A 26 de fevereiro de 2016, o Papa Francisco e
o Patriarca Kirill de Moscovo e de toda a Rússia encontraram-se no aeroporto
José Marti, em Havana (Cuba). Trocaram o abraço cordial de caráter pessoal e o gesto de aproximação
que faltava desde há quase um milénio. O encontro privado terminou em pública declaração
conjunta em 30 pontos com grande incidência pastoral.
Durante o voo entre Havana e a Cidade do México, no mesmo dia 12,
Francisco comentou com os jornalistas a bordo do voo papal as suas impressões
sobre a assinatura da declaração conjunta com o Patriarca Kirill, advertindo: “Haverá tantas interpretações, tantas”.
Porém, o Papa quis
agradecer ao Presidente cubano Raúl Castro por se ter disponibilizado a
hospedar o encontro histórico e a facilitar a assinatura da declaração
conjunta. Depois, esclareceu que se tratou de um encontro “entre dois bispos”,
que especificou nos termos seguintes:
“Foi uma conversa entre irmãos: pontos claros que
a ambos preocupam. Falámos com toda a franqueza. Eu senti-me diante de um
irmão, e ele também me disse o mesmo. Dois bispos que falam sobre a situação
das suas Igrejas, primeiro; segundo, sobre a situação do mundo, das guerras,
guerras que agora se corre o risco de não ser mais ‘em partes’, mas que pode
envolver tudo, não?”.
A seguir, o Pontífice acentuou o
clima de alegria que marcou o colóquio, revelando que “sentia uma alegria
interior que era propriamente do Senhor” e que o Patriarca “falava liberalmente
e se sentia essa alegria”.
Finalmente, mudando o tom de voz e advertindo que a unidade
dos cristãos se faz caminhando, não com tratados teológicos, ponderou:
“Haverá tantas interpretações, tantas. Não é uma
declaração política ou sociológica, é uma declaração pastoral. Até quando se
fala do secularismo e de coisas claras, de manipulação biogenética, todas essas
coisas. É pastoral: de dois bispos que se encontram com preocupações pastorais.
Estou contente”.
***
A declaração conjunta iniciou-se com a saudação trinitária
paulina: “A graça do
Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam
com todos vós” (2Cor 13,13).
Em relação ao conteúdo, respigam-se alguns pontos:
-
Frisam, gratos a Deus, a realização deste primeiro encontro na história das
duas Igrejas para “falar de viva voz
(2Jo12) e analisar as relações
mútuas entre as Igrejas, os problemas essenciais dos fiéis e as perspetivas de
progresso da civilização humana”.
-
Relevam a situação geoestratégica do local, “encruzilhada entre Norte e Sul,
entre Leste e Oeste” e “símbolo das esperanças do Novo Mundo” e dos dramas da história do século, donde dirigem a
palavra aos povos da América Latina e dos outros continentes, alegrando-se por “estar
a crescer aqui, de forma dinâmica, a fé cristã”.
-
Longe das disputas do Velho Mundo
sentem a forte necessidade do trabalho comum para dar ao mundo, com mansidão e
respeito, razão da esperança que está em nós (cf 1Pe 3,15).
-
Tendo recebido a vinda ao mundo do Filho de Deus, partilham a Tradição
espiritual comum do 1.º milénio do cristianismo sob a égide de Maria e dos
santos, com relevo para os mártires.
- Reconhecem e deploram a privação milenar da
comunhão na Eucaristia, divididos por feridas causadas por conflitos mercê de
divergências ancestrais na compreensão e explicitação da fé no Deus uno e trino
– contrariando a Oração Sacerdotal de Cristo: Que todos sejam um só (Jo 17,21).
-
Esperam que este encontro contribua para o refazer da unidade querida por Deus,
levando os cristãos a rezar fervorosamente ao Senhor pela unidade plena de
todos os discípulos, num mundo que espera não apenas palavras, mas gestos concretos.
-
Determinados a fazer tudo para superar as divergências históricas, querem unir
esforços para testemunhar o Evangelho de Cristo e o património comum da Igreja
do 1.º milénio, respondendo em conjunto aos desafios do mundo contemporâneo.
-
Olham, antes de mais, para as regiões onde os cristãos são vítimas de perseguição,
com exterminação de famílias, aldeias e cidades inteiras, devastação e saque de
igrejas, profanação de objetos sagrados, destruição de monumentos, êxodo maciço
dos cristãos da terra onde começou a espalhar-se a fé e onde viveram desde o
tempo dos apóstolos.
-
Pedem a intervenção da comunidade internacional para prevenir nova expulsão dos
cristãos do Médio Oriente e expressam a compaixão pelas tribulações dos fiéis
doutras religiões.
-
Exortam a as nações a unirem-se para o fim da violência e terrorismo e a
contribuir pelo diálogo para o rápido restauração da paz, bem como para a libertação
das pessoas raptadas, em que se contam os Metropolitas de Alepo, Paulo e João
Ibrahim, sequestrados em abril de 2013.
-
Rogam a Cristo pela paz no Médio Oriente, que é fruto da justiça (Is 32,17), para que se reforce a convivência fraterna entre as populações,
as Igrejas e as religiões, o regresso dos refugiados, a cura dos feridos e o
repouso da alma dos inocentes que morreram; suplicam aos beligerantes a boa
vontade na negociação; e exortam os cristãos e todos os crentes a suplicarem ao
Criador que proteja a criação da destruição e não permita nova guerra mundial,
na certeza de que, para uma paz duradoura e esperançosa, são necessários esforços
específicos na redescoberta dos valores comuns, fundados no Evangelho de Jesus
Cristo.
-
Curvam-se ante o martírio dos que, à custa da própria vida, testemunham a
verdade do Evangelho, preferindo a morte à apostasia de Cristo, os quais, pertencentes
a várias Igrejas, mas unidos por uma tribulação comum, são um penhor da unidade
dos cristãos.
-
Creem na indispensabilidade do diálogo inter-religioso, advertindo que são “inaceitáveis
as tentativas de justificar ações criminosas com slogans religiosos”, pois “nenhum crime pode ser cometido em nome
de Deus”: Deus não é Deus de desordem,
mas de paz (1 Cor 14,33).
-
Afirmando o alto valor da liberdade religiosa, agradecem a Deus a renovação da
fé que ocorre na Rússia e em muitos países da Europa Oriental, onde, durante
décadas, dominou um regime ateu, registando-se, em 25 anos, a construção de
dezenas de milhar de novas igrejas e a abertura de centenas de mosteiros e
escolas teológicas. Assim, as comunidades cristãs desenvolvem uma importante atividade
sociocaritativa, prestando variada assistência aos necessitados.
-
Estão preocupados com a situação de muitos países onde os cristãos se debatem
cada vez com mais frequência com a restrição da liberdade religiosa, do direito
de testemunhar as suas convicções e da possibilidade de viver de acordo com
elas, nomeadamente nalguns países em sociedades secularizadas, alheias à
referência a Deus e à sua verdade, com forte limitação dos direitos dos
cristãos (e
até discriminação), quando forças políticas, eivadas da ideologia dum secularismo
agressivo, procuram relegá-los para a margem da vida pública.
-
Olham o processo de integração europeia, iniciado depois de séculos de
sangrentos conflitos e acolhido com esperança, como garantia de paz e segurança,
mas convidam à vigilância contra uma integração não respeitadora das
identidades religiosas, pedindo aos cristãos que se unam para testemunhar
Cristo e o Evangelho, de modo que a Europa conserve a própria alma formada por
dois mil anos de tradição cristã.
-
Voltam o olhar para as pessoas em grande dificuldade, em condições de extrema
necessidade e pobreza – enquanto crescem as riquezas materiais da humanidade –
sobretudo os milhões de migrantes e refugiados, com a crescente desigualdade na
distribuição dos bens e o aumento do sentimento de injustiça face ao sistema de
relações internacionais estabelecido.
-
Salientam a vocação das Igrejas cristãs a defender as exigências da justiça, o
respeito pelas tradições dos povos e a autêntica solidariedade com todos os que
sofrem.
-
Entendem a família como centro natural da vida humana e da sociedade, pelo que exprimem
a sua preocupação com a crise da família em muitos países.
-
Preconizam a família fundada no matrimónio como ato de amor livre e fiel entre
um homem e uma mulher e como escola de amor e fidelidade, lamentando que “outras
formas de convivência estejam postas ao mesmo nível desta união”.
-
Pedem a todos o respeito pelo direito inalienável à vida, contra o aborto e a
eutanásia, e lembram, face ao desenvolvimento das tecnologias reprodutivas
biomédicas, a imutabilidade dos princípios morais cristãos, baseados no
respeito pela dignidade do homem chamado à vida, segundo o desígnio do Criador.
-
Dirigem-se de modo particular aos jovens cristãos, que têm o dever de não esconder o talento na terra (cf Mt 25,25), mas de usar todas as
capacidades para confirmar no mundo as verdades de Cristo, encarnar na vida os
mandamentos evangélicos do amor de Deus e do próximo.
-
Asseguram que Deus ama os jovens e espera de cada um que sejam seus discípulos
e apóstolos, como luz do mundo, de modo que quantos vivem ao seu redor, vendo as suas boas obras,
glorifiquem o Pai que está no Céu (cf Mt 5,14.16). Assim hão de educar os filhos na fé
cristã, entregando-lhes a
pérola preciosa da fé (cf Mt 13,46), recebida dos pais e antepassados.
-
Assumem que ortodoxos e católicos estão unidos pela Tradição comum da Igreja do
1.º milénio e pela missão de pregar o Evangelho de Cristo no mundo de hoje, com
respeito mútuo entre os membros das comunidades cristãs e excluindo qualquer
forma de proselitismo, não como concorrentes, mas como irmãos que são realmente.
-
Apelam à reconciliação onde existirem tensões entre greco-católicos e
ortodoxos, sendo hoje claro que o uniatismo
do passado, entendido como a união duma comunidade à outra separando-a da sua
Igreja, não é forma de restauração da unidade: as comunidades eclesiais surgidas
na História têm o direito de existir e de empreender o que é necessário para
satisfazer as exigências espirituais dos fiéis, procurando ao mesmo tempo viver
em paz com os seus vizinhos.
-
Deploram o conflito na Ucrânia, que já causou muitas vítimas, provocou inúmeras
tribulações a gente pacífica e lançou a sociedade numa grave crise económica e
humanitária e convidam todas as partes do conflito à prudência, à solidariedade
social e à atividade de construir a paz.
-
Esperam que o cisma entre os fiéis ortodoxos na Ucrânia possa ser superado com
base nas normas canónicas existentes, que todos os cristãos ortodoxos da Ucrânia
vivam em harmonia.
-
Afirmam que, neste mundo, multiforme mas unido por um destino comum, católicos
e ortodoxos são chamados a colaborar fraternalmente no anúncio da Boa Nova, a testemunhar
a dignidade moral e a liberdade autêntica da pessoa, para que o mundo creia (Jo 17,21).
-
Esperam que neste corajoso testemunho da verdade de Deus e da Boa Nova
salvífica, nos sustente o Homem-Deus Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Ele
é fonte de alegria e de esperança. A fé n’Ele transfigura a vida humana,
enche-a de significado.
-
Gratos pelo dom da compreensão recíproca manifestada neste encontro, levantam
os olhos para a Mãe de Deus, invocando-A com as palavras da antiga oração: Sob o abrigo da vossa misericórdia, nos
refugiamos, Santa Mãe de Deus. E imploram a sua intercessão como encorajamento
à fraternidade daqueles que A veneram, para que, a seu tempo, sejam reunidos em
paz e harmonia num só povo de Deus para glória da Santíssima e indivisível
Trindade!
***
Depois
da assinatura da declaração conjunta, o Papa pronunciou breve alocução em que
sublinhou que os dois hierarcas falaram como irmãos, pois têm o mesmo Batismo e
ambos são bispos; que falaram das Igrejas e do mundo; e que estão de acordo em
que “a unidade se faz caminhando”.
Declarando
que falaram “claramente, sem meias-palavras”, confessou ter sentido a consolação
do Espírito neste diálogo e agradeceu “a humildade de Sua Santidade, humildade
fraterna e os seus bons desejos de unidade”.
Mencionou
o trabalho profícuo dos colaboradores, nomeadamente, do Metropolita Hilarión e do
Cardeal Koch, com as respetivas equipas, que trabalharam para este encontro e declaração
conjunta, salientando que partem “com uma série de iniciativas” que pensa “serem
viáveis e que poderão realizar-se”.
Por
fim, expressou um sentido agradecimento a Cuba, ao grande povo cubano e ao seu
Presidente ali presente, destacando “a sua disponibilidade ativa”, elegendo
Cuba como a futura capital da unidade.
***
É
mais um sinal de que o trabalho ecuménico não para, sendo que as iniciativas da
Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos são cada vez mais um esforço
extensível ao ano todo. Muitas Igrejas locais, como a do Porto, já o perceberam.
À escala mundial, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidades dos Cristãos,
da Igreja Católica, e as estruturas homólogas das demais Igrejas Cristãs não
descansam, dialogando com clareza e abertura, trançando linhas de rumo comuns e
aprofundando o diálogo doutrinal. Deus
adiuvet.
2016.02.13 – Louro de
Carvalho
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