segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

“Curiosidades do Vaticano, edição póstuma de livro de LMR”

A um ano do falecimento de Luís Miguel Rocha (LMR) e a três anos da renúncia de Bento XVI, a Porto Editora vem, a instâncias do irmão Nuno, a proceder à edição póstuma do livro Curiosidades do Vaticano, sobre táticas e artifícios da Santa Sé.
Segundo o JN de hoje, dia 29 de fevereiro, Nuno Rocha garante que irá prosseguir na senda de “levar o mais longe possível o nome a obra” do escritor.
Refira-se que o Vaticano e o Papa protagonizam a maior parte dos livros (sobretudo romances) que LMR editou. O último Papa, Bala Santa, A mentira sagrada ou A filha do Papa tornaram-se verdadeiros bestsellers do ficcionista investigador falecido aos 39 anos de idade e a quem a doença impediu de concluir o romance que tinha entre mãos sobre a resignação de Bento XVI. Crê-se que, apesar de inacabado, a Porto Editora, que o tem em análise, poderá vir a decidir-se pelo seu interesse, dado que o autor ia partilhando muitas das informações na sua página do Facebook atinentes à matéria e por ser vontade do próprio publicar tal material em livro.
De acordo com as palavras de Nuno Rocha, o irmão terá começado a interessar-se pelo Vaticano a partir da publicação do seu primeiro livro, Um pais encantado, que mais tarde se transmutou em A virgem, e também pelo facto de ter sido técnico de imagem da TVI.
Tanto os escritos anteriores como o ora em edição revela um variado complexo de curiosidades históricas e atuais do Vaticano, incluindo quer as histórias de paixões, ódios e intrigas, quer aspetos de óbvio anedotismo episódico, quer ainda decisões papais que ainda hoje influenciam a vida comum, como o calendário gregoriano ou as origens dos anos bissextos. 
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Curiosidades do Vaticano” aborda uma diversificada panóplia de temas como: a nível físico – a colunata da Praça de São Pedro, Basílica de São Pedro às escuras, o Obelisco do Vaticano, terra de ninguém, a linha de caminho-de-ferro mais pequena do mundo, Palácio Apostólico, capelas do no Palácio Apostólico, a sala das relíquias, as salas de Estado no Palácio Apostólico, as escadarias de Estado no Palácio Apostólico, o Arquivo Secreto do Vaticano, a Biblioteca do Vaticano, os Jardins do Vaticano e a planta do Vaticano; a nível político – Papas assassinados, os guardas suíços assassinados, L’ Osservatore Romano, as forças de segurança no Vaticano, a agência de serviços secretos do Vaticano, serviço de proteção civil no Vaticano, guarda suíça, o Estado do Vaticano, o uniforme da guarda suíça e os feriados do Vaticano; a nível eclesiástico, os nomes pontifícios, a nacionalidade dos Papas, a correspondência de Francisco, Scala Santa, fumo branco, João XXIII com a resposta na ponta da língua, o supremo tribunal da Penitenciaria Apostólica, o jogo de poderes na eleição do Papa, as facções que ditarão (ditaram) a eleição do sucessor de Bento XVI, o vencimento do Santo Padre, os títulos do Papa, as cartas escritas ao Santo Padre, Roncalli o sargento eleito Papa, um processo contra o Papa, as declarações de Bento XVI sobre a infância de Jesus, o ritual de passamento de um Papa, o pontificado mais longo, conclave, o mandato de cardeal, os títulos dos vários membros da hierarquia católica, deveres e poderes do Santo Padre, Papa Júlio II uma força da natureza, Leão X o bon vivant, a alcunha do Papa João Paulo II, Sisto V o Papa implacável que transformou Roma, resignações e rejeições na eleição para Papa e o 11 de fevereiro de 1929; e a nível de curiosidade, proibição de entrar no Vaticano, non fare il Portoghese, o calendário gregoriano, a Santa Sé e a pedofilia, as mulheres que influenciaram os Papas, seleção de futebol do Vaticano, os critérios de escolha, interpretação e tradução dos livros sagrados que compõem a Bíblia (religião e teologia), as máquinas de multibanco no Vaticano, as mensagens sub-reptícias nas obras de Miguel Ângelo, animais domésticos no Vaticano, São Valentim, Vaticano é um paraíso, a influência do Vaticano nos dias da semana, o lugar com o maior consumo de vinho do mundo, as pinturas da Basílica de São Pedro, o Carnaval no Vaticano e o Domingo de Ramos no Vaticano. 
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O JN aponta, por antecipação, como curiosidades dos Papas e do Vaticano contidas no livro:
- O Papa trabalha de graça, ou seja, o seu vencimento é zero e está impedido de possuir uma conta bancária.
- Pio IX terá, com 31 anos de pontificado (entre junho de 1846 e fevereiro de 1878), consubstanciado o pontificado mais longo, contra o pontificado de Estêvão, que durou uns magros três dias, sem ter inaugurado formalmente o exercício do ministério petrino.
- Os mais de 800 habitantes do Vaticano têm um estatuto único: não pagam impostos, eletricidade e telefone; e o litro de gasóleo não vai além dos 35 cêntimos.
- A recolha dos resíduos sólidos urbanos é feita pela autarquia romana.
- Por respeito à tradição ou para impressionar turistas, os terminais de multibanco são em latim, não oferecendo alternativas noutras línguas, sendo que a sequência das secções é universal e as notas saem em euros.
