A cada passo se diz e ouve
dizer que a justiça é cega e há quem a considere ainda surda e muda.
Na mitologia grega, a figura feminina que representa a Justiça é a
deusa Thémis, a própria a deusa da Justiça, filha de Urano (Céu) e de Gaia (Terra). Dotada de grande sapiência, além de esposa de Zeus,
o deus supremo, era sua conselheira e criadora das leis, dos ritos e dos
oráculos e a guardiã dos juramentos dos homens. As leis e os oráculos de Thémis
eram obrigatoriamente acatados pelos deuses e pelos homens.
Mais tarde, na Grécia, a Justiça era representada pela deusa Díkê (filha de Thémis), que, de olhos abertos, segura a espada
e a balança ou por Thémis exibindo só a balança, ou ainda a
balança e a cornucópia (símbolo da fertilidade, riqueza e abundância). Não era cega, portanto.
Em Roma, é a figura da deusa romana Iustitia que
aparece de olhos vendados, sustentando a balança já com o fiel da balança ao
meio.
A representação da Justiça ao longo do tempo é sugestiva da sua evolução. Pensa-se
que as deusas da Justiça, Thémis ou Diké, armadas de espada, sem o fiel da balança,
representam uma realidade epistemológica e normativa anterior e menos
desenvolvida que a deusa Iustitia com
fiel da balança. A atividade do executor simbolizada pela espada punitiva perde
importância, para os romanos, face à valorização do conhecimento, do intelecto
e do rigor, simbolizados pelo fiel da balança, a remeter para o pretor.
Nas primeiras representações, a Justiça surge de rosto descoberto, sem
venda, aludindo à necessidade de ter os olhos bem abertos e observar todos os
pormenores relevantes para a justa aplicação da Lei. Só tardiamente a deusa se
revela de olhos vendados. Não significa que a justiça seja cega, mas que trata
a todos com igualdade. Não vê, pois a lei é igual para todos.
Associados à deusa Iustitia, não é raro
estarem representadas as Tábuas da Lei,
alegóricas à Lei das Doze Tábuas, escrita em
doze tábuas de bronze (cerca de 451 a.C.), o primeiro código romano, ou outros elementos
em alegoria à Lei e ao Direito: ramos de louro, um código representativo da lei
ou uma imagem ostentando a pena, alusiva ao ato de legislar.
São frequentes as referências à figura do Imperador Justiniano e ao seu
legado, o Corpus Iuris Civilis (cerca de
530 d.C.), devido à influência do direito
romano que perdura até hoje.
As alegorias da Justiça e da Lei são muitas vezes representadas em
simultâneo. A espada representa a força, prudência, ordem, regra e o que a
consciência e a razão ditam. A balança simboliza a equidade, o equilíbrio, a
ponderação, a justeza das decisões na aplicação da lei. A deusa de olhos
vendados significará o desejo de nivelar o tratamento de todos por igual, sem
distinção, baseado na
igualdade dos direitos e com o
propósito da imparcialidade e objetividade. A ausência de venda significará a
necessidade de ter os olhos bem abertos, para que nenhum pormenor relevante
para a aplicação da lei seja descurado.
No dia da
Justiça (8 de janeiro), é usual o incenso e a lavanda para
ter a justiça sempre a seu favor.
A deusa
deveria estar de pé durante a exposição do Direito (ius), enquanto o fiel (lingueta da balança indicadora de
equilíbrio) deveria
ficar a meio, na vertical, direito (directum). Os romanos pretendiam, assim, atingir a prudentia,
ou seja, o equilíbrio entre o abstrato (o ideal) e o concreto (a
prática).
A
representação grega e a romana diferiam na atitude em relação à espada.
Enquanto a Díkê empunhava a espada a
representar a imposição da justiça pela força (iudicare), a Iustitia
preferia o ius-dicere, atitude em que a balança era empunhada pelas
duas mãos, sem a espada; ou com ela em posição de descanso, podendo, quando
necessário, ser utilizada.
***
A
justiça é uma das prerrogativas da soberania e que deve enformar a democracia.
Porém, a democracia – que se exprime primordialmente na soberana vontade
popular de que deriva a lei, ao invés do que pensavam as sociedades ancestrais,
para quem a lei era prerrogativa divina, pelo que estava nas mãos do filho do
céu e dos seus sacerdotes – tem-se deslocado da esfera da representação
parlamentar para a da justiça por via da emergência de novos movimentos sociais
e sua luta por direitos e liberdades fundamentais com vista à superação das
desigualdades estruturais das sociedades. Tais movimentos reivindicam maior
justiça social e colocam grupos subjugados como atores centrais desse processo
de luta.
