No contexto da sua visita
apostólica ao México, o Papa celebrou missa, a 17 de fevereiro, na Área da
Feira de Ciudad Juárez, ali perto da fronteira com os estados Unidos da
América, lugar onde mole enorme de migrantes e refugiados se juntam para
entrar, só o conseguindo à base da exploração dos traficantes de seres humanos
que tudo lhes prometem.
Diz Francisco, a este propósito,
que fizeram uma trégua os traficantes para que o Pontífice pudesse estar em
segurança e fazer ouvir a sua voz.
Foi questionado, no voo de
regresso ao Vaticano, por Maria Eugenia Jimenez, do “Milenio” sobre a existência de milhares de
desaparecidos no México, sendo emblemático o caso dos 43
de Ayotzinapa. A jornalista interpelou-o porque alegadamente não se terá
encontrado com os seus familiares e pediu-lhe uma mensagem para os familiares
dos milhares de desaparecidos.
A isto veio a
resposta papal sublinhando as contínuas referências “aos assassinatos, às mortes, à vida tomada por todos estes
gangues do narcotráfico, dos traficantes de seres humanos”. Isto é, o problema
foi apresentado, relevando as “chagas que o México está sofrendo”. Disse ainda
ter havido “tentativas de receber alguns”. Porém, como “eram tantos grupos,
mesmo opostos entre eles, com lutas internas”, preferiu dizê-lo na Missa de
Juárez, onde se veem todos, tal como o referiu noutras ocasiões para destinatários
diversos. Reconhecendo tratar-se de “uma situação difícil de entender”, sobretudo
para quem é estrangeiro, sabe que “a sociedade mexicana é vítima de tudo isso:
dos crimes, deste fazer desaparecer as pessoas, de descartar as pessoas. E, sendo
“um discurso público”, isso pode ser facilmente verificado. Refere ser “uma dor
muito grande” que traz consigo, “porque este povo não merece um drama como este”.
***
Efetivamente, a homilia daquela
celebração eucarística foi clara sobre esta problemática, sobretudo quando o Bispo
de Roma assegura:
“Aqui em
Ciudad Juarez, como noutras áreas fronteiriças, concentram-se milhares de
migrantes da América Central e doutros países, sem esquecer tantos mexicanos que
procuram também passar para o outro lado.
Uma passagem, um caminho carregado de injustiças terríveis: escravizados,
sequestrados, objeto de extorsão, muitos irmãos nossos acabam vítimas do
tráfico humano.”
Relevando a gravidade da crise global que dilacera, de
muitas maneiras, o coração de muitas pessoas, famílias e comunidades, declara:
“Não podemos
negar a crise humanitária que, nos últimos anos, levou à migração de milhares
de pessoas, por via ferroviária ou rodoviária ou mesmo a pé atravessando
centenas de quilómetros de montanhas, desertos, caminhos inóspitos. Hoje, esta
tragédia humana, que é a migração forçada, tornou-se um fenómeno global”.
Sendo uma crise mensurável “em números”, ela tem de
ser medida também e sobretudo “por nomes, por histórias, por famílias” e pelas
causas:
“São irmãos
e irmãs que partem, forçados pela pobreza e a violência, pelo narcotráfico e pelo
crime organizado. No meio de tantas lacunas legais, estende-se uma rede que
apanha e destrói sempre os mais pobres. À pobreza que já sofrem, vem juntar-se
o sofrimento de todas estas formas de violência.”
No meio de todos estes injustiçados, o Papa destaca,
de modo especial, os jovens e as mulheres:
“Uma
injustiça que se radicaliza ainda mais contra os jovens: como carne de canhão, eles veem-se
perseguidos e ameaçados quando tentam sair da espiral de violência e do inferno
das drogas. E que dizer de tantas mulheres a quem arrebataram injustamente a
vida?”
***
Porém, não se pode desmembrar o discurso papal sobre
esta miserável situação humana e social do ambiente litúrgico do dia, que
avoca, por sua vez, o ambiente bíblico em cujo centro da Liturgia da Palavra do
dia ferial (quarta-feira da I semana da Quaresma) está a grande
cidade de Nínive e o profeta Jonas (vd Jn 3,1-10). A proclamação e a escuta da Palavra de Deus têm de produzir
efeitos. E, quando ela denuncia situações pecaminosas nos homens e nas
estruturas que eles implantaram, a Palavra postula a mudança, a conversão das
pessoas de iníquas em justas, a transformação das estruturas de fautoras do
pecado em propiciadoras da justiça.