- A seleção de futebol, formada por guardas suíços e italianos, fundada por João Paulo II em 1978, conta zero vitórias em jogos oficiais e um empate (este frente a San Marino).
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É óbvio que a ação vaticana e o trabalho da Santa Sé vão muito mais além das curiosidades de LMR ou das ficções plasmadas nas suas obras, por mais interessantes que sejam as primeiras a nível histórico e humano ou por mais legítimas e verosímeis que sejam os factos e as criações das personagens de seus romances.
Se nos ativermos às meras curiosidades, muitas delas já não são inéditas: entre outras, já se sabia, por exemplo, das mensagens secretas deixadas por Miguel Ângelo e outros artistas do Renascimento nas suas obras.
O novo livro das inutilidades, de António Costa Santos (ed. Guerra e Paz, 2011), brinda-nos com algumas curiosidades dos Papas e do Vaticano, a saber:
- Dos 266 Papas registados, pelo menos 33 tiveram morte violenta;
- O Papa João XII foi espancado até à morte em 963, com 18 anos, pelo marido de uma mulher por alegadamente ter mantido com ela um caso.
- Quatro Papas terão morrido na cama em circunstâncias imorais: Leão VII (936-939); João VII (955-964); João XIII (965-972); e Paulo II (1467-1471).
- Há mais de 80 santos com o nome de João. Papas são 25, contando João XXIII, João Paulo I e João Paulo II.
- A reunião para eleger o Papa denomina-se conclave desde 1268 – assembleia fechada com chave. Foram os habitantes de Viterbo que, ano e meio após a morte de Clemente IV (1265-1268), na falta de decisão sobre o novo Papa, fecharam os cardeais deixando-lhes apenas pão e água, pelo que a eleição de Gregório X (1271-1277) se tornou rápida a partir daquele momento.
- O Papa Adriano VI (1522-1523) morreu asfixiado por uma mosca que se lhe encravou na traqueia quando bebia água numa fonte.
- O mestre-de-cerimónias do Papa Paulo III (1534-1549), Biagio da Cesena, considerava o Juízo Final, que Miguel Ângelo pintou em 1541 na Capela Sistina, um afresco mais adequado para banhos públicos ou tabernas do que para uma capela. O artista vingou-se retratando-o entre os condenados pintado com orelhas de burro e uma cobra a morder-lhe os genitais. Biagio bem se queixou ao Papa, que retorquiu: “Meu filho, o meu poder chega ao Céu, mas não ao inferno; se Ângelo te lá colocou, lá ficarás”.
- O Juízo Final, por causa dos nus, quase foi destruído pela Inquisição. Os hipócritas da época decidiram chamar um pintor secundário, Daniel de Volterra, que teve a coragem de profanar uma obra-prima. Volterra colocou roupas nos nus da pintura de Miguel Ângelo e, por isso, foi ridicularizado. Esta triste figura, junto com seus auxiliares, ficou conhecido na história como "Os Tapa Traseiros".
- O Papa Paulo IV (1555-1559) ficou tão perturbado quando viu os nus no teto da Capela Sistina que mandou Miguel Ângelo cobri-los com roupas.
- O Papa Pio IV (1559-1565) comia batatas como remédio contra o cansaço, 24 anos depois de os espanhóis terem descoberto o tubérculo (tartufo blanco) no Peru.
- O Papa Urbano VIII (1623-1644) ameaçou de excomunhão, em 1624, os utilizadores de rapé e todos os que fumassem junto a uma igreja.
- O Papa João XXIII (1958-1963) foi sargento do exército italiano na Primeira Guerra Mundial.
- Nas igrejas do Vaticano, não se celebram casamentos.
- Miguel Ângelo, pintor, escultor, arquiteto e estilista, foi quem desenhou, no início século XVI, o uniforme vermelho, amarelo e azul-escuro da Guarda Suíça.
- Está reservado para habitação do Papa um T5300. O Palácio Apostólico tem 5 mil quartos, 200 salas de espera, e 100 gabinetes de leitura, servidos por 200 casas de banho. As mensagens Urbi et Orbi são proferidas a partir da varanda da fachada principal do Palácio Apostólico, ao passo que as alocuções dominicais são proferidas a partir dos aposentos oficiais reservados ao Papa. Francisco não utiliza como residência pessoal o Palácio Apostólico, a não ser para as mensagens dominicais, mas duas dependências na Domus Sanctae Marthae.
- A atual Basílica de São Pedro, em Roma, esteve em construção durante 106 anos, desde 1506.
- O Vaticano é um dos Estados europeus que só confinam com um outro país. Os outros são: San Marino, Mónaco, Dinamarca e Portugal.
- Durante os primeiros séculos da Igreja, os primeiros bispos de Roma, continuaram a usar seus nomes de batismo, após a eleição. O uso de escolher um novo nome começou em 533 com a eleição de Mercúrio, que entendeu não ser apropriado para um papa ostentar o nome de um deus pagão romano e decretou que ele deveria ser chamado de João II (523-526). Desde o final do século X os papas tem habitualmente escolhido um novo nome durante o seu pontificado, no entanto, até ao século XVII alguns pontífices usaram os nomes de batismo. O último papa a usar seu nome de batismo foi Marcelo II, em 1555.
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Ultrapassando a mera curiosidade valerá a pena estudar o Vaticano pela simbólica e monumentalidade, pela teologia e doutrina, pela diplomacia e política, pela organização e estudo, pela arte e ciência, pela fé e espiritualidade, pelo odor a história e sémen de futuro.
2016.02.29 – Louro de Carvalho


domingo, 28 de fevereiro de 2016

Sobre a relação entre a Santa Sé a Fraternidade São Pio X

A última vez que se ouviu falar desta matéria foi quando o Papa Francisco optou por sancionar, durante o Ano da Misericórdia, a validade e liceidade da receção dos sacramentos da confissão e da unção dos enfermos administrados por sacerdotes lefebvrianos. No entanto, é de sublinhar que se trata de um novo passo para o difícil reconhecimento canónico da FSSPX (Fraternidade Sacerdotal de São Pio X). É óbvio que não faz muito sentido estar colocada permanentemente em cima da mesa a preocupação e o esforço em torno do ecumenismo e do diálogo inter-religioso e abrandar o esforço de aproximação entre a Igreja Católica oficial e uma organização católica quase cismática e sobretudo desalinhada do evento conciliar.
Ora, depois que Bento XVI levantou a excomunhão em 2009 aos bispos, o tema estava na penumbra até ao momento do gesto de abertura do Papa Francisco no contexto do Ano Santo.
Segundo os vaticanistas, tem dado bastante “pano para mangas”, nos últimos anos, a difícil e delicada reaproximação entre a FSSPX e a Igreja de Roma. O papa Bento XVI levantou a excomunhão em 2009, mas a posição dos membros da fraternidade fundada por Dom Marcel Lefebvre continua irregular. Os seus membros não aceitam o Novus Ordo da liturgia (nomeadamente o missal de Paulo VI onde veem heresias), o ecumenismo e a liberdade religiosa.
A este respeito, Mons. Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, criada em 1988 por João Paulo II, com o objetivo principal de iniciar o diálogo com os lefebvrianos, a fim de, algum dia, conseguir a sua plena reintegração, prestou declarações a Zenit – o mundo visto de Roma, a 26 de fevereiro pp, sobre a situação atual da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X.
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O levantamento da excomunhão dos bispos da FSSPX, em 2009, por Bento XVI, significa que “eles não estão mais sujeitos a esta grave punição eclesiástica”. No entanto, apesar desta medida a Fraternidade “ainda está numa posição irregular, porque não recebeu o reconhecimento canónico da Santa Sé”. E, enquanto não tiver “uma posição canónica na Igreja, os seus ministros não exercem de modo legítimo o ministério e a celebração dos sacramentos”. Em conformidade com a fórmula empregada pelo então cardeal Bergoglio em Buenos Aires e confirmada por Francisco à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, “os membros da FSSPX são católicos a caminho da plena comunhão com a Santa Sé”, comunhão que “acontecerá quando houver o reconhecimento canónico da Fraternidade”.
Ao longo destes sete anos, para promover a reaproximação da Fraternidade São Pio X, tem vindo a decorrer, desde o ano do levantamento da excomunhão dos bispos, uma série de reuniões de caráter doutrinal entre os peritos designados pela Congregação para a Doutrina da Fé, que está intimamente ligada à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei desde o motu proprio Unitatem Ecclesiae, de Bento XVI, de 2009, e os especialistas da FSSPX para discussão das principais questões doutrinais subjacentes à controvérsia com a Santa Sé, designadamente: a relação entre Tradição e Magistério, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, a liberdade religiosa e a reforma litúrgica, no contexto da doutrina do Vaticano II.
Tal discussão durou cerca de dois anos e tornou possível a clarificação das posições teológicas e a evidenciação dos pontos de convergência e de divergência.
A seguir, as conversas doutrinais continuaram com algumas iniciativas focadas no aprofundamento e na precisão das questões em discussão. Em simultâneo, mantiveram-se os contactos assíduos entre os superiores da Comissão Ecclesia Dei e o superior e outros membros da FSSPX, que têm favorecido o desenvolvimento dum clima de confiança e de respeito mútuo, que está na base do processo de reaproximação. Sente-se, pois, que “é preciso superar as desconfianças e endurecimentos que são compreensíveis depois de tantos anos de fratura, mas que podem ser gradualmente dissipados se a atitude recíproca mudar e se as divergências não forem consideradas como muros intransponíveis”, mas antes “como pontos de discussão que merecem ser aprofundados e desenvolvidos a fim de se chegar a um esclarecimento proveitoso para toda a Igreja”.
A fase atual, na ótica de Pozzo, está “orientada para se alcançar a desejada reconciliação”, sendo que “o gesto do Papa Francisco de conceder que os fiéis católicos recebam válida e licitamente dos bispos e padres da FSSPX os sacramentos da reconciliação e da unção dos enfermos durante o Ano Santo da Misericórdia” é o sinal inequívoco da vontade papal de “favorecer o caminho para o reconhecimento canónico pleno e estável”.
Persistem, no entanto, ainda obstáculos no caminho para a reconciliação final em dois níveis. A nível propriamente doutrinal, subsistem algumas diferenças sobre tópicos específicos do Concílio Vaticano II e do magistério pós-conciliar, relativos ao ecumenismo, à relação entre o cristianismo e as religiões do mundo, à liberdade religiosa especialmente na relação entre Igreja e Estado, bem como alguns aspetos da reforma litúrgica, sobretudo quando relacionados com o dogma. A nível da atitude mental e psicológica, é necessário ainda passar de “uma posição de confronto polémico e antagónico para uma posição de escuta e de respeito mútuo, de estima e de confiança, como deve ser entre membros do mesmo Corpo de Cristo, que é a Igreja”. Por conseguinte, é preciso um trabalho mútuo em ambos os níveis referidos. E a aproximação empreendida tem dado alguns frutos, especialmente para a mencionada “mudança de atitude de ambas as partes”, parecendo valer a pena “prosseguir” na linha do que se vem a realizar.
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O secretário da Ecclesia Dei aproveita o ensejo para alguns esclarecimentos. Assim, sobre o Concílio, é preciso distinguir entre a “mens” autêntica do Vaticano II, a sua “intentio docendi” que consta nos documentos oficiais, e o que se poderá chamar de “paraconcílio”, ou seja, o conjunto de orientações teológicas e atitudes práticas que acompanhou o curso do próprio concílio e que pretendeu cobrir-se com o seu nome, e que, na opinião pública, graças aos meios de comunicação, se sobrepôs, às vezes, ao verdadeiro pensamento do concílio. Nas discussões com a FSSPX, a oposição não é propriamente ao concílio (Lefebvre participou nele), mas ao dito “espírito do concílio”, que usa algumas expressões ou formulações dos seus documentos para abrir caminho a interpretações e posições que estão longe e que pretendem explorar o verdadeiro pensamento conciliar. No atinente à crítica lefebvriana sobre a liberdade religiosa, “a posição da FSSPX é caraterizada pela defesa da doutrina tradicional contra o laicismo agnóstico do Estado e contra o secularismo e relativismo ideológico” e não já “contra o direito da pessoa de não ser coagida nem impedida pelo Estado no exercício da profissão de fé religiosa”.
Ora estas são questões que podem ser aprofundadas e esclarecidas mesmo depois da plena reconciliação. O essencial é “encontrar a total convergência naquilo que é necessário para se estar em plena comunhão com a Sé Apostólica”: a comunhão “na integridade da profissão de fé católica, no vínculo dos sacramentos e na aceitação do Supremo Magistério da Igreja”. Trata-se de um magistério, que “não está acima da Palavra de Deus escrita e transmitida, mas que a serve” e, como tal, “é o intérprete autêntico também de textos precedentes do magistério, incluindo os do Vaticano II, à luz da perene Tradição, que progride na Igreja com a assistência do Espírito, mas não com novidades contrárias (o que significaria negar o dogma), mas “com uma compreensão melhor do depósito da fé, sempre na mesma doutrina, no mesmo sentido e na mesma sentença”.
Nestes termos, a convergência com a FSSPX é possível e necessária – o que não afeta a possibilidade e a legitimidade de se debaterem e explorarem outras questões específicas, que não dizem respeito a matéria de fé, mas à disciplina, a orientações pastorais e juízos prudenciais, não dogmáticos, acerca dos quais pode haver pontos de vista diferentes. Não ignoram nem esbatem as diferenças em alguns aspetos da vida pastoral da Igreja. Porém, está-se ciente de que no Concílio há documentos doutrinais cuja intenção é repropor verdades de fé já definidas ou verdades de doutrina católica (por exemplo, as constituições dogmáticas Dei Verbum e Lumen Gentium); e há documentos que pretendem sugerir caminhos ou diretrizes para a ação prática, para a vida pastoral como aplicação da doutrina (por exemplo, a declaração Nostra Aetate, o decreto Unitatis Redintegratio, a declaração Dignitatis Humanae). A adesão aos ensinamentos do Magistério varia de acordo com o grau de autoridade e com a categoria de verdade própria dos seus documentos. Não consta que a FSSPX negue doutrinas de fé ou verdades da doutrina católica ensinadas pelo magistério. As preocupações críticas têm a ver com declarações ou afirmações sobre o renovado e reforçado cuidado pastoral nas relações ecuménicas e com as demais religiões e algumas questões na relação entre a Igreja e a sociedade, a Igreja e o Estado.
É de precisar que, mesmo sobre a reforma litúrgica, Marcel Lefebvre, na carta que escreveu ao Papa João Paulo II, a 8 de março de 1980, declarou: “Quanto à missa do Novus Ordo, apesar de todas as reservas que se devem manter, eu nunca afirmei que ela seja inválida ou herética”. Assim, as reservas relativas ao rito da Novus Ordo, portanto, mesmo não devendo ser subestimadas, não se referem à validade da celebração do sacramento nem à reta fé católica.
Confessando que o diálogo com a FSSPX sempre continuou, Pozzo revela que foi decidido que ele continuasse de “forma menos oficial e formal, para dar espaço e tempo ao amadurecimento das relações em atitude de confiança e compreensão mútua, para fomentar um clima de relações mais adequado, onde também se possa inserir o momento da discussão teológica e doutrinal.” Por seu turno, Francisco, desde o início do seu pontificado, encorajou a Ecclesia Dei a prosseguir neste estilo de comunicação com a FSSPX. E o magnânimo gesto do Papa na circunstância do Ano da misericórdia ajudou a serenar ainda mais o estado das relações com a Fraternidade, mostrando que a Santa Sé traz no coração a reaproximação e a reconciliação, que precisarão também de um revestimento canónico.
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Oxalá que o Francisco promova o ganho de mais esta cartada em prol da unidade e da paz interna da Igreja, tão cara a Paulo VI, que rezou, em 13 de maio de 1967, em Fátima, por esta intenção, bem como pela paz universal.

