segunda-feira, 5 de abril de 2021

Justiça cega não é sábia e muito menos o será se for surda e muda

A cada passo se diz e ouve dizer que a justiça é cega e há quem a considere ainda surda e muda.

Na mitologia grega, a figura feminina que representa a Justiça é a deusa Thémis, a própria a deusa da Justiça, filha de Urano (Céu) e de Gaia (Terra). Dotada de grande sapiência, além de esposa de Zeus, o deus supremo, era sua conselheira e criadora das leis, dos ritos e dos oráculos e a guardiã dos juramentos dos homens. As leis e os oráculos de Thémis eram obrigatoriamente acatados pelos deuses e pelos homens.

Mais tarde, na Grécia, a Justiça era representada pela deusa Díkê (filha de Thémis), que, de olhos abertos, segura a espada e a balança ou por Thémis exibindo só a balança, ou ainda a balança e a cornucópia (símbolo da fertilidade, riqueza e abundância). Não era cega, portanto.

Em Roma, é a figura da deusa romana Iustitia que aparece de olhos vendados, sustentando a balança já com o fiel da balança ao meio.

A representação da Justiça ao longo do tempo é sugestiva da sua evolução. Pensa-se que as deusas da Justiça, Thémis ou Diké, armadas de espada, sem o fiel da balança, representam uma realidade epistemológica e normativa anterior e menos desenvolvida que a deusa Iustitia com fiel da balança. A atividade do executor simbolizada pela espada punitiva perde importância, para os romanos, face à valorização do conhecimento, do intelecto e do rigor, simbolizados pelo fiel da balança, a remeter para o pretor.

Nas primeiras representações, a Justiça surge de rosto descoberto, sem venda, aludindo à necessidade de ter os olhos bem abertos e observar todos os pormenores relevantes para a justa aplicação da Lei. Só tardiamente a deusa se revela de olhos vendados. Não significa que a justiça seja cega, mas que trata a todos com igualdade. Não vê, pois a lei é igual para todos.

Associados à deusa Iustitia, não é raro estarem representadas as Tábuas da Lei, alegóricas à Lei das Doze Tábuas, escrita em doze tábuas de bronze (cerca de 451 a.C.), o primeiro código romano, ou outros elementos em alegoria à Lei e ao Direito: ramos de louro, um código representativo da lei ou uma imagem ostentando a pena, alusiva ao ato de legislar.

São frequentes as referências à figura do Imperador Justiniano e ao seu legado, o Corpus Iuris Civilis (cerca de 530 d.C.), devido à influência do direito romano que perdura até hoje.

As alegorias da Justiça e da Lei são muitas vezes representadas em simultâneo. A espada representa a força, prudência, ordem, regra e o que a consciência e a razão ditam. A balança simboliza a equidade, o equilíbrio, a ponderação, a justeza das decisões na aplicação da lei. A deusa de olhos vendados significará o desejo de nivelar o tratamento de todos por igual, sem distinção, baseado na igualdade dos direitos e com o propósito da imparcialidade e objetividade. A ausência de venda significará a necessidade de ter os olhos bem abertos, para que nenhum pormenor relevante para a aplicação da lei seja descurado.

No dia da Justiça (8 de janeiro), é usual o incenso e a lavanda para ter a justiça sempre a seu favor.

A deusa deveria estar de pé durante a exposição do Direito (ius), enquanto o fiel (lingueta da balança indicadora de equilíbrio) deveria ficar a meio, na vertical, direito (directum). Os romanos pretendiam, assim, atingir a prudentia, ou seja, o equilíbrio entre o abstrato (o ideal) e o concreto (a prática).

A representação grega e a romana diferiam na atitude em relação à espada. Enquanto a Díkê empunhava a espada a representar a imposição da justiça pela força (iudicare), a Iustitia preferia o ius-dicere, atitude em que a balança era empunhada pelas duas mãos, sem a espada; ou com ela em posição de descanso, podendo, quando necessário, ser utilizada.

***

A justiça é uma das prerrogativas da soberania e que deve enformar a democracia. Porém, a democracia – que se exprime primordialmente na soberana vontade popular de que deriva a lei, ao invés do que pensavam as sociedades ancestrais, para quem a lei era prerrogativa divina, pelo que estava nas mãos do filho do céu e dos seus sacerdotes – tem-se deslocado da esfera da representação parlamentar para a da justiça por via da emergência de novos movimentos sociais e sua luta por direitos e liberdades fundamentais com vista à superação das desigualdades estruturais das sociedades. Tais movimentos reivindicam maior justiça social e colocam grupos subjugados como atores centrais desse processo de luta.

