sexta-feira, 2 de abril de 2021

Adoramos a Santa Cruz do único Senhor da nossa vida

 

Pelos textos da Escritura e das orações litúrgicas reunimo-nos espiritualmente no Calvário para a celebração da Paixão e a Morte redentora de Jesus. E dizia o Papa Francisco, na sua catequese da Audiência Geral do passado dia 31 de março, que “na intensidade do rito da Ação litúrgica ser-nos-á apresentado o Crucifixo para o adorarmos”.

Requer-se que, ao adorarmos a Cruz, revivamos o caminho do Cordeiro inocente, imolado por nós homens e para nossa salvação, e tenhamos “na mente e no coração o sofrimento dos doentes, dos pobres, dos descartados deste mundo”, ou seja, os “cordeiros imolados, vítimas inocentes de guerras, ditaduras, violências diárias, abortos...”. Na oração, apresentamos ante a imagem de Deus crucificado, os numerosos e demasiados crucificados de hoje, que são a imagem de Jesus Crucificado – neles está Jesus – que “só d’Ele podem receber o alívio e o significado do seu sofrimento”. 

Desde que o Senhor assumiu as chagas da humanidade e da morte, o seu amor irrigou os nossos desertos, iluminou as nossas trevas. Este deserto de trevas está polvilhado de guerras, de crianças que morrem de fome, de crianças sem acesso à educação, de povos inteiros destruídos pelas guerras e pelo terrorismo, de muitas pessoas que, para se sentirem algo melhor, precisam da droga e da indústria da droga que mata. No entanto, serve-nos de conforto e de estímulo a existência de pequenas “ilhas” do povo de Deus, cristão ou de qualquer outra fé, que conservam no coração o desejo de ser melhores.

Em todo o caso, refere o Pontífice, “neste Calvário da morte, é Jesus que sofre nos seus discípulos”, Ele que, no seu ministério, “deu vida a mãos cheias, curando, perdoando, ressuscitando” e que, “agora, na hora do supremo Sacrifício na Cruz, cumpre a obra que lhe foi confiada pelo Pai”. Assim, entra no “abismo do sofrimento” e nas “calamidades deste mundo”, com o fito de “redimir e transformar”, ou seja, “libertar cada um de nós do poder das trevas, da soberba, da resistência a ser amados por Deus” – obra exclusiva do amor de Deus.

O apóstolo Pedro ensina que “pelas suas chagas fomos curados” e “pela sua morte fomos todos regenerados”. Graças a Jesus, abandonado na cruz, mas que atrai a Si quantos O queiram contemplar, “ninguém jamais está sozinho na escuridão da morte”. “Ele está sempre ao nosso lado: só é preciso abrir o coração e deixar-se olhar por Ele” – diz o Papa.

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Nesta Sexta-Feira Santa, celebramos, unidos a toda a Igreja (Una e Santa) na alma e no coração, a Paixão do único Senhor da nossa vida, “Aquele que nos ama” (Ap 1,5).

Seguimos, pari passu, de coração convertido e cheio do louvor de Deus, a narrativa da Paixão de Jesus segundo João (18,1-19,42).

Depois do discurso testamental do Senhor e da sua oração sacerdotal, atravessamos o Cédron e entramos no jardim. É noite, mas a Luz do mundo não se apaga. Judas perdeu-se na noite, mas de noite encontra-se com a multidão e a conduz até ao Mestre. E a multidão vem, com archotes e lanternas e com armas, prender a Luz. Porém, caem encandeados. E é o Cristo, Luz do mundo, que por amor Se ofusca e Se entrega, rejeitando o ato de violência perpetrado por Simão Pedro para alegadamente O defender. Uma vez preso e levado a Anás, sogro de Caifás (Sumo Sacerdote naquele ano), a quem Anás o manda depois, todos os discípulos fugiram, com exceção de Pedro e outro discípulo, que O seguiam. Entretanto, Pedro acolhe-se a outra luz e aquece-se a outro lume. E, ao ser interpelado, nega ter andado com Jesus, ter parte com Ele ou mesmo conhecê-Lo.