2016.02.28 – Louro de Carvalho

III aniversário do termo do pontificado de Bento XVI

Passa precisamente hoje, dia 28 de fevereiro, o terceiro aniversário do termo do pontificado de Bento XVI, dia em que não deixou de exprimir mensagens – a modos de testamento – pertinentes para o devir espiritual e social do Povo de Deus.
O último discurso – muito breve – prima pela simplicidade e informalidade, sem perder a marca da profundidade e da lucidez. É a saudação aos fiéis da diocese de Albano a partir do Balcão Central do Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, antes de se recolher à sua eclipsação como Papa Emérito. Começa e termina pelo reiterado “obrigado, obrigado a todos vós” e no fim, lá está a despedida normal de ocasião, Boa noite.
Confessa-se feliz por se ver circundado da beleza da criação e da simpatia da multidão, que lhe “faz muito bem”; agradece a amizade e o afeto; e sublinha a diferença entre este seu dia e os anteriores. Ao marcar a diferença, autocorrige-se: “Já não sou Sumo Pontífice da Igreja Católica: até às oito horas da tarde, ainda o sou; depois já não”.
Afirma o seu novo estatuto de simples “peregrino que inicia a última etapa da sua peregrinação nesta terra”. Não obstante, quer ainda, com o seu coração, amor, oração, reflexão e com todas as suas forças interiores, “trabalhar para o bem comum, o bem da Igreja e da humanidade”. E deixa o recado da união: “unidos ao Senhor, vamos para diante a bem da Igreja e do mundo”.
Por fim, “de todo o coração”, proferiu pela última vez a bênção apostólica: Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo.
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Ainda no Vaticano, proferira a saudação de despedida, na Sala Clementina, aos cardeais presentes em Roma, antecedida pelas palavras do cardeal decano Angelo Sodano em nome do Sacro Colégio e que o Pontífice interpretou como o “Cor ad cor loquitur”.
Depois, fez um balanço em que sintetizou o teor do discurso da audiência geral do dia anterior aos fiéis presentes na Praça de São Pedro.
Evidenciando a referência dos discípulos de Emaús (Lc 34,13-35), feita por Sodano, referiu que também para si “foi uma alegria caminhar” com os cardeais “ao longo destes anos, na luz da presença do Senhor ressuscitado” e explicitou:
Nestes oito anos, vivemos com fé momentos muito agradáveis de luz radiosa no caminho da Igreja, juntamente com momentos nos quais algumas nuvens se adensaram no céu. Procurámos servir Cristo e a sua Igreja com amor profundo e total, que é a alma do nosso ministério. Demos esperança, a que vem de Cristo, que só pode iluminar o caminho.”
Por isso, sustenta:
“Juntos, podemos dar graças ao Senhor que nos fez crescer na comunhão, e juntos pedir-lhe para que vos ajude a crescer ainda nesta unidade profunda, de modo que o Colégio dos Cardeais seja como uma orquestra, onde as diversidades – expressão da Igreja universal – concorram sempre para a harmonia superior e concorde”.
Depois, deixa uma constatação esperançosa consignada num “pensamento simples”, que lhe “está muito a peito: um pensamento sobre a Igreja e sobre o seu mistério, que constitui para todos a razão e a paixão da vida. Inspirou-se numa expressão de Romano Guardini, escrita no ano em que os Padres do Concílio Vaticano II aprovavam a Constituição Lumen Gentium, no seu último livro, com uma dedicatória pessoal também para Ratzinger, pelo que as palavras daquele livro lhe são particularmente queridas. Que diz Guardini?
[A Igreja] “não é uma instituição pensada e construída sob um projeto...., mas uma realidade viva... Ela vive ao longo do tempo, no futuro, como todos os seres vivos, transformando-se... E, no entanto, na sua natureza permanece sempre a mesma, e o seu coração é Cristo”.
Em consonância com estas palavras, o ainda Bispo de Roma repisava a experiência do dia anterior: parecia-lhe ter visto na Praça de São Pedro “que a Igreja é um corpo vivo, animado pelo Espírito Santo e vive realmente pela força de Deus”, que “ela está no mundo, mas não é do mundo: é de Deus, de Cristo, do Espírito”.
E, socorrendo-se de outra importante expressão de Guardini, A Igreja desperta nas almas, assegurava a vida, o crescimento e a ação da Igreja, que garante a presença de Cristo:
“A Igreja vive, cresce e desperta nas almas, que – tal como a Virgem Maria – acolheram a Palavra de Deus e a conceberam por obra do Espírito Santo; oferecem a Deus a própria carne e, precisamente na sua pobreza e humildade, tornam-se capazes de gerar Cristo hoje no mundo. Através da Igreja, o Mistério da Encarnação permanece para sempre presente. Cristo continua a caminhar através dos tempos e em todos os lugares.”
Por consequência, importa que “permaneçamos unidos neste Mistério: na oração, especialmente na Eucaristia quotidiana, e assim servimos a Igreja e a humanidade inteira. Esta é a nossa alegria, que ninguém nos pode tirar”.
Finalmente, antes de saudar pessoalmente cada um dos eminentes purpurados, prometeu a presença solidária pela oração, sobretudo nos dias que antecederiam o conclave, sem intervir no seu decurso, para que os cardeais fossem “plenamente dóceis à ação do Espírito Santo na eleição do novo Papa”. Por outro lado, sabendo que entre eles, entre o Colégio Cardinalício, estaria também o futuro Papa, aproveitou o ensejo para desde logo prometer “reverência e obediência incondicionadas”.
Resta sublinhar que a Bênção Apostólica concedida aos cardeais foi emoldurada do afeto e reconhecimento típicos do Pontífice cessante.
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Como se pode facilmente verificar, trata-se de um Papa de profundo discurso doutrinal, mas também de extrema simplicidade e fino trato pessoal. Foi demasiado mal amado, a meu ver. Tarda o balanço justo do seu pontificado, que já se vai fazendo de forma tímida.
