É a
grande tarefa dos apóstolos. Eles que foram chamados ao discipulado, receberam
de Jesus ressuscitado o mesmo envio que o Senhor recebera do Pai. E, se a
alegria de verem o Ressuscitado lhes enche o coração, o envio é construído na
paz que Jesus lança sobre eles e impulsionado pelo Espírito Santo que o
enviante lhes comunica.
Estavam
no Cenáculo de portas trancadas com medo dos judeus, mas o Ressuscitado, se tem
força para lhes destrancar as portas, mais força e magia tem para os destrancar
do medo.
Assim,
quando Tomé se lhes junta, bradam o anúncio: “Vimos o Senhor”: “heôrákamen
tòn Kýrion”. (cf Jo 20,19-24).
E Tomé,
uma vez mais, se candidata a ser achincalhado injustamente pelos discípulos da
história futura: só acredita se vir e se tocar.
Já no
capítulo 11 do Evangelho de João, quando Jesus diz aos discípulos que Lázaro
morreu, que se alegrava por eles,
que não estavam lá, para que viessem a acreditar e que iam ter com ele, Tomé (Dídimo ou Gémeo) ripostou: “Vamos também nós, para morrermos com Ele”
(cf Jo 11,14-16). Porém, eles ouviram, viram e acreditaram.
No capítulo 14, quando Jesus lhes diz (vd Jo 14,4-7):
“Quando Eu tiver
partido e vos tiver preparado um lugar, virei de novo e levar-vos-ei comigo, para
que onde Eu estou, estejais vós também. E para onde Eu vou, sabeis o
caminho.”
Tomé objeta:
“Senhor, não sabemos
para onde vais; como podemos saber o caminho?”.
E Jesus esclarece:
“Eu sou o caminho, a
verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. Se me conheceis,
conhecereis também o meu Pai. E desde já o conheceis e o vistes.”.
Quer dizer que Tomé faz as perguntas e lança os
desafios que todos lá nas profundas do seu íntimo estavam a alimentar. Tomé
cria o pretexto para mais ensino da parte do Senhor. Também agora na reunião da
comunidade dominical repartida pelas tardes do dia da Ressurreição e do Oitavo
Dia, Tomé exprime a dúvida e lança o desafio que os outros, inebriados pela
surpresa de verem o Senhor e se sentirem, pelo envio, portadores do Espírito
que dá o perdão dos pecados, não tiveram a capacidade de expor ao Mestre. E é
categórico ao desafiar:
“Se não vir nas suas
mãos o lugar dos pregos, não meter o meu dedo no lugar dos pregos e não meter a
minha mão no seu lado, jamais acreditarei” (Jo 20,25).
Quando, oito dias depois, o Senhor os
surpreende de novo no cenáculo, não deixa que Tomé lance o desafio. Agora o
desafio parte de Jesus, um desafio antropagógico:
“Traz aqui o teu dedo
e vê as minhas mãos; traz a tua mão e mete-a no meu lado. E não te
tornes incrédulo, mas crente.” (Jo 20,27).
Foi a oportunidade de ouro para os discípulos
verificarem que o Ressuscitado é o mesmo que fora crucificado e morrera, e não
era outro. É Aquele que os tinha desafiado a deixar tudo, tomar cada um a sua
cruz e segui-Lo; é Aquele que lhes prometera que ressuscitaria ao terceiro dia.
Por isso, Tomé caiu em si, não precisou de
experimentar pondo o dedo ou a mão e legou-nos uma belíssima filigrana de
adoração/oração/profissão de fé: “Meu
Senhor e meu Deus!” (“hô Kýrios moû kaì hô Theós moû”).
Contudo, Jesus apela ao mecanismo privilegiado da fé: “Porque me viste, acreditaste! Felizes os que não viram e acreditaram!”.
(cf Jo 25-29) Na verdade, a fé é
dom de Deus e a forma usual de ela chegar a nós é pela tradição, pelo ouvido. “A fé vem da escuta” (Rm 10,17: “hê
pístis ex akoês”).
Assim, não é legítimo olhar para Tomé como o
cético, mas como o que procura, adora e crê.
***
É esta a vida, é este o estilo da comunidade nascida do Espírito
Santo, o dom de Deus, e do testemunho dos apóstolos cuja missão é a anunciar,
promover e facilitar a concessão e o recebimento do perdão dos pecados, que é o
núcleo da missão messiânica.
É uma comunidade constituída por elementos muito diversos que
abraçaram a mesma fé, sendo esta fé a adesão orante e atuante ao Senhor
ressuscitado e ao seu projeto de vida e doutrina. Para todos e cada um dos
membros da comunidade eclesial, o Senhor, que é Jesus Cristo, é a referência
fundamental que a todos cimenta num estilo de vida comum.
É a comunidade unida, onde os crentes têm “um só coração e uma só alma”.
Efetivamente, da adesão a Jesus Cristo resulta necessariamente a comunhão e
união de todos os “irmãos”. A comunidade de Jesus não pode ser um espaço onde
cada um puxa para o seu lado, preocupado em defender os seus interesses, mas tem
de ser um espaço onde todos caminham na mesma direção, ajudando-se, partilhando
os mesmos valores e ideais, formando uma verdadeira família de irmãos que vivem
no e do amor.