Este
deslocamento da democracia abriu novas vias de reflexão em torno de valores e
normas fundamentais. Assim, o debate da teoria política passou a ser o da
justiça e o modo pelo qual as instituições concretizam, do que resulta a
aproximação ao tema do direito e aos procedimentos para a resolução de
conflitos sociais, culturais, políticos e económicos. Não obstante, torna-se
premente a realização da justiça distributiva no plano da estrutura básica da
sociedade, conexa com as instituições sociais fundamentais, como a família, a
vizinhança, os grupos, os clubes e os partidos políticos. E o objetivo da
justiça como equidade é concretizar a ideia da sociedade democrática, e não só
a existência de instituições formais e imparciais no plano do Estado.
Este
pressuposto da justiça é explicado, no quadro do liberalismo político, pelo
posicionamento contra perspetivas culturalistas que veem o problema da política
como problema da cultura. Ora, sendo a cultura um conceito sociológico, implica
a precedência do grupo sobre o indivíduo, inadmissível para o liberalismo.
Nesta ótica, a sociedade democrática só é possível com o apoio público dos
cidadãos a princípios de justiça assentes numa conceção de justiça política
válida. A cultura democrática é pluralista, pois o seu conteúdo é expresso por
uma razão pública em que os cidadãos debatem no espaço público os fundamentos
constitucionais e as questões de justiça. O fim normativo do liberalismo é
construir uma conceção de justiça que promova os termos da cooperação social e
pense uma sociedade em que o indivíduo aceite os princípios de justiça, a sua
estrutura básica concorde com tais princípios e os cidadãos tenham o sentido do
justo.
Os
princípios de justiça e a teoria do pluralismo pressupõem, em nome da
tolerância e da cooperação, a neutralidade do Estado em relação às conceções de
bem, no sentido de impedir que um grupo, maioritário ou minoritário, utilize o
poder coercivo do Estado contra outro grupo ou contra os indivíduos, cabendo ao
Estado realizar e absorver os princípios da justiça e a razão pública da sociedade
democrática. Não se fala de Estado democrático como fim normativo, mas de
sociedade democrática e obviamente de Estado de direito democrático.
A
crítica do liberalismo ao culturalismo centra-se na adoção da ideia de que a
democracia deve reconhecer que o pluralismo e as conceções abrangentes do bem
podem constituir um tipo de opressão contra o indivíduo e a sua autonomia na
dimensão do grupo e na dimensão do Estado. As necessidades da estrutura básica
da sociedade, onde tais conceções são construídas, devem ser resolvidas na área
da justiça, o que exige uma arquitetura constitucional que anteceda
procedimentos e direitos fundamentais a tais conceções e seja capaz de
adjudicar conflitos à justificação de políticas. A justiça faz-se no respeito pelo
princípio da diferença e na construção de políticas redistributivas com base em
princípios gerais e substantivos que definem a razão da democracia. A justiça
visa a estrutura básica da sociedade no sentido de preservar a liberdade
individual e impedir a interferência por parte doutrem. Não há um conceito de
bem que dê sentido à justiça, mas princípios derivados duma posição original em
que se funda a neutralidade. As conceções do bem exprimem a racionalidade do
indivíduo e derivam de conceções morais, filosóficas ou religiosas que enformam
um ideal de comunidade alicerçada em valores e regras abrangentes que definem o
modo como o indivíduo se deve comportar face a um conteúdo ético.
Para o
liberalismo, a conceção de justiça política ignora o ideal de comunidade, por
ser entendido como um princípio que organiza a sociedade a partir duma conceção
moral, filosófica ou religiosa. Busca uma conceção de razoabilidade que leve à
ordenação da sociedade a partir duma conceção cooperativa entre indivíduos com
visões do mundo divergentes acerca do bem. Ao abandonar a conceção de
comunidade, abandona a eticidade da política em nome dum construtivismo capaz
de pensar um conteúdo para uma conceção de justiça política e definir os termos
da cooperação. Assim, põe em causa a existência da eticidade pelo
questionamento de qualquer premissa sociológica, em que a autonomia não é valor
ético, mas valor político que se realiza na vida pública pela afirmação dos
princípios de justiça.