Canta o galo pregoeiro do dia (topamo-lo nos nossos campanários como o topamos nos primeiros sarcófagos cristãos), nasce o dia e Pedro reconhece o seu erro, de que se arrepende chorando amargamente.

Dom António Couto valoriza o relato deste episódio petrino como “o relato do anunciador”, que “não pode limitar-se a atirar para o ar a Notícia do Crucificado Ressuscitado, sem nela se envolver e comprometer”, tendo necessariamente de “credibilizar a incrível Notícia que anuncia, contando a sua história de desistente, recuperado e perdoado e transformado pelo Ressuscitado”. Na verdade, como anota o Bispo de Lamego, “a Igreja está fundada sobre Pedro, mas Pedro está fundado sobre o seu pecado perdoado”, o que também sucedeu com Paulo, que de perseguidor passou a apóstolo das gentes e há de suceder connosco.  

Jesus diz ao Sumo Sacerdote que não o interrogue a Ele, mas os que ouviram os seus ensinamentos, pois não falou às escondidas, mas em público, contrastando com Pedro, que, ao ser cá fora interrogado responde negando tudo.

Todavia, Jesus comparece ante de Pilatos e ouve os gritos da multidão a exigir a crucifixão e a preferência pela libertação de Barrabás. Não obstante, elucida Pilatos dizendo que é rei, mas que a sua realeza não é deste mundo. Mais diz: “Eu para isto nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz.(Jo 18,37).

E prossegue o seu caminho de amor até ao fim, até à Cruz. Pilatos, mesmo não encontrando motivo algum para o crucificar, mandou flagelá-Lo e coroá-Lo de espinhos, apresentou-O ao povo e entregou-O para a crucifixão juntamente com dois salteadores.

Na cruz, veio ao de cima o mórbido gosto pela morte que nos habita e nos leva a apoucar e a desafiar os condenados: “Salva-te a ti mesmo!(Lc 23,35.37.39). Isto acontece hoje. Gostamos de ver os irmãos a atolarem-se na lama, habita-nos um ódio sem motivo, sem fundo. Jesus é o Justo, a Bondade gratuita. Ele ama primeiro (1Jo 4,19) e morreu por nós quando éramos ainda pecadores (Rm 5,8). Por isso, contra o nosso desdém, ódio ou violência, Ele acolhe-nos por amor e por amor Se entrega a nós e por nós. No seu Corpo Crucificado, morto por amor, e por amor exposto ante os nossos olhos atónitos (Gl 3,1), morre o nosso desejo de morte, apagado pelo fogo do amor, que declara o nosso pecado inútil, inutilizado, anulado e ultrapassado (cf Cl 2,14).

Sob o olhar do Crucificado, quatro soldados levam os pertences de Jesus, que dividem em 4 partes – uma para cada um e sorteiam a túnica inconsútil. Em contracanto, quatro mulheres – a mãe de Jesus, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena –, que não levam pertences de Jesus, abraçam-se à Cruz de Jesus (“parà tô staurô) (Jo 19,25), encarando a Cruz como uma pessoa (a força do dativo “tô staurô), não como um objeto (seria o acusativo “tòn staurón). Logo, as mulheres abraçam a pessoa de Jesus (como Lhe abraçam os pés na madrugada da ressurreição: cf Mt 28,9) e levam consigo o amor de Jesus. E Jesus confia o discípulo amado à sua Mãe e a Mãe ao discípulo amado. Depois, reconhecendo que estava consumada a sua obra, Jesus, inclinando a cabeça, entregou o espírito (klínas tên kephalên parédôken tò pneûma). Ou seja, entregou ao Pai o seu hálito de vida. Mas o evangelista, com expressãoparédôken tò pneûma, sublinha que a morte de Jesus, tal como Ele prometera, é também o momento da dádiva do Espírito Santo (cf Jo 7,37-39; 16,7) à comunidade aqui representada na Mãe de Jesus e no Discípulo Amado (Jo 19,25-27.34), dom que se renova em todas as comunidades reunidas no primeiro dia da semana (Jo 20,22).