O Papa lança a sua palavra homilética a partir do enunciado
de Santo Ireneu, no século II, de que “a glória de Deus é a vida do homem” –
uma asserção que hoje “continua a ressoar no coração da Igreja”. E vê na
perícopa bíblica evocada a explicitação deste enunciado, ao referir:
“A glória do
Pai é a vida dos seus filhos. Não há maior glória para um pai do que ver a
realização dos seus; não há maior satisfação do que vê-los avançar, vê-los
crescer e desenvolver-se. Assim o atesta a primeira Leitura que escutámos e nos
falava de Nínive.”
Daquela grande cidade diz o Pontífice que “se estava
autodestruindo em consequência da opressão e degradação, da violência e
injustiça”. Por isso, “tinha os dias contados, pois não era mais tolerável a
violência nela gerada”. Porém o Senhor, que nunca desiste dos homens, surge a
mover o coração do profeta Jonas. É o Pai que aparece a convidar e enviar em
missão o seu mensageiro. Jonas, que tinha resistido e recalcitrado (Jn caps. 1 e
2), acabou por ir: foi e ajudou-os “a
compreender que, com esta forma de comportar-se, regular-se, organizar-se, a
única coisa que estão a gerar é morte e destruição, sofrimento e opressão”. Deste
modo, “não há vida para ninguém, nem para o rei nem para o súbdito, nem para os
campos nem para o gado”.
E qual era o grande mal dos ninivitas? Era terem-se habituado
“de tal maneira à degradação, que perderam a sensibilidade perante o sofrimento”.
Era preciso dizer-lhes “que a injustiça se apoderou do seu olhar”. Por isso, Deus
envia o seu profeta para “pôr em evidência o que estava a acontecer” e “para
despertar um povo inebriado de si mesmo”.
Ora, segundo o Papa Francisco, esta é uma das expressões
do “mistério da misericórdia divina”. Esta misericórdia “rejeita sempre o mal,
tomando muito a sério o ser humano”, apela sempre “à bondade de cada pessoa,
mesmo que esteja adormecida, anestesiada”. Em vez da aniquilação, como muitas
vezes pretendemos ver ou queremos fazer, “aproxima-se de cada situação para a
transformar a partir de dentro”. Para tanto, “aproxima-se e convida à conversão”,
ao arrependimento, “a ver o dano que está a ser causado a todos os níveis”. Enfim,
“entra no mal para o transformar”. Esta é a misericórdia Deus: “o mistério de
Deus nosso Pai”, que “envia o seu Filho que penetrou no mal, Se fez pecado para
transformar o mal”.
Aquela cidade do pecado, ao invés do que hoje sucede
tantas vezes, ouviu a pregação de Jonas:
“O rei
ouviu, os habitantes da cidade reagiram e foi decretado o arrependimento. A
misericórdia de Deus entrou no coração, revelando e manifestando algo que é a
nossa certeza e a nossa esperança: há sempre a possibilidade de mudar, estamos
a tempo de reagir e transformar, modificar e alterar, converter aquilo que nos
está a destruir como povo, o que nos está a degradar como humanidade.”
É a misericórdia que leva as pessoas a acreditar na
recuperabilidade dos outros. Assim, “a misericórdia anima-nos a olhar o
presente e confiar naquilo que de são e bom está escondido em cada coração”. Assim,
“a misericórdia de Deus é o nosso escudo e a nossa fortaleza”.
Como Jonas, compete-nos ajudar a ver, a tomar
consciência. Depois, a misericórdia de Deus, assumida na vida dos homens, fará
o resto: o seu apelo encontrará homens e mulheres com a capacidade de
arrependimento, “capazes de chorar”, deplorando a injustiça, a degradação e a
opressão:
“São as lágrimas
que podem abrir o caminho à transformação; são as lágrimas que podem abrandar o
coração, são as lágrimas que podem purificar o olhar e ajudar a ver a espiral
de pecado em que muitas vezes se está enredado. São as lágrimas que conseguem
sensibilizar o olhar e a atitude endurecida, e sobretudo adormecida, perante o
sofrimento alheio. São as lágrimas que podem gerar uma rutura capaz de nos
abrir à conversão.”
Foi com as lágrimas do arrependimento que “Pedro,
depois de ter renegado Jesus, chorou e as lágrimas abriram-lhe o coração” e ele
obteve o perdão.
***
Crendo na força da misericórdia, o Papa assegura:
“Hoje esta
palavra ressoa vigorosamente no meio de nós; esta palavra é a voz que clama no
deserto e nos convida à conversão. Neste Ano da Misericórdia, quero implorar
convosco neste lugar a misericórdia divina, quero pedir convosco o dom das
lágrimas, o dom da conversão.”