Do seu magistério assíduo – e nunca ex cathedra – ressaltam com especial relevo as encíclicas, as exortações apostólicas e os anos temáticos.
As encíclicas são: a Deus caritas est, de 25 de dezembro de 2005, sobre o amor cristão, radicado no amor de Deus, mas com reflexo necessário e intenso nas relações com os irmãos; a Spe salvi, de 30 de novembro de 2007, sobre a esperança cristã, radicada na Ressurreição de Cristo e na sua mensagem, de olhos postos no futuro e em ativo compromisso pela transformação do mundo (pessoas e estruturas); e a Caritas in veritate, de 29 de junho de 2009, sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (esta dirigida também a todos os homens de boa vontade). Também se diz como certo que preparara a Lumen Fidei, que o Papa Francisco terá publicado depois de a ter assumido, introduzindo-lhe alterações. Por isso se diz que ela fora escrita a quatro mãos.
 As exortações apostólicas são todas pós-sinodais: a Sacramentum Caritatis – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (22 de fevereiro de 2007); a Verbum Domini – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (30 de setembro de 2010); a Africae munus – exortação apostólica pós-sinodal sobre a Igreja ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz (19 de novembro de 2011); e a Ecclesia in Medio Oriente – exortação apostólica pós-sinodal sobre a igreja no Médio Oriente (14 de setembro de 2012).
E os anos temáticos foram: o Ano Paulino (de 28 de Junho de 2008 a 29 de Junho de 2009), para celebrar os dois mil anos do nascimento de São Paulo; o Ano Sacerdotal (19 de Junho de 2009 a 11 de junho de 2010), para celebrar o sesquicentenário da morte do Santo Cura d’Ars; e o Ano da Fé (11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013, continuado por Francisco), para celebrar o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II.
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Ainda hoje fica de pé a questão do motivo da renúncia de Bento XVI: Os escândalos, dados a diversos níveis por homens com responsabilidade proeminente na Igreja? A convicção de que era tempo de proceder a uma saída estratégica para que o sucessor tivesse a via livre para as reformas necessárias? A incapacidade física do pontífice? Todos estes factos?
Com efeito, muitos casos vieram ao de cima, alguns de forma ilícita. As comissões de cardeais produziram relatórios que o pontífice leu e que chegaram às mãos de Francisco. Diz-se que a candidatura papal de Ratzinger tivera o empenhado apoio tático do jesuíta cardeal Carlo Martini e que este, quando Bento XVI o visitara momentos antes da sua morte, lhe teria segredado que estava na hora da renúncia.
Porém, a lealdade institucional aconselha a que nos atenhamos às razões do próprio, plasmadas na curta declaratio, de 11 de fevereiro de 2013:
“Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado.
Neste documento, Bento XVI, acusa a falta de idoneidade das suas forças e a sua incapacidade para administrar bem, entende que o cumprimento do ministério petrino convoca a conjugação das obras e das palavras e o sofrimento e a oração. Porém, o mundo de hoje, “sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé”, postula, “para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, “o vigor quer do corpo quer do espírito”. Por isso, renuncia e fá-lo com total liberdade, como refere noutro passo da declaratio.
No entanto, Bento promete servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.
Desde então, reside no Convento Mater Ecclesiae, no Vaticano, e mantém uma vida de recolhimento, comparecendo em público apenas para acompanhar algumas cerimónias presididas por Francisco ou receber homenagens devidamente programadas. E todas as informações vindas a lume revelam o bom relacionamento, amizade e solidariedade entre Francisco e Bento.

2016.02.28 – Louro de Carvalho

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Cartaz polémico do BE não era necessário

A propósito da aprovação parlamentar da lei que permite a adoção por casais do mesmo sexo, o BE (Bloco de Esquerda) lançou cartaz com a imagem de Jesus Cristo encimada pela frase “Jesus também tinha 2 pais”. Com o cartaz, o BE coloca também outdoors com a palavra Igualdade emoldurada pela representação gráfica dos diferentes tipos de famílias. Cartaz e outdoors integram ainda a frase 10.02.2016 Parlamento termina discriminação na lei da adoção.
O material de propaganda teve o aval, embora não em termos consensuais, dos órgãos do partido e, em especial da sua coordenadora. Alguns dirigentes do BE dizem que a intenção não é polémica. Assim, para a deputada do BE Sandra Cunha – membro da subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República – não existe qualquer intenção “polémica” nem desejo de “afrontar a Igreja” com a associação da imagem de Jesus à questão da adoção por pessoas do mesmo sexo. Segundo a bloquista, “o objetivo é trazer visibilidade a este tipo de famílias e a este tipo de realidades”. Ao invés, a eurodeputada também bloquista Marisa Matias considerou que “foi um erro” o polémico cartaz do seu partido assinalando a legalização da adoção gay, admitindo que “saiu ao lado da intenção que se pretendia”.
O cartaz já foi criticado inclusivamente por ativistas de primeira linha nas causas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais). Miguel Vale de Almeida, aliás ex-militante (e fundador) do Bloco de Esquerda, escreveu nas redes sociais:
“Não percebo a razão de uma campanha para celebrar algo já conquistado (e com a Procriação Medicamente Assistida ainda pendente). Também não percebo o recurso à religião, que sempre se defendeu, e bem, ter de estar fora do debate.”