Jesus rezou todo o salmo 22, ou seja, desde “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?” até “E anunciarão a sua justiça ao povo que está para nascer, porque o Senhor atuou”.

As últimas palavras do Salmo 22 deixam a claro que a obra da Cruz é de Deus. Assim, Jesus morre nos braços do Pai e puderam olhar para aquele que trespassaram. E o seu corpo descido da Cruz por José de Arimateia foi envolto carinhosamente em panos de linho literalmente encharcados por quase cem libras (32 quilos e 800 gramas) de uma mistura de mirra e aloés, trazida por Nicodemos (cf Jo 19,39), à imagem do Rei messiânico cantado no Salmo 45,9 (“as tuas vestes exalam mirra, aloés e cássia”) e sepultado no jardim, num sepulcro novo, no qual ainda ninguém tinha sido deposto (Jo 19,41). E aguarda-se a madrugada da Ressurreição.

Aponta o Bispo de Lamego que os primeiros cristãos fizeram deste Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto. O Imperador Adriano (117-138) soterrou-o e paganizou-o com a intenção de afastar os cristãos, estabelecendo ali cultos pagãos: no lugar do Santo Sepulcro, pôs uma estátua de Júpiter; e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore. Porém, quando Santa Helena, mãe do imperador Constantino, a 13 de Setembro de 326, por indicação dum habitante de Jerusalém, descobriu a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs. E vieram novamente à luz os primevos e venerados lugares cristãos, então englobados num magnífico edifício constantiniano, consagrado a 13 de Setembro do ano 335, que era formado pela basílica da Anástasis, que guardava no centro o Santo Sepulcro, pelo Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e pelo Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia seguinte à dedicação da Basílica, procedeu-se à adoração da Cruz de Cristo (hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz). Egéria, da Galiza, peregrina que visitou demoradamente os Lugares Santos em finais do século IV, diz que a Santa Cruz era exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: a 14 de Setembro e em Sexta-Feira Santa. E descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: desde as 8 horas da manhã até ao meio-dia, todos passam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte e, depois, com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz” (Itinerarium, 36,5; 37,3).

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Vejamos agora o que se passa depois de Cristo morrer, segundo São João Crisóstomo.

Estando já morto Jesus e ainda cravado na cruz, aproximou-se um soldado, trespassou-Lhe o lado com a lança e saiu água e sangue: água símbolo do Batismo, sangue símbolo da Eucaristia. O soldado abriu uma brecha na parede do templo santo e eu achei um grande tesouro e alegro-me por ter encontrado riquezas admiráveis. Os judeus mataram um cordeiro e eu recebi o fruto do sacrifício. Do seu lado saiu sangue e água.

Esta água e este sangue simbolizam o Batismo e a Eucaristia. Foi destes sacramentos que nasceu a Igreja, pelo banho de regeneração e pela renovação do Espírito Santo, isto é, pelo sacramento do Batismo e pela Eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Foi, então, do lado de Cristo que se formou a Igreja, como foi do lado de Adão que Deus formou Eva. Por isso, a Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão “carne da minha carne, osso dos meus ossos”, que Paulo refere ao lado de Cristo. Pois, assim como Deus, do lado de Adão formou a mulher, assim Cristo, do seu lado, nos deu a água e o sangue para formar a Igreja. E, como Deus abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, assim Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono da sua morte. Vede como Cristo Se uniu à sua Esposa e com que alimento nos sacia. O mesmo alimento nos faz nascer e nos alimenta. Assim como a mulher, impulsionada pelo amor natural, alimenta com o próprio leite e o próprio sangue o filho que deu à luz, assim Cristo alimenta com o seu Sangue aqueles a quem deu o novo nascimento.

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Este dia é dia da Cruz em que Jesus Se imola e é glorificado Pelo Pai que O faz Senhor. Mas é também o dia da Igreja que nasce do lado aberto de Cristo. Por isso, a Igreja abraça a Cruz e adora o Redentor, o único Senhor da nossa vida. É dia da fé, da adoração e da unidade. É dia de vida gerada na colina do Gólgota, fruto da árvore cruz, ora árvore da vida!

2021.04.02 – Louro de Carvalho  

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