Não há
nada como uma boa piada no quadro de uma justiça que não funciona ou se distrai
com minudências que pouco interesse têm em termos de conteúdo, perdendo-se em aspetos
de forma.
É usual,
a propósito de juízes que pretendem corrigir linguagens das pessoas com que se
confrontam em tribunal, contar-se o episódio ocorrido num tribunal de comarca
de ingresso (hoje já não há disso). No momento da identificação dos réus (hoje
arguidos), um dos
rapazes hesitou em responder à pergunta sobre a sua profissão. Para desencalhar
a situação, um outro esclareceu: “Saiba o Sr. Dr. Juiz que nós semos todos um bando de gatunos”. E,
como o juiz corrigiu com o “não é semos,
é somos”, o rapazote questionou: “Ah! O
Sr. Dr. Juiz também é?”.
A 9 de
abril, a opinião pública ficou altamente comovida pela não pronúncia para
julgamento de 23 arguidos da Operação
Marquês e pelo facto de os arguidos que foram pronunciados para julgamento
o terem sido por crimes que não de corrupção.
Toda
esta inédita, mas esperada, comoção resulta de várias componentes
psicossociais: um dos arguidos e supostamente o principal foi primeiro-ministro
do Governo de Portugal durante 6 anos, tendo durante quase 4 anos um suporte
partidário de maioria absoluta PS e um alargado apoio da direita política e
económica; um outro arguido foi um detentor dum enorme poderio económico e tido
como influente do devir político em governos do bloco central de interesses; o
juiz de instrução criminal (JIC) Ivo Rosa é considerado como um excessivo garante
dos direitos dos arguidos e um intérprete restritivo da lei; o megaprocesso foi
ao longo do tempo servido em doses consideráveis à opinião pública através dos
meios de comunicação, quer por via da violação do segredo de justiça, quer
pelas frequentes declarações públicas de um dos arguidos e dos encarregados da
sua defesa; e o JIC ocupou, diante das partes (procuradores do
MP e advogados), dos
jornalistas e dos arguidos que optaram por estar presentes, 190 minutos na
leitura da súmula do despacho que configura a decisão instrutória – tudo
transmitido em direto.
A
opinião pública, por virtude do clamor gerado e imediatamente passado para a
comunicação social, nem pensou que se tratava de mera pronúncia para julgamento
ou de remessa para arquivamento, e não duma sentença de condenação ou de
absolvição, como não reparou que, pelo menos, as peças que foram remetidas para
arquivamento são passíveis de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que poderá confirmar toda a
decisão instrutória ou revertê-la no todo ou em parte. Aliás, as sentenças também
são passíveis de recurso para os tribunais superiores, pelo que não podem alguns
observadores autoanestesiarem-se com a ideia que a decisão de Rosa é
provisória, até porque dois arguidos já têm juízes distribuídos para
julgamento, restando a dúvida se o TRL virá a conhecer de recurso da parte dos arguidos
pronunciados que o interpuserem.
Por
outro lado, os debates, as crónicas e os artigos de opinião centraram-se nos
aspetos políticos da questão, consideraram a podridão do sistema e a derrota da
justiça, deram azo a uma tentativa simbólica de linchamento profissional do JIC
e criaram o desespero social sobre futuros fracassos das tentativas de
condenação de arguidos acusados de crimes de corrupção.
E, como
uma das expressões mais ouvidas foi “está prescrito”, alguns quiseram canonizar
o São Prescrito, o que me fez lembrar o “Santo Súbito”, surgido aquando o
funeral do Papa São João Paulo II, em que muitos (sobretudo
polacos e italianos)
clamavam: “Santo, subito! Santo, subito!”
nas nonas aprilinas de 2005.
Provavelmente,
o São Prescrito será aquele que tem vindo a empreender a cruzada a sua inocência
e a continua agora com novo ardor e vitimizado jurando que tudo foi mentira.
Assim, na entrevista na TVI, no dia 14, o ex-primeiro-ministro, que era
socialista, contestou os termos usados pelo jornalista, que disse que o juiz de
instrução o “declarou corrupto” – apesar de o crime de corrupção em causa estar
prescrito. Sócrates corrigiu-o, pois um juiz de instrução não determina isso. E
defendeu-se sobretudo da forma como lhe foi apresentado o novo crime de
corrupção (prescrito) que ficou plasmado na decisão instrutória: “Esse crime não consta da acusação”, pelo que “é falso e injusto”.
E, mais do que isso, “esse crime já não
existe no nosso código penal” (desde 2015), tendo sido substituído pelo de “recebimento
de vantagem indevida”, tendo deixado de existir “o crime de corrupção sem ato”
concreto. Aliás, como referiu, “esse crime não só não existe como está
prescrito” e nunca lhe foi apresentado em sete anos”.
E, tendo o jornalista aproveitado para o questionar se reprovava o juiz
Rosa, Sócrates respondeu que não fez “reprovações”, mas “críticas” sobre Carlos
Alexandre e, sobre Rosa, referiu que foi um “juiz escolhido segundo as regras
da lei” o que “não aconteceu” com Carlos Alexandre.
Sócrates levou para a entrevista o despacho do Secretário de Estado do
Tesouro, de 4 dias antes Assembleia Geral da PT, a dar instruções de abstenção
ao representante do Estado – e não para usar a golden share para
vetar a Opa da Sonae, caso esta passasse – “um documento escondido pela
acusação”. E lembrou que o representante do Estado, Rui Medeiros, declarou na
instrução, que a única orientação que recebeu foi para se abster.
Entretanto, as críticas ao JIC continuaram no sentido de que “é ilegítimo
que um juiz, com base num crime que está prescrito, passe muito tempo a
caraterizar um crime”, pois “ninguém pode invocar um crime que prescreveu”.
Outro arguido que, neste processo, pode passar por São Prescrito será o
antigo DDT, mas não pelas declarações que profere, antes pela discrição e até
silêncio a que habitualmente se remete.
São Prescrito será cada um dos demais arguidos que viram prescritos os
crimes de que estavam acusados pelo Ministério Público (MP).
São Prescrito será o MP cuja peça acusatória foi apodada pelo JIC de
fantasiosa, incoerente e não sustentada.
Será São Prescrito o JIC em quem todos batem porque, limitando-se a fazer a
sua interpretação da Constituição e das leis, deixou cair os crimes prescritos
e sublinhou os aspetos em que a acusação, a seu ver, não estava sustentada,
como é frequente em megaprocessos ou em processos de alta complexidade. Vêm
agora com a informação que uma das juízas do Tribunal Constitucional (TC) votou vencida o
acórdão n.º 90/2019, de 6 de fevereiro (que julgou
inconstitucionais as normas dos artigos 119.º/1 e 373.º/1 do Código Penal), quando todos sabemos que as
deliberações colegiais são tomadas à pluralidade dos votos e valem desde que
obtenham a maioria exigida legalmente. E há juristas que dizem que o juiz de
instrução se escudou num acórdão do TC, que não é uma lei, esquecendo que se
trata de uma peça jurisprudencial que serve de orientação que os diferentes
tribunais devem seguir. Outros dizem que o fez por opção, não sendo obrigado a
seguir tal acórdão que foi produzido a propósito dum caso concreto em que o
recorrido era o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Porem, o acórdão está sustentado num
parecer académico de difícil contestação e foi produzido a propósito de um
processo similar do que ora está em causa, a requerimento de um dos advogados
de defesa neste megaprocesso. A juíza que votou contra escudou-se no questionável
princípio de que “pertence aos tribunais comuns a interpretação do direito
ordinário”, quando incumbe ao TC a fiscalização abstrata constitucionalidade das
leis e a fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade das normas.
São Prescrito será em parte o TC cujo acórdão albergou a decisão do terramoto
da justiça que abalou o país a 9 de abril, provavelmente mais do que a trágica batalha
de La Lys na Flandres em abril de 1918, em que o nosso CEP sofreu duro revés.
São Prescrito será cada um dos crimes de corrupção passiva que prescreveram
por expiração do prazo nos termos do predito acórdão do TC, se o TRL vier a ter
o mesmo entendimento.
Mas não posso deixar de sublinhar como é possível que a um arguido destes,
num processo tão obeso, não pôde ter sido comunicada a imputação de um crime corrupção
sem demonstração do ato concreto mercadejado ou do novel crime recebimento
indevido de vantagem – o que se aplicasse ao tempo. Nem vejo como, se não
existir tal crime descrito na peça acusatória, pode o JIC despachar a pronúncia
para julgamento. Pode o JIC ir além do que pede o MP? Será que é valido na
nossa justiça o adágio formulado pelo povo a propósito do latim dos padres, “Eles lá o leem, lá o entendem”?
No meio de tudo isto, é imperdoável que uns se façam de vítimas e de
consciência limpa, que outros estejam caladinhos que nem ratos, que se descreia
da justiça, que se insista nos megaprocessos, que haja guerra surda entre MP e
juízes, que se desacredite o sistema político, que se dê um pedacinho de razão
aos inimigos da de democracia e, sobretudo, que não se desenhe a sério uma
reforma profunda da justiça.
Porém, do São Prescrito não serei devoto, que ele pode rápida e
dramaticamente transmutar-se em São Proscrito.
2021.04.16 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário