quarta-feira, 7 de abril de 2021

Morreu Hans Küng, um dos famosos teólogos do Concílio Vaticano II

No dia 6 de abril, faleceu o teólogo suíço Hans Küng aos 93 anos na sua casa em Tübingen, na Alemanha, onde vivia há muito tempo. Nascido a 19 de março de 1928 em Sursee, Lucerna (Suíça), filho dum pequeno comerciante de calçado, licenciou-se em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma.

Como refere o Vatican News, foi ordenado sacerdote em 1954. Passados 3 anos, na tese de doutoramento, defendia a convergência entre católicos e reformados sobre a doutrina da Justificação, pois, como aduzia, afirmam o mesmo por palavras diferentes. Em 1960, tornou-se professor titular da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen e, mais tarde, participou no Concílio Vaticano II como especialista, onde teve a oportunidade de se confrontar com Joseph Ratzinger, o futuro Papa Bento XVI.

Além da sua dedicação ao estudo da história das religiões, nomeadamente das religiões abraâmicas, tornou-se conhecido pelas suas posições no campo teológico e no campo moral, frequentemente críticas de certos postulados da doutrina católica, em particular do dogma da infalibilidade papal, conforme o entendimento que se faz do Concílio Vaticano I. Com efeito, segundo o eminente teólogo, a indefectibilidade, mais do que infalibilidade, é prerrogativa da Igreja toda em cujo topo está o Pontífice.  

Em 1979, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) houve por bem revogar-lhe a faculdade de ensinar como teólogo católico – medida radical e desagradável, quiçá injusta –, mas continuou a trabalhar como professor emérito de teologia ecuménica na Universidade de Tübingen.

Küng criticou muitas vezes São João Paulo II e o Cardeal Ratzinger, bem como Ratzinger feito Bento XVI. Contudo, no início do pontificado do Papa Ratzinger, houve um encontro entre os dois em Castelgandolfo, a 24 de setembro de 2005, tendo a Sala de Imprensa da Santa Sé sublinhado, em comunicado, que a reunião correra num “clima amistoso”. Ambos concordaram que não fazia sentido, no contexto do encontro, discutir questões doutrinárias persistentes entre Hans Küng e o Magistério da Igreja Católica. A conversa centrou-se em dois temas que foram de “particular interesse para o trabalho de Hans Küng: a questão da “Weltethos(ética mundial ou universal) e o diálogo da razão das ciências naturais com a razão da fé cristã”.

O teólogo – segundo o predito comunicado – garantiu que o seu projeto de “Weltethos” não é uma construção intelectual abstrata; antes, destaca os valores morais em torno dos quais as grandes religiões do mundo convergem apesar das diferenças e que podem ser percebidos como critérios válidos pela razão secular, dada a razoabilidade convincente de tais diferenças.

Por sua vez, Bento XVI apreciou “o esforço do Professor Küng em contribuir para um renovado reconhecimento dos valores morais essenciais da humanidade através do diálogo das religiões e no encontro com a razão secular”, frisando que “o compromisso com uma renovada consciência dos valores que sustentam a vida humana” é “um objetivo importante” do seu Pontificado. Ao mesmo tempo, o Papa reafirmou a sua concordância com a tentativa de Küng de “reavivar o diálogo entre a fé e as ciências naturais e afirmar, em relação ao pensamento científico, a razoabilidade e a necessidade da Gottesfrage(questão sobre Deus). Küng, ainda segundo o comunicado, expressou “a sua aprovação dos esforços do Papa em favor do diálogo das religiões e do encontro com os diferentes grupos sociais do mundo moderno”. Não obstante, as posições permaneceram distantes em muitas questões como o celibato sacerdotal, o sacerdócio feminino, a contraceção, a eutanásia. E as pesquisas de Küng na relação entre fé e ciência levaram-no a contestar as afirmações de algumas teorias científicas como querendo apresentar-se como certezas absolutas.

Para o “7 Margens”, é “uma das grandes figuras da teologia contemporânea, estudioso e defensor do movimento ecuménico”. Foi um dos teólogos mais populares do mundo, com obras traduzidas em mais de 20 línguas, algumas das quais chegaram a ser best sellers.

Tendo o Papa São João XXIII surpreendido a Igreja e o mundo com o anúncio da convocação dum concílio, no início de 1959, Küng dedicou-se ao estudo do assunto e publicou, logo no ano seguinte, a obra “Concílio e Retorno à Unidade – Renovar-se para suscitar a unidade”. 

Em 1962, o Papa nomeava-o consultor do Concílio, assessorando a delegação dos bispos  da RFA (República Federal Alemã). Nessa tarefa, que o ocupou até ao fim daquela assembleia magna eclesial, voltou a cruzar-se com Ratzinger, colega da docência na Universidade de Tübingen.

O seu posicionamento crítico surgiu logo numa das primeiras homilias em Roma, onde foi ordenado sacerdote. O texto, que surge num dos volumes autobiográficos, elege um tema que o acompanharia toda a vida: governar, no Reino de Cristo, significa servir, mas isso está a apagar-se em Roma e na Igreja, pois, em vez de serviço, há um desejo de poder. 

Nos anos 60 e 70, publicou algumas obras marcantes, com destaque para “Ser Cristão, “Existe Deus?, “A Igreja ou Infalível – Uma Pergunta”, que irradiaram por todo o mundo, mas que começaram a ser escrutinadas pela CDF. Muitas das posições doutrinais da Igreja foram abertamente contestadas pelo teólogo, desde logo a infalibilidade papal, posição dogmática decidida no século XIX, para Küng um obstáculo intransponível para o diálogo ecuménico.

O problema é que, em Küng, matérias polémicas, como o sacerdócio feminino, o celibato eclesiástico obrigatório, não eram abordadas em discurso panfletário ou fundamentalista, antes eram ancoradas em profunda reflexão histórica, filosófica e teológica. E mais do que isso, como sublinham diversos estudiosos da sua obra, ele radicava a sua indagação e a sua produção numa fé profunda numa Igreja animada pelo Evangelho de Jesus.

As objeções e questionamentos da CDF, já no pontificado de São Paulo VI, culminaram na sanção de cancelamento da autorização eclesiástica para lecionar teologia católica. Foi, pois, o primeiro teólogo punido e silenciado, no pontificado de São João Paulo II, em 1979. Teve, por isso, de deixar a cátedra na Faculdade de Teologia da Universidade de Tübingen, ficando impedido de usar o título de teólogo católico. Ao receber a notificação com o veredicto romano, declarou aos jornalistas que o esperavam na Universidade: “Tenho vergonha da minha Igreja pelo facto de processos secretos inquisitoriais ainda estarem vigentes em pleno século XX”.

Porém, a Universidade de Tübingen encontrou um estatuto que lhe possibilitou continuar a ensinar no âmbito da cátedra de Teologia Ecuménica e Dogmática e a dirigir o Instituto de Investigação Ecuménica, como recorda a agência Efe.

Como sustentou na obra sobre o Cristianismo, na trilogia dedicada às grandes religiões do Livro, é preciso buscar para o futuro do Cristianismo um novo modelo ou paradigma, que designou por pós-confessional ou ecuménico para evitar que as igrejas se transmutem em seitas.

Anos depois, na mesma linha, decidiu criar a Fundação Ética Mundial “Weltethos(Êthos universal), cuja presidência veio a assumir, para estudar e fomentar o diálogo entre religiões, culturas e nações, como via para a paz e a convivência. 

Colegas e amigos de juventude – Hans Küng e Joseph Ratzinger – seguiram caminhos diversos na forma de viver e exprimir a fé cristã no quadro da Igreja. Em 2005, Bento XVI convidou Küng para jantar em Castelgandolfo. Aparentemente, o gesto não teve consequências. E, quando o Papa abriu as portas aos seguidores do bispo Marcel Lefebvre, que recusavam os textos do Vaticano II, ou aos clérigos anglicanos que queriam mudar para o catolicismo, Küng não poupou nas críticas aos rumos que ele estava a dar à Igreja e fechado ao outro quadrante. 

Não espanta que o teólogo tenha visto em Francisco uma esperança de mudanças e, sobretudo, a vontade de querer tirar todas as consequências do Concílio Vaticano II. Durante algum tempo trocaram mensagens e Küng confessou a sua alegria por ver o Papa disposto a dialogar com ele. Mas também daqui não se seguiram os passos expectáveis, embora Francisco edite muitas das referências de Küng, designadamente no respeitante ao anticlericalismo, ao anticarreirismo, à autorreferencialidade da Igreja ou à tentação de fechamento eclesial.  

Hans Küng foi pioneiro em muitas matérias e uma voz profética. Desejou convictamente uma Igreja menos clerical, menos arrogante e mais aberta, dialogante e com mais frescura.

Entendia que não há contradição entre o enraizamento na fé cristã e a abertura ilimitada aos outros, mesmo aos indiferentes. O “triálogo” que propunha a partir das obras sobre o judaísmo, o cristianismo e o islão era possível, pois, “se formos às origens, veremos que o judeo-cristianismo é muito semelhante ao judaísmo e também ao islão”, afirmava, em 2010, em entrevista a António Marujo, a propósito da publicação do livro sobre o islão.

A abertura ecuménica e inter-religiosa, que atravessava a sua teologia, levava-o a dizer:

Se eu tivesse nascido em Meca, provavelmente seria muçulmano. Analisei cuidadosamente as diferentes religiões nestes meus livros para ver quais são os aspetos positivos de cada religião. Tal como dizia o Concílio Vaticano II, posso hoje estar consciente de que as outras religiões são caminhos para a salvação e não para ir para o inferno.”.

Hans Küng, como assegura António Marujo, não propõe a abolição do papado, mas a sua reforma e sugere que as exigências de Francisco de Assis são uma representação de “um vigoroso questionamento do sistema romano centralizado”, válido ainda hoje.

Num percurso por muitos e pertinentes questionamentos, pela liberdade e contra a ignorância ou os dogmatismos, o teólogo interroga:

Como se explica que nem os imperadores pagãos, nem os ‘ditadores cristãos’, nem os papas ávidos de poder, nem os inquisidores sinistros, nem os bispos mundanos, nem os teólogos fanáticos hajam logrado extinguir o espírito do cristianismo”?

E a resposta encontrava-a em Jesus, que via como um judeu que se manifesta contra a violência, o legalismo e o ascetismo, e que não se afirma como condutor do povo como Moisés, como mestre moral à semelhança de Confúcio, como chefe de exército na esteira de Maomé ou como protótipo do iluminado como Buda. Antes vincava:

Nada mais se nos depara a não ser uma pessoa. Em tal pessoa, e só nela, dispomos do centro permanente e sólido do cristianismo; (…) O nome de Jesus, reconhecido ao longo dos séculos como o profeta e o enviado de Deus. (…) Ele é o tema original que nunca se perdeu completamente na tradição, na liturgia, na teologia e na piedade cristãs, mesmo nos piores momentos de decadência.”.

E à questão porque não se extinguiu o espírito, respondia diretamente:

O que é extraordinário é que o espírito do Nazareno conseguiu sempre romper, apesar das falhas das pessoas, das instituições e das constituições, desde que os fiéis já não se contentavam com palavras e se punham a segui-Lo de uma maneira muito prática. A verdade do cristianismo não é apenas verdade para conhecer, mas verdade que faz viver.”.

Enfim, viveu nesse seguimento e nessa verdade. Deus saberá reconhecê-lo. Quereremos nós estudá-lo e colocar, para mais-valia, as suas teses na agenda do debate?

2021.04.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário