sexta-feira, 16 de abril de 2021

Sobre o “São Prescrito” ou as figuras que o encarnam

 

Não há nada como uma boa piada no quadro de uma justiça que não funciona ou se distrai com minudências que pouco interesse têm em termos de conteúdo, perdendo-se em aspetos de forma.

É usual, a propósito de juízes que pretendem corrigir linguagens das pessoas com que se confrontam em tribunal, contar-se o episódio ocorrido num tribunal de comarca de ingresso (hoje já não há disso). No momento da identificação dos réus (hoje arguidos), um dos rapazes hesitou em responder à pergunta sobre a sua profissão. Para desencalhar a situação, um outro esclareceu: “Saiba o Sr. Dr. Juiz que nós semos todos um bando de gatunos”. E, como o juiz corrigiu com o “não é semos, é somos”, o rapazote questionou: “Ah! O Sr. Dr. Juiz também é?”.

A 9 de abril, a opinião pública ficou altamente comovida pela não pronúncia para julgamento de 23 arguidos da Operação Marquês e pelo facto de os arguidos que foram pronunciados para julgamento o terem sido por crimes que não de corrupção.

Toda esta inédita, mas esperada, comoção resulta de várias componentes psicossociais: um dos arguidos e supostamente o principal foi primeiro-ministro do Governo de Portugal durante 6 anos, tendo durante quase 4 anos um suporte partidário de maioria absoluta PS e um alargado apoio da direita política e económica; um outro arguido foi um detentor dum enorme poderio económico e tido como influente do devir político em governos do bloco central de interesses; o juiz de instrução criminal (JIC) Ivo Rosa é considerado como um excessivo garante dos direitos dos arguidos e um intérprete restritivo da lei; o megaprocesso foi ao longo do tempo servido em doses consideráveis à opinião pública através dos meios de comunicação, quer por via da violação do segredo de justiça, quer pelas frequentes declarações públicas de um dos arguidos e dos encarregados da sua defesa; e o JIC ocupou, diante das partes (procuradores do MP e advogados), dos jornalistas e dos arguidos que optaram por estar presentes, 190 minutos na leitura da súmula do despacho que configura a decisão instrutória – tudo transmitido em direto.

A opinião pública, por virtude do clamor gerado e imediatamente passado para a comunicação social, nem pensou que se tratava de mera pronúncia para julgamento ou de remessa para arquivamento, e não duma sentença de condenação ou de absolvição, como não reparou que, pelo menos, as peças que foram remetidas para arquivamento são passíveis de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que poderá confirmar toda a decisão instrutória ou revertê-la no todo ou em parte. Aliás, as sentenças também são passíveis de recurso para os tribunais superiores, pelo que não podem alguns observadores autoanestesiarem-se com a ideia que a decisão de Rosa é provisória, até porque dois arguidos já têm juízes distribuídos para julgamento, restando a dúvida se o TRL virá a conhecer de recurso da parte dos arguidos pronunciados que o interpuserem.   

Por outro lado, os debates, as crónicas e os artigos de opinião centraram-se nos aspetos políticos da questão, consideraram a podridão do sistema e a derrota da justiça, deram azo a uma tentativa simbólica de linchamento profissional do JIC e criaram o desespero social sobre futuros fracassos das tentativas de condenação de arguidos acusados de crimes de corrupção.

E, como uma das expressões mais ouvidas foi “está prescrito”, alguns quiseram canonizar o São Prescrito, o que me fez lembrar o “Santo Súbito”, surgido aquando o funeral do Papa São João Paulo II, em que muitos (sobretudo polacos e italianos) clamavam: “Santo, subito! Santo, subito!” nas nonas aprilinas de 2005.

Provavelmente, o São Prescrito será aquele que tem vindo a empreender a cruzada a sua inocência e a continua agora com novo ardor e vitimizado jurando que tudo foi mentira.

Assim, na entrevista na TVI, no dia 14, o ex-primeiro-ministro, que era socialista, contestou os termos usados pelo jornalista, que disse que o juiz de instrução o “declarou corrupto” – apesar de o crime de corrupção em causa estar prescrito. Sócrates corrigiu-o, pois um juiz de instrução não determina isso. E defendeu-se sobretudo da forma como lhe foi apresentado o novo crime de corrupção (prescrito) que ficou plasmado na decisão instrutória: “Esse crime não consta da acusação”, pelo que “é falso e injusto”. E, mais do que isso, “esse crime já não existe no nosso código penal(desde 2015), tendo sido substituído pelo de “recebimento de vantagem indevida”, tendo deixado de existir “o crime de corrupção sem ato” concreto. Aliás, como referiu, “esse crime não só não existe como está prescrito” e nunca lhe foi apresentado em sete anos”.