Em consonância com este propósito, urge suplicar “ao
nosso Deus o dom da conversão, o dom das lágrimas” e “a graça de ter o coração
aberto, como os ninivitas, ao seu apelo no rosto sofredor de tantos homens e
mulheres”. A misericórdia não se deixa aprisionar, olha sempre para o outro como
olhou para nós. E são duas as palavras de ordem papais: “Não mais morte nem exploração!”; e “Há sempre tempo para mudar, há sempre uma via de saída e sempre há uma
oportunidade, é sempre tempo para implorar a misericórdia do Pai”.
Depois, Francisco resolve olhar para o mundo com o
olhar esperançoso de Deus:
“Hoje, como
sucedeu no tempo de Jonas, também apostamos na conversão; há sinais que se
tornam luz no caminho e anúncio de salvação. Conheço o trabalho de muitas
organizações da sociedade civil em favor dos direitos dos migrantes. Estou a
par também do trabalho generoso de muitas irmãs religiosas, de religiosos e
sacerdotes, de leigos votados ao acompanhamento e à defesa da vida.”
E faz um juízo valorativo destes obreiros da justiça:
“Prestam
ajuda na vanguarda, muitas vezes arriscando a própria vida. Com a sua vida, são
profetas de misericórdia, são o coração compreensivo e os pés da Igreja que acompanha,
que abre os braços e apoia.”
Saudando reconhecidamente este precioso “tempo de
conversão”, “tempo de salvação” e “tempo de misericórdia”, pede oração conjunta
de misericórdia e purificação:
“Por isso,
juntamente com o sofrimento de tantos rostos, digamos: Pela vossa imensa compaixão e misericórdia, Senhor, tende piedade de
nós (...), purificai-nos dos nossos pecados e criai em nós um coração puro, um
espírito novo (cf. Sl 51/50, 3.4.12).”
E aproveita o ensejo para saudar os grupos que
partilham desta celebração eucarística lá do outro lado:
“Daqui,
neste momento, desejo saudar também os nossos queridos irmãos e irmãs que nos
acompanham em simultâneo do outro lado da fronteira, especialmente aqueles que
estão congregados no Estádio da Universidade de El Paso (conhecido
como o Sun Bowl) sob a guia do seu bispo, D. Mark Seitz. Com a ajuda da
tecnologia, podemos rezar, cantar e celebrar, juntos, este amor misericordioso
que o Senhor nos dá e que nenhuma fronteira nos pode impedir de partilhar.
Obrigado, irmãos e irmãs de El Paso, por nos fazerdes sentir uma só
família e a mesma comunidade cristã.”
***
E, na saudação final ao povo mexicano, Francisco declarou que o México
é “uma surpresa”. Depois, agradeceu o facto de lhe terem “aberto as portas da vossa
vida, da vossa nação”. E, comentando um trecho do poema Un sol más vivo (in Antología poética, México 2014), de Octávio Paz, declarou:
“Ouso sugerir que aquilo que nos
decifra e traça o caminho é a presença misteriosa mas real de Deus na carne
concreta de todas as pessoas, especialmente dos mais pobres e necessitados do
México. A noite pode parecer-nos enorme e muito escura, mas […], no povo
mexicano, há tantas luzes que anunciam esperança; pude ver, em muitos dos seus
testemunhos, nos seus rostos, a presença de Deus que continua a caminhar nesta
terra guiando-os e sustentando a esperança; muitos homens e mulheres, com o seu
esforço de cada dia, tornam possível que esta sociedade mexicana não fique às
escuras.”
Evocando um
gesto especial que o comoveu, aproveitou para deixar uma boa recomendação:
“Quando passava, muitos homens e
mulheres ao longo das estradas levantavam os seus filhos, mostravam-mos: são o
futuro do México; cuidemos deles, amemo-los. Estas crianças são profetas do
amanhã, são sinal dum novo amanhecer.”
Finalmente,
entrega este povo à Gaudalupana:
“Que Maria, a Mãe de Guadalupe,
continue a visitar-vos, continue a caminhar por estas terras – sem Ela, não se
entende o México –, ajudando-vos a ser missionários e testemunhas de
misericórdia e reconciliação”.
***
Em baixo,
pode ler-se o trecho de Octávio Paz referenciado:
Sou homem: duro pouco e é enorme a
noite.
Mas olho para o alto: as estrelas
escrevem.
Sem entender, compreendo: também sou
escritura
e, neste mesmo instante, alguém me
está decifrando.
***
Bem pode ver-se como o discurso social e até político de Bergoglio fica
integrado na perspetiva bíblica e dela decorre como corolário necessário. Não é
discurso artificioso ou de oportunidade!
2016.02.21
– Louro de Carvalho
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