Este deslocamento da democracia abriu novas vias de reflexão em torno de valores e normas fundamentais. Assim, o debate da teoria política passou a ser o da justiça e o modo pelo qual as instituições concretizam, do que resulta a aproximação ao tema do direito e aos procedimentos para a resolução de conflitos sociais, culturais, políticos e económicos. Não obstante, torna-se premente a realização da justiça distributiva no plano da estrutura básica da sociedade, conexa com as instituições sociais fundamentais, como a família, a vizinhança, os grupos, os clubes e os partidos políticos. E o objetivo da justiça como equidade é concretizar a ideia da sociedade democrática, e não só a existência de instituições formais e imparciais no plano do Estado.

Este pressuposto da justiça é explicado, no quadro do liberalismo político, pelo posicionamento contra perspetivas culturalistas que veem o problema da política como problema da cultura. Ora, sendo a cultura um conceito sociológico, implica a precedência do grupo sobre o indivíduo, inadmissível para o liberalismo. Nesta ótica, a sociedade democrática só é possível com o apoio público dos cidadãos a princípios de justiça assentes numa conceção de justiça política válida. A cultura democrática é pluralista, pois o seu conteúdo é expresso por uma razão pública em que os cidadãos debatem no espaço público os fundamentos constitucionais e as questões de justiça. O fim normativo do liberalismo é construir uma conceção de justiça que promova os termos da cooperação social e pense uma sociedade em que o indivíduo aceite os princípios de justiça, a sua estrutura básica concorde com tais princípios e os cidadãos tenham o sentido do justo.

Os princípios de justiça e a teoria do pluralismo pressupõem, em nome da tolerância e da cooperação, a neutralidade do Estado em relação às conceções de bem, no sentido de impedir que um grupo, maioritário ou minoritário, utilize o poder coercivo do Estado contra outro grupo ou contra os indivíduos, cabendo ao Estado realizar e absorver os princípios da justiça e a razão pública da sociedade democrática. Não se fala de Estado democrático como fim normativo, mas de sociedade democrática e obviamente de Estado de direito democrático.

A crítica do liberalismo ao culturalismo centra-se na adoção da ideia de que a democracia deve reconhecer que o pluralismo e as conceções abrangentes do bem podem constituir um tipo de opressão contra o indivíduo e a sua autonomia na dimensão do grupo e na dimensão do Estado. As necessidades da estrutura básica da sociedade, onde tais conceções são construídas, devem ser resolvidas na área da justiça, o que exige uma arquitetura constitucional que anteceda procedimentos e direitos fundamentais a tais conceções e seja capaz de adjudicar conflitos à justificação de políticas. A justiça faz-se no respeito pelo princípio da diferença e na construção de políticas redistributivas com base em princípios gerais e substantivos que definem a razão da democracia. A justiça visa a estrutura básica da sociedade no sentido de preservar a liberdade individual e impedir a interferência por parte doutrem. Não há um conceito de bem que dê sentido à justiça, mas princípios derivados duma posição original em que se funda a neutralidade. As conceções do bem exprimem a racionalidade do indivíduo e derivam de conceções morais, filosóficas ou religiosas que enformam um ideal de comunidade alicerçada em valores e regras abrangentes que definem o modo como o indivíduo se deve comportar face a um conteúdo ético.

Para o liberalismo, a conceção de justiça política ignora o ideal de comunidade, por ser entendido como um princípio que organiza a sociedade a partir duma conceção moral, filosófica ou religiosa. Busca uma conceção de razoabilidade que leve à ordenação da sociedade a partir duma conceção cooperativa entre indivíduos com visões do mundo divergentes acerca do bem. Ao abandonar a conceção de comunidade, abandona a eticidade da política em nome dum construtivismo capaz de pensar um conteúdo para uma conceção de justiça política e definir os termos da cooperação. Assim, põe em causa a existência da eticidade pelo questionamento de qualquer premissa sociológica, em que a autonomia não é valor ético, mas valor político que se realiza na vida pública pela afirmação dos princípios de justiça.

Uma teoria política balizada por uma eticidade leva à conceção perfecionista à luz da qual a sociedade é governada por um ideal ético que imprime um conteúdo à razão e à consciência, de que resulta não uma sociedade pluralista, mas uma sociedade em que grupos culturalmente dominantes oprimem grupos minoritários e divergentes. Assim, o liberalismo surge com valor reforçado no contexto das lutas pelos direitos civis nos EUA e a emergência de movimentos que procuram autonomia na esfera política e cuja bandeira é a justiça e a realização duma sociedade igualitária e democrática, o que fez convergir a sua luta com uma teoria política alicerçada na discussão da justiça e dos seus procedimentos.

Porém, a ideia de abandonar a eticidade leva à defesa duma concepção de justiça que se derrota a si própria, pois a justiça postula justificação e julgamento, não sendo possível que o indivíduo justifique valores e normas em contraposição aos seus vínculos, valores, laços, costumes e tradições. O primado da justiça parte da precedência da neutralidade em relação às conceções de bem. Ora, ao abandonar a concepção de bens sociais, o liberalismo institui um preconceito na posição original para a construção de instituições imparciais. Assim, a motivação pelo desinteresse mútuo presume uma sociedade individualista a partir da qual o melhor para cada indivíduo é seguir o seu próprio caminho ignorando as imposições da comunidade.

Esta teoria de justiça visa superar as conceções perfecionistas da moral com vista à produção de uma sociedade tolerante e cooperativa e, enfim, justa. Todavia, essa conceção de sociedade justa requer ação cognitiva e reflexiva do indivíduo que não respeita a neutralidade e desinteresse na dimensão da posição original, o que desdiz o pressuposto de neutralidade ao demandar uma conceção substantiva da comunidade segundo a qual as conceções de bem são construídas.

As conceções deontológicas de justiça falham ao pressupor modelos ideais que não têm sustentação empírica, tal como as ideias de posição original, pois é impensável a existência do indivíduo sem o envolvimento com a comunidade e a sua eticidade, já que a sua faculdade de juízo está alicerçada em valores são comuns e com um significado social mais amplo. A ideia de justiça é complexa a ponto de ter significações diferentes em sociedades plurais. Não é possível uma conceção universal de justiça a partir da qual se gerem princípios capazes de organizar e ordenar a sociedade. Essa ordenação depende da busca das estruturas profundas da sociedade – comunitárias, porque sustentadas em valores comuns que enformam os termos da cooperação e do conflito. Sem eticidade que enforme tais valores e estruturas, não é possível encontrar significado para a ideia de justiça, pois ela está ligada às lealdades fundamentais que o indivíduo constrói com outros indivíduos. Portanto, é impensável uma conceção de justiça neutra, que não considere os valores da comunidade em que será realizada. O liberalismo aduz que a neutralidade dos resultados de políticas justas se exige ante a fragmentação social, pois as sociedades democráticas são plurais e os indivíduos não chegam a acordo em relação às conceções de bem, pelo que o Estado deve proporcionar-lhes uma forma de vida livre que não exija do indivíduo qualquer conceção substantiva do bem.

O problema é que, quanto mais atomizados são os indivíduos, mais forte tende a ser a sua lealdade ao Estado, pois este será o seu mais importante laço social. Por isso é que, para Émile Durkheim, “a única possibilidade de solidariedade e organicidade das sociedades modernas é o Estado, que dá unidade moral à existência da sociedade”.

Ao liberalismo político contrapõe-se a crítica comunitarista, que reconhece a diversidade como marca das sociedades democráticas e a necessidade do resgate duma eticidade para a teoria política normativa. Esta crítica baseia-se em três pontos que suscitam a discussão normativa: a visão liberal do “eu” é vazia; a visão liberal do “eu” viola a perceção do “eu”; e a visão liberal do “eu” ignora a inserção do indivíduo nas práticas comunais. Está subjacente a conceção de comunidade e de cultura como fundamento da política, tendo em conta o contexto dos novos movimentos sociais e as suas lutas pelo reconhecimento.

O vazio da conceção liberal do “eu” reside no facto de o liberalismo não reconhecer que o indivíduo é portador duma identidade que o insere e o situa na comunidade, sendo ela, portanto, fundamental para sustentar os significados e expressões da autonomia. Ora, se a liberdade for puramente negativa, não haverá nenhum significado mais amplo para a ideia de liberdade, já que tal liberdade significa vazio de sentido e presume um indivíduo isolado da comunidade.

A segunda crítica baseia-se na ideia de que os interesses e as perceções do mundo não são julgamentos exclusivamente individuais, nem são elementos inatos ou expressões de emoções sem significado maior para a ideia de felicidade. Essa perspetiva deriva duma abordagem emotivista da moral que não considera o facto de as perceções de mundo estarem relacionadas com os papéis sociais que exercemos e de os desejos e os interesses não antecederem a existência do “eu”, mas formarem a sua própria identidade.