E, tendo o jornalista aproveitado para o questionar se reprovava o juiz Rosa, Sócrates respondeu que não fez “reprovações”, mas “críticas” sobre Carlos Alexandre e, sobre Rosa, referiu que foi um “juiz escolhido segundo as regras da lei” o que “não aconteceu” com Carlos Alexandre.

Sócrates levou para a entrevista o despacho do Secretário de Estado do Tesouro, de 4 dias antes Assembleia Geral da PT, a dar instruções de abstenção ao representante do Estado – e não para usar a golden share para vetar a Opa da Sonae, caso esta passasse – “um documento escondido pela acusação”. E lembrou que o representante do Estado, Rui Medeiros, declarou na instrução, que a única orientação que recebeu foi para se abster.

Entretanto, as críticas ao JIC continuaram no sentido de que “é ilegítimo que um juiz, com base num crime que está prescrito, passe muito tempo a caraterizar um crime”, pois “ninguém pode invocar um crime que prescreveu”.

Outro arguido que, neste processo, pode passar por São Prescrito será o antigo DDT, mas não pelas declarações que profere, antes pela discrição e até silêncio a que habitualmente se remete.

São Prescrito será cada um dos demais arguidos que viram prescritos os crimes de que estavam acusados pelo Ministério Público (MP). 

São Prescrito será o MP cuja peça acusatória foi apodada pelo JIC de fantasiosa, incoerente e não sustentada.  

Será São Prescrito o JIC em quem todos batem porque, limitando-se a fazer a sua interpretação da Constituição e das leis, deixou cair os crimes prescritos e sublinhou os aspetos em que a acusação, a seu ver, não estava sustentada, como é frequente em megaprocessos ou em processos de alta complexidade. Vêm agora com a informação que uma das juízas do Tribunal Constitucional (TC) votou vencida o acórdão n.º 90/2019, de 6 de fevereiro (que julgou inconstitucionais as normas dos artigos 119.º/1 e 373.º/1 do Código Penal), quando todos sabemos que as deliberações colegiais são tomadas à pluralidade dos votos e valem desde que obtenham a maioria exigida legalmente. E há juristas que dizem que o juiz de instrução se escudou num acórdão do TC, que não é uma lei, esquecendo que se trata de uma peça jurisprudencial que serve de orientação que os diferentes tribunais devem seguir. Outros dizem que o fez por opção, não sendo obrigado a seguir tal acórdão que foi produzido a propósito dum caso concreto em que o recorrido era o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Porem, o acórdão está sustentado num parecer académico de difícil contestação e foi produzido a propósito de um processo similar do que ora está em causa, a requerimento de um dos advogados de defesa neste megaprocesso. A juíza que votou contra escudou-se no questionável princípio de que “pertence aos tribunais comuns a interpretação do direito ordinário”, quando incumbe ao TC a fiscalização abstrata constitucionalidade das leis e a fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade das normas. 

São Prescrito será em parte o TC cujo acórdão albergou a decisão do terramoto da justiça que abalou o país a 9 de abril, provavelmente mais do que a trágica batalha de La Lys na Flandres em abril de 1918, em que o nosso CEP sofreu duro revés.  

São Prescrito será cada um dos crimes de corrupção passiva que prescreveram por expiração do prazo nos termos do predito acórdão do TC, se o TRL vier a ter o mesmo entendimento.

Mas não posso deixar de sublinhar como é possível que a um arguido destes, num processo tão obeso, não pôde ter sido comunicada a imputação de um crime corrupção sem demonstração do ato concreto mercadejado ou do novel crime recebimento indevido de vantagem – o que se aplicasse ao tempo. Nem vejo como, se não existir tal crime descrito na peça acusatória, pode o JIC despachar a pronúncia para julgamento. Pode o JIC ir além do que pede o MP? Será que é valido na nossa justiça o adágio formulado pelo povo a propósito do latim dos padres, “Eles lá o leem, lá o entendem”?

No meio de tudo isto, é imperdoável que uns se façam de vítimas e de consciência limpa, que outros estejam caladinhos que nem ratos, que se descreia da justiça, que se insista nos megaprocessos, que haja guerra surda entre MP e juízes, que se desacredite o sistema político, que se dê um pedacinho de razão aos inimigos da de democracia e, sobretudo, que não se desenhe a sério uma reforma profunda da justiça.

Porém, do São Prescrito não serei devoto, que ele pode rápida e dramaticamente transmutar-se em São Proscrito.

2021.04.16 – Louro de Carvalho

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