Uma
teoria política balizada por uma eticidade leva à conceção perfecionista à luz
da qual a sociedade é governada por um ideal ético que imprime um conteúdo à
razão e à consciência, de que resulta não uma sociedade pluralista, mas uma
sociedade em que grupos culturalmente dominantes oprimem grupos minoritários e
divergentes. Assim, o liberalismo surge com valor reforçado no contexto das
lutas pelos direitos civis nos EUA e a emergência de movimentos que procuram
autonomia na esfera política e cuja bandeira é a justiça e a realização duma
sociedade igualitária e democrática, o que fez convergir a sua luta com uma
teoria política alicerçada na discussão da justiça e dos seus procedimentos.
Porém, a
ideia de abandonar a eticidade leva à defesa duma concepção de justiça que se
derrota a si própria, pois a justiça postula justificação e julgamento, não
sendo possível que o indivíduo justifique valores e normas em contraposição aos
seus vínculos, valores, laços, costumes e tradições. O primado da justiça parte
da precedência da neutralidade em relação às conceções de bem. Ora, ao
abandonar a concepção de bens sociais, o liberalismo institui um preconceito na
posição original para a construção de instituições imparciais. Assim, a
motivação pelo desinteresse mútuo presume uma sociedade individualista a partir
da qual o melhor para cada indivíduo é seguir o seu próprio caminho ignorando
as imposições da comunidade.
Esta
teoria de justiça visa superar as conceções perfecionistas da moral com vista à
produção de uma sociedade tolerante e cooperativa e, enfim, justa. Todavia,
essa conceção de sociedade justa requer ação cognitiva e reflexiva do indivíduo
que não respeita a neutralidade e desinteresse na dimensão da posição original,
o que desdiz o pressuposto de neutralidade ao demandar uma conceção substantiva
da comunidade segundo a qual as conceções de bem são construídas.
As
conceções deontológicas de justiça falham ao pressupor modelos ideais que não
têm sustentação empírica, tal como as ideias de posição original, pois é
impensável a existência do indivíduo sem o envolvimento com a comunidade e a
sua eticidade, já que a sua faculdade de juízo está alicerçada em valores são
comuns e com um significado social mais amplo. A ideia de justiça é complexa a
ponto de ter significações diferentes em sociedades plurais. Não é possível uma
conceção universal de justiça a partir da qual se gerem princípios capazes de
organizar e ordenar a sociedade. Essa ordenação depende da busca das estruturas
profundas da sociedade – comunitárias, porque sustentadas em valores comuns que
enformam os termos da cooperação e do conflito. Sem eticidade que enforme tais
valores e estruturas, não é possível encontrar significado para a ideia de
justiça, pois ela está ligada às lealdades fundamentais que o indivíduo
constrói com outros indivíduos. Portanto, é impensável uma conceção de justiça
neutra, que não considere os valores da comunidade em que será realizada. O
liberalismo aduz que a neutralidade dos resultados de políticas justas se exige
ante a fragmentação social, pois as sociedades democráticas são plurais e os
indivíduos não chegam a acordo em relação às conceções de bem, pelo que o
Estado deve proporcionar-lhes uma forma de vida livre que não exija do
indivíduo qualquer conceção substantiva do bem.
O
problema é que, quanto mais atomizados são os indivíduos, mais forte tende a
ser a sua lealdade ao Estado, pois este será o seu mais importante laço social.
Por isso é que, para Émile Durkheim, “a única possibilidade de solidariedade e
organicidade das sociedades modernas é o Estado, que dá unidade moral à
existência da sociedade”.
Ao
liberalismo político contrapõe-se a crítica comunitarista, que reconhece a
diversidade como marca das sociedades democráticas e a necessidade do resgate duma
eticidade para a teoria política normativa. Esta crítica baseia-se em três
pontos que suscitam a discussão normativa: a visão liberal do “eu” é vazia; a
visão liberal do “eu” viola a perceção do “eu”; e a visão liberal do “eu”
ignora a inserção do indivíduo nas práticas comunais. Está subjacente a conceção
de comunidade e de cultura como fundamento da política, tendo em conta o
contexto dos novos movimentos sociais e as suas lutas pelo reconhecimento.
O vazio
da conceção liberal do “eu” reside no facto de o liberalismo não reconhecer que
o indivíduo é portador duma identidade que o insere e o situa na comunidade,
sendo ela, portanto, fundamental para sustentar os significados e expressões da
autonomia. Ora, se a liberdade for puramente negativa, não haverá nenhum
significado mais amplo para a ideia de liberdade, já que tal liberdade
significa vazio de sentido e presume um indivíduo isolado da comunidade.
A
segunda crítica baseia-se na ideia de que os interesses e as perceções do mundo
não são julgamentos exclusivamente individuais, nem são elementos inatos ou
expressões de emoções sem significado maior para a ideia de felicidade. Essa
perspetiva deriva duma abordagem emotivista da moral que não considera o facto
de as perceções de mundo estarem relacionadas com os papéis sociais que
exercemos e de os desejos e os interesses não antecederem a existência do “eu”,
mas formarem a sua própria identidade.
A
terceira crítica salienta que o liberalismo ignora a inserção do indivíduo nas
práticas comunais. O liberalismo é cego às diferenças e procura impor uma
cultura hegemónica sobre as minorias. Porém, uma visão mais ampla da democracia
e da vida pública depende dos significados que estão delineados na comunidade
política, sem que tal visão esteja ligada a uma conceção transcendental de
moral que esvazie a noção de comunidade. As críticas ao liberalismo baseiam-se
na insuficiência das conceções deontológicas para pensar o problema da justiça,
pois abandonam a perspetiva de comunidade e a existência duma eticidade que
especifique o valor da justiça. Ora, sem um fundo ético são impensáveis os
significados que a ideia de justiça pode assumir nas democracias, não dando
conta dos conflitos típicos das sociedades, que são culturais, não
necessariamente económicos. E, porque os conflitos são sociais e a justiça
pressupõe uma eticidade, é fundamental construir uma hipótese sociológica que
explique os fundamentos das sociedades democráticas e as possibilidades de
estabilidade institucional. A partir da perspetiva comunitarista, a teoria
política regressa a uma abordagem sociológica humanitarista e não só
deontológica e formal.
Assim, o
comunitarismo lança os princípios duma sociologia das relações de poder,
intentando promover uma reflexão sobre a justiça como teoria social. E, sendo a
justiça uma teoria social, o resultado é a reconstrução da sociologia política
como fundamento para uma ciência da política em que o seu marco teórico se
centre principalmente no tema das identidades e produza uma aplicação da
justiça segundo a lei e os dados da sabedoria, prudência, ousadia e humanidade.
***
Se pretendemos
uma sociedade harmoniosa, de seres humanos dotados de dignidade e zelosos do
bem comum, temos de conseguir leis sábias e que prossigam o bem público e o dos
cidadãos, bons executores das leis defensores do património integral da pólis e
promotores do progresso e do desenvolvimento. E, ao mesmo tempo, precisamos da administração
da justiça em que se use do conhecimento tão amplo e completo possível da lei e
seus efeitos, bem como da pessoa humana e das suas circunstâncias.
Para tanto,
a justiça não pode ser cega, nem surda nem muda. Tem que ver tudo e todos, quer
o mais simples e singelo, quer o mais complexo e intrincado. O juiz tem de
ouvir a todos os intervenientes que possam interessar à produção de decisões
mais equitativas e mais humanas, sem esquecer que tem diante de si o ser humano,
a quem nunca é lícito despir da sua dignidade. Além disso, a justiça tem de fazer
ouvir a voz da lei, da equidade, da humanidade e do bem senso. Caso contrário,
não é sábia nem segura, nem prudente, nem ousada. Não é justiça…
Aquele cortar a direito da espada não quer dizer frieza nem cegueira, mas alheamento dos interesses instalados, do dinheiro e dos poderosos, procurando a verdade, desmascarando todas as situações de mentira e tratando a todos segundo a igualdade perante a lei, os vetores da prudência e equilíbrio e os princípios de humanidade. A sabedoria (do verbo latino “sapere”, saborear, ter bom gosto) implica o conhecimento, a ponderação, o gosto de ver, ouvir, falar e agir, bem como a dedicação e o pundonor. A sabedoria não tem pressa e não perde tempo. E, porque se integra no quadro da política, não se desculpa com os políticos, nem se julga um mundo superior ou à parte. É uma justiça de serviço à Justiça como valor supremo do Direito.
***
Por fim, deixo à consideração a letra da canção Justiça Cega, de
Zé Ramalho:
Tirem a venda dos olhos da justiça |
Use a espada |
E, enfim,
estamos sós |
2021.04.05 –
Louro de Carvalho
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