E acrescenta:
“Tenho uma certa aversão ao esfregar coisas na cara quando se está (de algum modo, bem sei) no poder – mesmo quando a condição 'normal' foi/é termos homofobia esfregada na cara a toda a hora. Ou seja: não se percebe e está tudo errado em vários planos – e, sim, incluindo o do respeito pelas convicções religiosas de outrem por parte da política organizada.”

A frase do cartaz não é inédita, mas nunca tinha sido propalada em Portugal. O BE resolveu celebrar a aprovação da adoção por casais do mesmo sexo com o tal cartaz com aquela frase, mas parece que ninguém gostou deste género de “humor”, obviamente por motivos diferentes. Bispos, padres, movimentos católicos, homossexuais católicos, a ILGA e mesmo deputados bloquistas consideram infeliz a campanha ou, pelo menos, um erro tático.
Anselmo Borges, sacerdote e professor universitário da UC, reage à campanha do BE: “Mais do que infeliz, é ridícula. Onde está a graça? A mim não me ofende e a Deus também não, porque o ridículo só atinge quem o produz.”. Também o padre António Vaz Pinto resume a atitude do partido de duas maneiras: referindo-se ao cartaz, considera-o de “de mau gosto e inoportuno”; e, referindo-se à postura, sustenta que “as pessoas não precisam de ser cristãs para não gostarem deste cartaz”, que significa “uma falta de respeito para com as convicções dos outros”.
Por seu turno, Daniel Oliveira, ex-dirigente do BE, declarou:
“Há algumas décadas que se tenta tirar a religião do debate político sobre igualdade de direitos. Deste ponto de vista, o cartaz, além de não acrescentar qualquer argumento ao tema, é um péssimo serviço a esta causa.”

O cardeal-patriarca de Lisboa e presidente da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) afirmou à agência Ecclesia que a utilização da frase “Jesus também tinha dois pais” num cartaz sobre a adoção por casais do mesmo sexo “falseia uma verdade”, é a “pior das mentiras” e “desqualifica quem a propaga”. D. Manuel Clemente disse que Jesus sempre se referiu a Deus “como Seu Pai”, tinha uma mãe, Maria, e um pai adotivo, na “terminologia atual”, que era José, da descendência de David.
Antes do Presidente da CEP, já o padre Manuel Barbosa, secretário e porta-voz da mesma, considerara que o cartaz “não se enquadra num respeito mútuo” e criticara o “aproveitamento abusivo” da figura de Cristo. E sintetiza a sua avaliação no segmento seguinte:
“Há um aproveitamento abusivo, sem sentido, da figura de Jesus Cristo. É uma analogia que não faz qualquer sentido. É abusiva e mesmo de mau gosto”.

Nas suas declarações à agência Ecclesia, o padre Barbosa sublinhou que a família para a Igreja “é sempre constituída por um casal, homem e mulher”, observando que “as convicções são diferentes” e que “não podemos dizer de outro modo”. Defendendo o respeito pela liberdade de expressão, o sacerdote observou que, neste caso, “não há o respeito mútuo” pelo outro, não só na Igreja mas também por “outros cristãos que seguem Jesus nas suas vidas”. Sustentou que este material de campanha se “enquadra naturalmente no respeito pela liberdade de expressão mas não se enquadra num respeito mútuo que deveria existir porque a liberdade implica sempre uma corresponsabilidade e uma relação também com os valores essenciais da vida”.
O secretário da CEP assinala que está a “dar importância” a este cartaz e slogan pela utilização da figura de Jesus porque “há aspetos mais importantes, outras problemáticas” que Igreja e sociedade têm de atender.
O jornal ‘Económico’ noticiou que na Internet já circula uma petição pública da iniciativa de jovens católicos a exigir pedido de desculpa por parte do BE, porque, segundo eles, “o cartaz tem, de forma clara e inequívoca, o propósito de ofender a comunidade católica portuguesa.”
Também a AJC (Associação de Juristas Católicos) considera o cartaz do BE sobre a adoção por casais do mesmo sexo com a frase “Jesus também tinha dois pais” uma “provocação gratuita” e desrespeitosa por conceções culturais diferentes. Em comunicado, declara:
“A Associação dos Juristas Católicos considera lamentável que um partido político com representação parlamentar na Assembleia da República, onde os deputados representam todo o País, use este meio, que constitui apenas uma provocação gratuita que traduz, no fundo, a incapacidade do BE em respeitar conceções culturais, religiosas e sociais que divirjam e contradigam a única que considera legítima”.

O mesmo documento sustenta:
“A democracia, para que assegure a coesão social e uma convivência pacífica entre todos, mais do que o cumprimento da lei, impõe o respeito por códigos de conduta próprios do estado civilizacional em que nos encontramos”.

Para esta Associação, a iniciativa do BE é “de total e acintoso desrespeito pelas crenças e pelos direitos fundamentais de todos os cristãos”. Os juristas católicos afirmam que
“Em todas as sociedades desenvolvidas se exige das instituições com responsabilidades democráticas o respeito pelas convicções religiosas dos outros, tal como, num país livre e democrático, a liberdade religiosa constitui um direito fundamental de todos e cada um dos cidadãos”.

E acrescentam:
“Sendo Verdadeiramente Homem e também Verdadeiramente Deus, é ofensiva e não é legítima qualquer analogia com a matéria objeto do debate relativo às uniões homossexuais e à adoção neste contexto, que tanto a Revelação como a Tradição constante da Igreja Católica tratam de forma inequívoca e coerente”.

Pedro Vaz Patto, da AJC e também residente da CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz) disse, em declarações à agência Ecclesia, que a instrumentalização “com propósitos políticos” da figura de Jesus é “lamentável” e asseverou:
“Instrumentalizar com propósitos políticos a figura de Jesus Cristo, ou qualquer figura ou símbolo sagrado para crentes de qualquer religião, é sempre condenável. Mas ainda mais quando está em causa a propaganda de uma lei que muitos cristãos consideram iníqua, por sobrepor ao bem das crianças o interesse dos adultos”.

Vaz Patto esclareceu ainda:
“A adoção por uniões homossexuais não é uma exigência do princípio da igualdade. Pelo contrário, representa um tratamento desigual e injusto para com as crianças adotadas, deliberadamente privadas de um pai e de uma mãe. Também Jesus Cristo, Deus feito homem, conheceu um pai e uma mãe, como só os políticos do Bloco de Esquerda parecem ignorar”.
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Como comentário, começo por dizer que em política não é relevante que haja intenção ou não. O que é de apreciar é o facto político.
Toda a gente sabe que a Igreja Católica, aliás como outras Igrejas Cristãs e outros cidadãos, é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo e contra a adoção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo (casadas ou a viver em união de facto). Todavia, esta perspetiva não se impõe; forma-se para ela de forma contínua, paciente e insistente. E o BE sabe-o. Porém, este partido, em ascensão, conseguiu pôr muita gente a falar dele. Oxalá que o tiro não lhe venha a sair pela culatra. Não é, pois despicienda a postura daqueles bloquistas que têm este meio de campanha como um grande erro tático e desnecessário. Primeiro, não é fácil aceitar que não tenha havido intenção deliberada de agitar a opinião pública provavelmente com desrespeito por quem, vencido pela lei, aceitou o veredicto parlamentar sem pestanejar e sem fazer alarido por respeito aos órgãos de soberania e que agora teve o ensejo de se exprimir abertamente. Depois, embora a religião tenha consequências políticas e sociais e influencie a discussão política, habituámo-nos a não a ver invocada na mesa das discussões, sobretudo pelos partidos de feição mais laica. Ademais, os partidos políticos têm ao seu dispor, e como base de discussão e intervenção políticas, os tratados e manuais e de ciência política, Constituição da República Portuguesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e demais documentos afins. Importa saber o que tais documentos dizem e como são lidos.
Como alguns o fizeram em relação ao Charlie Hebdo, é preciso declarar que a liberdade de expressão é um valor a promover e preservar, porque decorrente de um dos direitos e liberdades fundamentais. Não obstante, deve ter em linha de conta outros valores inestimáveis, também eles decorrentes de outros diretos e liberdades fundamentais, entre os quais se conta a liberdade religiosa (ao nível da consciência, da profissão de fé, do culto privado e público, do ensino da fé e da intervenção na política, sociedade e economia), que merece respeito e abstenção do achincalhamento.   
Deus e os cristãos bem podem com os dislates que só ficam com quem os profere ou arma. Por outro lado, não é consensual que a questão da adoção de crianças por casais homossexuais decorra necessariamente do princípio da igualdade, que respeita as naturais diferenças, nem sei se as pessoas que invocam, por tudo e por nada, o dito “superior interesse da criança” sabem efetivamente do que estão a falar ou se este é um conceito unívoco ou mesmo se não se confunde tantas vezes com as maneiras de ver e com as pretensões dos adultos.
Quanto a Jesus de Nazaré, é preciso dizer que, aos olhos dos seus coevos e segundo o que a História pode apurar, ele tinha os pais, José e Maria, como as demais crianças. O que sabemos do Pai de Jesus Cristo, qui in caelis est, sabemo-lo pela Revelação, secundada pela reflexão teológica que gera e robora a fé dos crentes e que esclarece que José era apenas o pai “putativo” (como se dizia quando comecei a estudar o catecismo) do Nazareno ou o seu pai “adotivo”, segundo a nomenclatura corrente. Nesta perspetiva, que só aceita quem é crente, em termos carnais, Jesus era unicamente filho de Maria, a Virgem e protótipo da Igreja peregrina neste mundo.
E recordo do dito de Apeles: Ne sutor ultra crepidam! (Não vá o sapateiro remendão além da chinela).

2016.02.27 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Sobre uma celebração dita ecuménica

Segundo o jornal Público, de 23 do corrente mês de fevereiro, Marcelo Rebelo de Sousa, já Presidente da República, vai participar numa “celebração ecuménica em sentido lato” (em título, é denominada como inter-religiosa) na Mesquita de Lisboa na tarde de dia 9 de março, dia em cuja manhã ocorrerá a cerimónia da sua tomada de posse e compromisso presidencial na Assembleia da República.
Ainda de acordo com o mesmo jornal, esta iniciativa, que é inédita em Portugal num contexto destes, está a ser organizada para assinalar a sua posse tendo como objetivo genérico alertar para “a necessidade de entendimento entre religiões e culturas”. Porém, os seus objetivos imediatos são: “concentrar atenções e apelar à busca de uma solução para o drama dos refugiados do Médio Oriente que têm fugido para a Europa”; e significar “uma manifestação contra os ataques terroristas que têm surgido na Europa e por todo o mundo”.
Esta celebração “inter-religiosa” (é esta a denominação mais adequada) da Mesquita de Lisboa conta com a participação, além de muçulmanos e de cristãos (católicos, evangélicos e adventistas), de outras confissões religiosas, como judeus e budistas, esperando-se a representação de cerca de duas dezenas de Confissões, dentro do espírito ecuménico e do diálogo inter-religioso que bebe na doutrina do Vaticano II, cara a Marcelo Rebelo de Sousa, que se tem apresentado como assumidamente católico.
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Antes de mais, importa precisar os conceitos.
Assim, ecumenismo é um processo de busca unitário. O vocábulo “ecuménico” provém do adjetivo grego οἰκουμένη referido a γη, que significa (terra) habitada. Com o fenómeno de evolução semântica o termo passou à especificação semântica. Por esta via, em sentido estrito, emprega-se para significar os esforços e o movimento em prol da unidade das Igrejas cristãs; e, num sentido lato, significará a busca da unidade entre as diversas religiões.
O Dicionário Novo Aurélio (1986) traz duas aceções de ecumenismo: pela primeira, significava, “nos primórdios do cristianismo, todos os povos a quem se deveria dirigir a pregação do Evangelho” (definição pelo lado dos destinatários); e, pela segunda, significa o “movimento surgido nas Igrejas protestantes e, posteriormente, na Igreja Católica, originado na crença de terem uma unidade substancial, a doutrina e a mensagem de Cristo”. Por seu turno, o Dicionário da Porto Editora (2011) entende o vocábulo ecumenismo também em duas aceções: pela primeira, significa a “tendência para formar uma única família em todo o mundo” (significação genérica e próxima da etimológica); e, pela segunda, “movimento tendente a unir todas as Igrejas cristãs (significado mais próximo do sentido estrito de ecumenismo).
Do ponto de vista eclesiástico (católico), na definição mais abrangente, ecumenismo consiste na aproximação, na cooperação e na busca fraterna da superação das divisões entre as diferentes Igrejas cristãs. Na ótica do Cristianismo em geral, pode dizer-se que o ecumenismo é o movimento que coloca as diversas denominações cristãs na busca do diálogo e cooperação comuns com vista à superação das divergências históricas e culturais a partir de uma efetiva reconciliação cristã que sobre a unidade fundamental faça assentar e aceitar a diversidade entre as Igrejas. Na senda deste dinamismo, entende-se que a Igreja de Jesus Cristo vai além das diferenças geográficas, culturais e políticas entre as diversas confissões de fé no mesmo Cristo, superando-se o princípio formulado com o aparecimento das Igrejas reformadas cuius regio huius religio, passando-se ao sentido originário da catolicidade: unidade no essencial e máxima liberdade nos demais aspetos.
Já o “diálogo inter-religioso” configura uma expressão que define a relação das Igrejas cristãs com as outras religiões, relação que a Igreja Católica assumiu claramente a partir da elaboração da declaração conciliar Nostra Aetate, há 50 anos.
O diálogo inter-religioso assenta na convicção de que as diferentes religiões devem evitar a disputa pela supremacia mundial e a busca de protagonismo nas preocupações pela sorte do mundo, devendo, ao invés disso, dialogar, respeitar-se mutuamente e evitar guerras em nome da fé religiosa. Mais: para lá de evitarem as situações de conflitualidade, deverão prosseguir no esforço comum de combate aos flagelos que afligem a humanidade.
Com base nestes pressupostos, entre os dias 6 e 9 de setembro de 2003, realizou-se um Encontro Internacional de Teólogos Pluralistas e Estudiosos da Religião que reuniu 35 especialistas em matéria religiosa provenientes da Europa, Ásia e Estados Unidos. Neste encontro, foram estabelecidos os seguintes princípios para o diálogo inter-religioso, que foram divulgados no dia 10 de setembro do mesmo ano em nota de imprensa:
1. O diálogo e o compromisso inter-religiosos devem ser a forma pela qual as religiões se relacionam entre si, sendo que uma necessidade primordial para elas é a de sanar os antagonismos entre si.
2. O diálogo deve envolver os urgentes problemas do mundo atual, incluindo a guerra, a violência, a pobreza, a devastação ambiental, a injustiça de género e a violação dos direitos humanos.
3. Reivindicações de verdade absoluta podem facilmente ser exploradas para incitar ao ódio e à violência religiosos.
4. As religiões do mundo afirmam uma realidade/verdade última que é conceitualizada de formas diferentes.
5. Embora a realidade/verdade última esteja além do alcance da completa compreensão humana, ela encontrou uma expressão em diversas formas nas religiões do mundo.
6. As grandes religiões do mundo, com os seus diversos ensinamentos e práticas, constituem caminhos autênticos para o bem supremo.
7. As religiões do mundo compartilham muitos valores essenciais, como o amor, a compaixão, a igualdade, a honestidade e o ideal de tratar os outros como queremos ser tratados.
8. Todas as pessoas têm liberdade de consciência e o direito de escolher a sua própria fé.
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À luz do exposto parece que deveria saudar a iniciativa do católico Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República num estado aconfessional. Porém, não o faço pelas razões que, a seguir, explano.
Em primeiro lugar, parece que, no quadro da aconfessionalidade do Estado, o contexto da tomada de posse do Presidente não deveria integrar uma celebração religiosa.
Depois, se o Presidente entende que, como Presidente, não deixa de ser um cidadão no gozo de todos os direitos de cidadania e quer assumir em pleno as prerrogativas do artigo 41.º da CRP (CRP que ele jura cumprir e fazer cumprir) – artigo que não se circunscreve à liberdade de consciência, mas também consigna a de culto (e o culto tem uma dimensão privada e uma dimensão pública) – então pedia-se-lhe a coerência com a sua assunção clara de catolicidade, que o levaria a mandar organizar uma celebração católica.
Porém, se quer dispor da liberalidade do Concílio Vaticano II na linha ecuménica e do diálogo inter-religioso, pelos vistos cara ao Presidente, e se quer ser efetivamente o Presidente de todos os portugueses, bem poderia optar por uma celebração religiosa interconfessional num espaço neutro, como um teatro, um auditório, um estádio ou mesmo um espaço, em Lisboa, donde se pode dizer que historicamente Portugal divisa e acolhe o mundo, como a Torre de Belém, os Claustros do Mosteiro dos Jerónimos ou o Centro Cultural de Belém.
Conquanto, os objetivos acima explanados sejam de pertinente e atual interesse, creio não ser a partir da mesquita de Lisboa que se torne mais eficaz o apelo do Chefe de Estado de Portugal à atenção aos refugiados. E não sei se os muçulmanos serão o grupo religioso e político mais credível no mundo ocidental para fazer a ponte entre as diversas culturas e religiões – pelo menos a História recente não o mostra.
Por outro lado, parece descabido dar a entender que o terrorismo tenha origem exclusivamente nos muçulmanos e não em grupos já identificados, embora não totalmente delimitados territorialmente. Bem me lembro de como o Governo Espanhol andou mal quando imputou precipitadamente um grande atentado à ETA.
Não quero acreditar que se trate apenas de uma ideia peregrina de MRS a querer marcar terreno, agenda ou diferença de estilo. Todavia, não me repugnando que Sua Excelência aceite todos os convites que, no decurso do mandato, lhe sejam endereçados por quaisquer entidades religiosas, penso que esta da inclusão de uma celebração ecuménica, ou melhor inter-religiosa, no dia da tomada de posse presidencial não é uma ideia tão plausível como aparenta. E, apesar de tudo, esperava-se do Chefe de Estado melhor ponderação.
Ademais, não se lhe pede que seja o Constantino ou o Teodósio do século XXI a funcionar em sentido inverso.

2016.02.26 – Louro de Carvalho