É a comunidade de partilha os bens. Com efeito, da
comunhão com Cristo resulta a comunhão dos cristãos entre si, o que tem
implicações práticas. Concretamente, postula a renúncia a qualquer tipo de
egoísmo, autossuficiência e fechamento em si próprio e requer a abertura de
coração para a partilha, o dom, o amor – que tem expressão concreta na comunhão
dos bens: “ninguém chamava seu ao que lhe
pertencia, mas tudo entre eles era comum” e “distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade”, de modo que
“não havia entre eles qualquer
necessitado, porque todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas e traziam
o produto das vendas, que depunham aos pés dos apóstolos”. De facto, num
mundo onde a realização e o êxito se medem pelos bens acumulados e que não
entende a partilha e o dom, a comunidade eclesial é convocada para dar o exemplo
de uma lógica diferente e propor uma mundo que se baseie nos valores de Deus. Isto
não é comunismo, mas cristianismo (advertiu
o Papa neste dia).
É a comunidade que dá testemunho: “os apóstolos davam testemunho da ressurreição de Jesus com grande poder”.
E os gestos dos apóstolos infundiam em todos quantos os testemunhavam a
inegável certeza da presença de Deus e dos seus dinamismos de salvação. E esse
testemunho apostólico da Ressurreição contagiava todos os crentes, que se
consideravam santos, filhos da ressurreição, irmãos de Jesus e irmãos entre si.
Os que têm a honra do altar saem desta massa.
A primitiva comunidade cristã é verdadeiramente uma
comunidade de homens e mulheres novos, que dá testemunho da salvação e que
anuncia a vida plena. A fé dos discípulos, a sua união e, sobretudo, a ilógica
e absurda partilha dos bens eram a prova provada de que Jesus Cristo está vivo
e a atuar no mundo, oferecendo aos homens um mundo novo. Os habitantes de
Jerusalém não viam Cristo ressuscitado, mas podiam ver a espantosa
transformação operada no coração dos discípulos, capazes de superar o egoísmo,
o orgulho e a autossuficiência e de viver no amor, na partilha, no dom. Na
verdade, viver de acordo com os valores de Jesus é a melhor forma de anunciar e
de testemunhar que Ele está vivo.
Todavia, não nos iludamos. A comunidade cristã de Jerusalém não
era, de facto, a comunidade ideal. Outros textos dos Atos dos Apóstolos falam
de tensões e problemas – como sucede com qualquer comunidade humana –, mas a
descrição de Lucas aponta para a meta a que toda a comunidade cristã aspira,
confiada na força do Espírito. A partir de Jerusalém, faz-se a descrição
prospética da comunidade ideal, que sirva de modelo à Igreja em todas as
épocas.
***
Também a passagem da 1.ª Carta de João, tomada para 2.ª
leitura do II Domingo da Páscoa (1Jo 5,1-6), nos elucida
sobre o testemunho discipular e apostólico complementando João e Atos.
Antes de mais, os verdadeiros crentes são os que amam a Deus
e a Jesus Cristo, o Filho que nasceu de Deus. Jesus de Nazaré é, ao contrário
do que diziam os hereges, Filho de Deus desde a encarnação e durante toda a sua
existência terrena. A sua paixão e morte fazem parte do plano salvador de Deus:
Jesus veio apresentar aos homens um plano de salvação, “não só pela água, mas com a água e o sangue”. Todavia, amar a Deus
não pode configurar uma atitude platónica ou apolínea, mas implica a
observância ou a guarda dos mandamentos.
Observar os mandamentos não significa escrevê-los num papel e
olhar para eles; e guardá-los não é, como alertava o Padre Marcelino Caldeira
na festa da Senhora da Boa Nova, do Alandroal, escrevê-los num papel e
conservá-los numa gaveta. Implica, antes, a sua prática. Aliás, o referido
sacerdote manifestou o seu repúdio pelas distinção entre cristãos ou católicos
praticantes e não praticantes. Ou se é ou não se é. E dava o exemplo: uma
cozinheira de restaurante, se deixar de ser praticante, será despedida. Não
será despedida, por exemplo, se estiver doente ou envelhecer, porque tais
circunstâncias não lhe retiram o estatuto.
Cumprir
os mandamentos é a obrigação de quem ama. Quem
ama alguém, procura realizar as obras que agradem àquele a quem ama. Assim, não
se pode dizer que se ama a Deus se não se cumprem os mandamentos. E o grande
mandamento de Deus é o amor aos irmãos. Quem não ama os irmãos, não pode
pretender amar a Deus e fazer parte da família de Deus.
Mais: quando amamos a Deus, acreditamos que Jesus é o Filho
de Deus, vivemos de acordo com os mandamentos de Deus, vencemos o mundo e temos
a vida de homens e mulheres novos.
Esta vida nova que Jesus veio oferecer chega-nos pela “água” (o Batismo implica adesão a Cristo e à sua proposta) e pelo “sangue”
(vida de Jesus fez-se dom na cruz por amor). E o Espírito
Santo testemunha, atesta e valida a verdade da proposta trazida por Jesus
Cristo, por mandato do Pai.
Quando respondemos positivamente ao desafio que Deus nos faz,
oferecemos a vida como dom de amor aos irmãos, a exemplo de Cristo, cumprimos
os mandamentos de Deus, vencemos o mundo e tornamo-nos filhos de Deus e membros
da família de Deus. Enfim, tornamo-nos testemunhas da Ressurreição do Senhor
Jesus e somos corressuscitados.
***
Este é o oitavo dia da Páscoa, em que os recém-batizados ou
neófitos depunham a veste branca e partiam revestidos do poder e da força do
Ressuscitado para dar testemunho e cumprir os mandamentos; é o domingo da
misericórdia, pois, na sua imensa bondade, o Senhor revelou a Tomé e aos demais
a profundeza e a viveza das chagas, que se tornaram mananciais de vida e vigor
para os crentes e amparo para os desvalidos ou a força da infinita misericórdia
de Deus.
2021.04.11
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário