sábado, 13 de fevereiro de 2016

O Papa Francisco e o Patriarca Kirill de Moscovo e de toda a Rússia ou Cuba como Capital da Unidade

A 26 de fevereiro de 2016, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill de Moscovo e de toda a Rússia encontraram-se no aeroporto José Marti, em Havana (Cuba). Trocaram o abraço cordial de caráter pessoal e o gesto de aproximação que faltava desde há quase um milénio. O encontro privado terminou em pública declaração conjunta em 30 pontos com grande incidência pastoral.
Durante o voo entre Havana e a Cidade do México, no mesmo dia 12, Francisco comentou com os jornalistas a bordo do voo papal as suas impressões sobre a assinatura da declaração conjunta com o Patriarca Kirill, advertindo: “Haverá tantas interpretações, tantas”. Porém, o Papa quis agradecer ao Presidente cubano Raúl Castro por se ter disponibilizado a hospedar o encontro histórico e a facilitar a assinatura da declaração conjunta. Depois, esclareceu que se tratou de um encontro “entre dois bispos”, que especificou nos termos seguintes:
 “Foi uma conversa entre irmãos: pontos claros que a ambos preocupam. Falámos com toda a franqueza. Eu senti-me diante de um irmão, e ele também me disse o mesmo. Dois bispos que falam sobre a situação das suas Igrejas, primeiro; segundo, sobre a situação do mundo, das guerras, guerras que agora se corre o risco de não ser mais ‘em partes’, mas que pode envolver tudo, não?”.

A seguir, o Pontífice acentuou o clima de alegria que marcou o colóquio, revelando que “sentia uma alegria interior que era propriamente do Senhor” e que o Patriarca “falava liberalmente e se sentia essa alegria”.
Finalmente, mudando o tom de voz e advertindo que a unidade dos cristãos se faz caminhando, não com tratados teológicos, ponderou:
“Haverá tantas interpretações, tantas. Não é uma declaração política ou sociológica, é uma declaração pastoral. Até quando se fala do secularismo e de coisas claras, de manipulação biogenética, todas essas coisas. É pastoral: de dois bispos que se encontram com preocupações pastorais. Estou contente”.
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A declaração conjunta iniciou-se com a saudação trinitária paulina: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (2Cor 13,13).
Em relação ao conteúdo, respigam-se alguns pontos:
- Frisam, gratos a Deus, a realização deste primeiro encontro na história das duas Igrejas para “falar de viva voz (2Jo12) e analisar as relações mútuas entre as Igrejas, os problemas essenciais dos fiéis e as perspetivas de progresso da civilização humana”.
- Relevam a situação geoestratégica do local, “encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste” e “símbolo das esperanças do Novo Mundo” e dos dramas da história do século, donde dirigem a palavra aos povos da América Latina e dos outros continentes, alegrando-se por “estar a crescer aqui, de forma dinâmica, a fé cristã”.
- Longe das disputas do Velho Mundo sentem a forte necessidade do trabalho comum para dar ao mundo, com mansidão e respeito, razão da esperança que está em nós (cf 1Pe 3,15).
- Tendo recebido a vinda ao mundo do Filho de Deus, partilham a Tradição espiritual comum do 1.º milénio do cristianismo sob a égide de Maria e dos santos, com relevo para os mártires.
 - Reconhecem e deploram a privação milenar da comunhão na Eucaristia, divididos por feridas causadas por conflitos mercê de divergências ancestrais na compreensão e explicitação da fé no Deus uno e trino – contrariando a Oração Sacerdotal de Cristo: Que todos sejam um só (Jo 17,21).
- Esperam que este encontro contribua para o refazer da unidade querida por Deus, levando os cristãos a rezar fervorosamente ao Senhor pela unidade plena de todos os discípulos, num mundo que espera não apenas palavras, mas gestos concretos.
- Determinados a fazer tudo para superar as divergências históricas, querem unir esforços para testemunhar o Evangelho de Cristo e o património comum da Igreja do 1.º milénio, respondendo em conjunto aos desafios do mundo contemporâneo.
- Olham, antes de mais, para as regiões onde os cristãos são vítimas de perseguição, com exterminação de famílias, aldeias e cidades inteiras, devastação e saque de igrejas, profanação de objetos sagrados, destruição de monumentos, êxodo maciço dos cristãos da terra onde começou a espalhar-se a fé e onde viveram desde o tempo dos apóstolos.
- Pedem a intervenção da comunidade internacional para prevenir nova expulsão dos cristãos do Médio Oriente e expressam a compaixão pelas tribulações dos fiéis doutras religiões.
- Exortam a as nações a unirem-se para o fim da violência e terrorismo e a contribuir pelo diálogo para o rápido restauração da paz, bem como para a libertação das pessoas raptadas, em que se contam os Metropolitas de Alepo, Paulo e João Ibrahim, sequestrados em abril de 2013.
- Rogam a Cristo pela paz no Médio Oriente, que é fruto da justiça (Is 32,17), para que se reforce a convivência fraterna entre as populações, as Igrejas e as religiões, o regresso dos refugiados, a cura dos feridos e o repouso da alma dos inocentes que morreram; suplicam aos beligerantes a boa vontade na negociação; e exortam os cristãos e todos os crentes a suplicarem ao Criador que proteja a criação da destruição e não permita nova guerra mundial, na certeza de que, para uma paz duradoura e esperançosa, são necessários esforços específicos na redescoberta dos valores comuns, fundados no Evangelho de Jesus Cristo.
- Curvam-se ante o martírio dos que, à custa da própria vida, testemunham a verdade do Evangelho, preferindo a morte à apostasia de Cristo, os quais, pertencentes a várias Igrejas, mas unidos por uma tribulação comum, são um penhor da unidade dos cristãos.
- Creem na indispensabilidade do diálogo inter-religioso, advertindo que são “inaceitáveis as tentativas de justificar ações criminosas com slogans religiosos”, pois “nenhum crime pode ser cometido em nome de Deus”: Deus não é Deus de desordem, mas de paz (1 Cor 14,33).
- Afirmando o alto valor da liberdade religiosa, agradecem a Deus a renovação da fé que ocorre na Rússia e em muitos países da Europa Oriental, onde, durante décadas, dominou um regime ateu, registando-se, em 25 anos, a construção de dezenas de milhar de novas igrejas e a abertura de centenas de mosteiros e escolas teológicas. Assim, as comunidades cristãs desenvolvem uma importante atividade sociocaritativa, prestando variada assistência aos necessitados.
- Estão preocupados com a situação de muitos países onde os cristãos se debatem cada vez com mais frequência com a restrição da liberdade religiosa, do direito de testemunhar as suas convicções e da possibilidade de viver de acordo com elas, nomeadamente nalguns países em sociedades secularizadas, alheias à referência a Deus e à sua verdade, com forte limitação dos direitos dos cristãos (e até discriminação), quando forças políticas, eivadas da ideologia dum secularismo agressivo, procuram relegá-los para a margem da vida pública.
- Olham o processo de integração europeia, iniciado depois de séculos de sangrentos conflitos e acolhido com esperança, como garantia de paz e segurança, mas convidam à vigilância contra uma integração não respeitadora das identidades religiosas, pedindo aos cristãos que se unam para testemunhar Cristo e o Evangelho, de modo que a Europa conserve a própria alma formada por dois mil anos de tradição cristã.
- Voltam o olhar para as pessoas em grande dificuldade, em condições de extrema necessidade e pobreza – enquanto crescem as riquezas materiais da humanidade – sobretudo os milhões de migrantes e refugiados, com a crescente desigualdade na distribuição dos bens e o aumento do sentimento de injustiça face ao sistema de relações internacionais estabelecido.
- Salientam a vocação das Igrejas cristãs a defender as exigências da justiça, o respeito pelas tradições dos povos e a autêntica solidariedade com todos os que sofrem.
- Entendem a família como centro natural da vida humana e da sociedade, pelo que exprimem a sua preocupação com a crise da família em muitos países.
- Preconizam a família fundada no matrimónio como ato de amor livre e fiel entre um homem e uma mulher e como escola de amor e fidelidade, lamentando que “outras formas de convivência estejam postas ao mesmo nível desta união”.
- Pedem a todos o respeito pelo direito inalienável à vida, contra o aborto e a eutanásia, e lembram, face ao desenvolvimento das tecnologias reprodutivas biomédicas, a imutabilidade dos princípios morais cristãos, baseados no respeito pela dignidade do homem chamado à vida, segundo o desígnio do Criador.
- Dirigem-se de modo particular aos jovens cristãos, que têm o dever de não esconder o talento na terra (cf Mt 25,25), mas de usar todas as capacidades para confirmar no mundo as verdades de Cristo, encarnar na vida os mandamentos evangélicos do amor de Deus e do próximo.
- Asseguram que Deus ama os jovens e espera de cada um que sejam seus discípulos e apóstolos, como luz do mundo, de modo que quantos vivem ao seu redor, vendo as suas boas obras, glorifiquem o Pai que está no Céu (cf Mt 5,14.16). Assim hão de educar os filhos na fé cristã, entregando-lhes a pérola preciosa da fé (cf Mt 13,46), recebida dos pais e antepassados.
- Assumem que ortodoxos e católicos estão unidos pela Tradição comum da Igreja do 1.º milénio e pela missão de pregar o Evangelho de Cristo no mundo de hoje, com respeito mútuo entre os membros das comunidades cristãs e excluindo qualquer forma de proselitismo, não como concorrentes, mas como irmãos que são realmente.
- Apelam à reconciliação onde existirem tensões entre greco-católicos e ortodoxos, sendo hoje claro que o uniatismo do passado, entendido como a união duma comunidade à outra separando-a da sua Igreja, não é forma de restauração da unidade: as comunidades eclesiais surgidas na História têm o direito de existir e de empreender o que é necessário para satisfazer as exigências espirituais dos fiéis, procurando ao mesmo tempo viver em paz com os seus vizinhos.
- Deploram o conflito na Ucrânia, que já causou muitas vítimas, provocou inúmeras tribulações a gente pacífica e lançou a sociedade numa grave crise económica e humanitária e convidam todas as partes do conflito à prudência, à solidariedade social e à atividade de construir a paz.
- Esperam que o cisma entre os fiéis ortodoxos na Ucrânia possa ser superado com base nas normas canónicas existentes, que todos os cristãos ortodoxos da Ucrânia vivam em harmonia.
- Afirmam que, neste mundo, multiforme mas unido por um destino comum, católicos e ortodoxos são chamados a colaborar fraternalmente no anúncio da Boa Nova, a testemunhar a dignidade moral e a liberdade autêntica da pessoa, para que o mundo creia (Jo 17,21).
- Esperam que neste corajoso testemunho da verdade de Deus e da Boa Nova salvífica, nos sustente o Homem-Deus Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Ele é fonte de alegria e de esperança. A fé n’Ele transfigura a vida humana, enche-a de significado.
- Gratos pelo dom da compreensão recíproca manifestada neste encontro, levantam os olhos para a Mãe de Deus, invocando-A com as palavras da antiga oração: Sob o abrigo da vossa misericórdia, nos refugiamos, Santa Mãe de Deus. E imploram a sua intercessão como encorajamento à fraternidade daqueles que A veneram, para que, a seu tempo, sejam reunidos em paz e harmonia num só povo de Deus para glória da Santíssima e indivisível Trindade!
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Depois da assinatura da declaração conjunta, o Papa pronunciou breve alocução em que sublinhou que os dois hierarcas falaram como irmãos, pois têm o mesmo Batismo e ambos são bispos; que falaram das Igrejas e do mundo; e que estão de acordo em que “a unidade se faz caminhando”.
Declarando que falaram “claramente, sem meias-palavras”, confessou ter sentido a consolação do Espírito neste diálogo e agradeceu “a humildade de Sua Santidade, humildade fraterna e os seus bons desejos de unidade”.
Mencionou o trabalho profícuo dos colaboradores, nomeadamente, do Metropolita Hilarión e do Cardeal Koch, com as respetivas equipas, que trabalharam para este encontro e declaração conjunta, salientando que partem “com uma série de iniciativas” que pensa “serem viáveis e que poderão realizar-se”.
Por fim, expressou um sentido agradecimento a Cuba, ao grande povo cubano e ao seu Presidente ali presente, destacando “a sua disponibilidade ativa”, elegendo Cuba como a futura capital da unidade.
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É mais um sinal de que o trabalho ecuménico não para, sendo que as iniciativas da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos são cada vez mais um esforço extensível ao ano todo. Muitas Igrejas locais, como a do Porto, já o perceberam. À escala mundial, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidades dos Cristãos, da Igreja Católica, e as estruturas homólogas das demais Igrejas Cristãs não descansam, dialogando com clareza e abertura, trançando linhas de rumo comuns e aprofundando o diálogo doutrinal. Deus adiuvet.

2016.02.13 – Louro de Carvalho

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