaram fascinar pela modernidade do automóvel”. Com efeito, para Salazar, Carmona e Pacheco, o automóvel passou a símbolo do desenvolvimento induzindo o Estado Novo a desprezar a ferrovia. Contudo, Salazar, segundo Franco Nogueira, na sua obra em seis volumes sobre o governante, quando via as coisas mal paradas em Lisboa, metia-se no comboio rápido da Beira e refugiava-se na sua residência de Santa Cruz do Vimieiro, Santa Comba Dão, até que da capital surgisse a fidedigna informação de que o ambiente ficara serenado.  

Não obstante, foi em 1953 que rede ferroviária atingiu o seu pico, perfazendo então 4386 Km de linha, em contraste com os atuais 2546 Km. Entretanto, após sucessivos aumentos, até 1974, perderam-se 43Km, ficando a rede com 4343 Km; e de 1974 a 1986 (sendo a década de 70 neutra), a redução foi de 33 Km, tendo atingido, em 2020, a redução de 1764. E foi em 1990 que o país se desfez, de uma assentada, da exploração de 676 Km de linhas, sendo o Alentejo e Trás-os-Montes as regiões mais afetadas.

Entretanto, foi também em 1990 que se iniciou a modernização da Linha da Beira Alta e se instalou o Convel, ou Controlo de Velocidade, o computador de bordo que vai comunicando com a sinalização exterior tornando a condução mais segura. Em 1999 é inaugurado o troço Campolide-Fogueteiro, um acrescento de 17 Km à rede, para possibilitar o comboio na Ponte 25 de Abril, destinado ao tráfego suburbano, mas, 5 anos depois, com o prolongamento da linha do Fogueteiro ao Pinhal Novo, ficou viabilizado o serviço de longo curso de Lisboa para o Alentejo e o Algarve sem necessidade da travessia do Tejo por barco.

Apesar de algumas obras de modernização, nalguns lugares assaz reiteradas, e do desenho intermitente de vários projetos inovadores, o painel ferroviário do país no dealbar do século XXI presenta duas realidades contratantes: linhas praticamente novas, com sistemas de sinalização e telecomunicações ao nível dos melhores do mundo; e linhas já inexistentes ou obsoletas, porque paradas no tempo, com padrões tecnológicos antiquados.

Por opção do poder central, secundado por vários autarcas, que bem fizeram a sua parte, a ferrovia tem ficado para trás, ofuscada pela febre da construção das autoestradas e outras vias rápidas, bem como diversas vias de penetração de índole municipal e intermunicipal.

Seja como for, se o Estado Novo hostilizou a ferrovia, o regime democrático, em termos gerais, não lhe ficou atrás nessa postura entre abandono e alguns laivos de modernização. E, no desfazer da via férrea, ao invés de promover a sua modernização, contribuiu, também por este meio, para a desertificação do interior.

Depois de enchermos a pança com a rodovia, em que os operadores a cada passo, alegando falta de viabilidade, deixam de honrar os compromissos sociais, e que ajuda a esgotar os combustíveis naturais e a poluir o ambiente, dizem que nos viraremos para a ferrovia. Iremos a tempo de acompanhar a Europa e o resto do mundo? Seremos capazes de alinhar com a rede comunicação ferroviária europeia renunciando à bitola ibérica? Haverá vontade política e mobilização de meios financeiros e logísticos?

2021.04.19 – Louro de Carvalho

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