A terceira crítica salienta que o liberalismo ignora a inserção do indivíduo nas práticas comunais. O liberalismo é cego às diferenças e procura impor uma cultura hegemónica sobre as minorias. Porém, uma visão mais ampla da democracia e da vida pública depende dos significados que estão delineados na comunidade política, sem que tal visão esteja ligada a uma conceção transcendental de moral que esvazie a noção de comunidade. As críticas ao liberalismo baseiam-se na insuficiência das conceções deontológicas para pensar o problema da justiça, pois abandonam a perspetiva de comunidade e a existência duma eticidade que especifique o valor da justiça. Ora, sem um fundo ético são impensáveis os significados que a ideia de justiça pode assumir nas democracias, não dando conta dos conflitos típicos das sociedades, que são culturais, não necessariamente económicos. E, porque os conflitos são sociais e a justiça pressupõe uma eticidade, é fundamental construir uma hipótese sociológica que explique os fundamentos das sociedades democráticas e as possibilidades de estabilidade institucional. A partir da perspetiva comunitarista, a teoria política regressa a uma abordagem sociológica humanitarista e não só deontológica e formal.

Assim, o comunitarismo lança os princípios duma sociologia das relações de poder, intentando promover uma reflexão sobre a justiça como teoria social. E, sendo a justiça uma teoria social, o resultado é a reconstrução da sociologia política como fundamento para uma ciência da política em que o seu marco teórico se centre principalmente no tema das identidades e produza uma aplicação da justiça segundo a lei e os dados da sabedoria, prudência, ousadia e humanidade.

***

Se pretendemos uma sociedade harmoniosa, de seres humanos dotados de dignidade e zelosos do bem comum, temos de conseguir leis sábias e que prossigam o bem público e o dos cidadãos, bons executores das leis defensores do património integral da pólis e promotores do progresso e do desenvolvimento. E, ao mesmo tempo, precisamos da administração da justiça em que se use do conhecimento tão amplo e completo possível da lei e seus efeitos, bem como da pessoa humana e das suas circunstâncias.

Para tanto, a justiça não pode ser cega, nem surda nem muda. Tem que ver tudo e todos, quer o mais simples e singelo, quer o mais complexo e intrincado. O juiz tem de ouvir a todos os intervenientes que possam interessar à produção de decisões mais equitativas e mais humanas, sem esquecer que tem diante de si o ser humano, a quem nunca é lícito despir da sua dignidade. Além disso, a justiça tem de fazer ouvir a voz da lei, da equidade, da humanidade e do bem senso. Caso contrário, não é sábia nem segura, nem prudente, nem ousada. Não é justiça…

Aquele cortar a direito da espada não quer dizer frieza nem cegueira, mas alheamento dos interesses instalados, do dinheiro e dos poderosos, procurando a verdade, desmascarando todas as situações de mentira e tratando a todos segundo a igualdade perante a lei, os vetores da prudência e equilíbrio e os princípios de humanidade. A sabedoria (do verbo latino “sapere”, saborear, ter bom gosto) implica o conhecimento, a ponderação, o gosto de ver, ouvir, falar e agir, bem como a dedicação e o pundonor. A sabedoria não tem pressa e não perde tempo. E, porque se integra no quadro da política, não se desculpa com os políticos, nem se julga um mundo superior ou à parte. É uma justiça de serviço à Justiça como valor supremo do Direito.                   

***

Por fim, deixo à consideração a letra da canção Justiça Cega, de Zé Ramalho:

 

Tirem a venda dos olhos da justiça
Pra que ela possa enxergar
Mais claramente
O que se passa bem ali
Na sua frente
Bem no silêncio
Da cobiça, dos palácios
Dos espelhos e espaços
Que não brilham mais
Nunca mais

Use a espada
Pra cortar de vez as falas
As mentiras são as espirais
Do que te entregou
Lembre as escadas
E os porões das ditaduras
Lembre as estórias
De paixões e de loucuras
De canções e aventuras
Que não voltam mais
Nunca mais

E, enfim, estamos sós
No meio de oceanos
De hermanos e transações
De corações
Lembre dos olhos
Das meninas e machões
Dos compromissos
Que viraram os canhões
Das estrelas, dos clarões
Que não brilham mais
Nunca mais


2021.04.05 – Louro de Carvalho 

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