domingo, 21 de fevereiro de 2016

Não mais morte nem exploração!

No contexto da sua visita apostólica ao México, o Papa celebrou missa, a 17 de fevereiro, na Área da Feira de Ciudad Juárez, ali perto da fronteira com os estados Unidos da América, lugar onde mole enorme de migrantes e refugiados se juntam para entrar, só o conseguindo à base da exploração dos traficantes de seres humanos que tudo lhes prometem.
Diz Francisco, a este propósito, que fizeram uma trégua os traficantes para que o Pontífice pudesse estar em segurança e fazer ouvir a sua voz.
Foi questionado, no voo de regresso ao Vaticano, por  Maria Eugenia Jimenez, do “Milenio” sobre a existência de milhares de desaparecidos no México, sendo emblemático o caso dos 43 de Ayotzinapa. A jornalista interpelou-o porque alegadamente não se terá encontrado com os seus familiares e pediu-lhe uma mensagem para os familiares dos milhares de desaparecidos.
A isto veio a resposta papal sublinhando as contínuas referências “aos assassinatos, às mortes, à vida tomada por todos estes gangues do narcotráfico, dos traficantes de seres humanos”. Isto é, o problema foi apresentado, relevando as “chagas que o México está sofrendo”. Disse ainda ter havido “tentativas de receber alguns”. Porém, como “eram tantos grupos, mesmo opostos entre eles, com lutas internas”, preferiu dizê-lo na Missa de Juárez, onde se veem todos, tal como o referiu noutras ocasiões para destinatários diversos. Reconhecendo tratar-se de “uma situação difícil de entender”, sobretudo para quem é estrangeiro, sabe que “a sociedade mexicana é vítima de tudo isso: dos crimes, deste fazer desaparecer as pessoas, de descartar as pessoas. E, sendo “um discurso público”, isso pode ser facilmente verificado. Refere ser “uma dor muito grande” que traz consigo, “porque este povo não merece um drama como este”.
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Efetivamente, a homilia daquela celebração eucarística foi clara sobre esta problemática, sobretudo quando o Bispo de Roma assegura:
“Aqui em Ciudad Juarez, como noutras áreas fronteiriças, concentram-se milhares de migrantes da América Central e doutros países, sem esquecer tantos mexicanos que procuram também passar para o outro lado. Uma passagem, um caminho carregado de injustiças terríveis: escravizados, sequestrados, objeto de extorsão, muitos irmãos nossos acabam vítimas do tráfico humano.”
Relevando a gravidade da crise global que dilacera, de muitas maneiras, o coração de muitas pessoas, famílias e comunidades, declara:
“Não podemos negar a crise humanitária que, nos últimos anos, levou à migração de milhares de pessoas, por via ferroviária ou rodoviária ou mesmo a pé atravessando centenas de quilómetros de montanhas, desertos, caminhos inóspitos. Hoje, esta tragédia humana, que é a migração forçada, tornou-se um fenómeno global”.
Sendo uma crise mensurável “em números”, ela tem de ser medida também e sobretudo “por nomes, por histórias, por famílias” e pelas causas:
“São irmãos e irmãs que partem, forçados pela pobreza e a violência, pelo narcotráfico e pelo crime organizado. No meio de tantas lacunas legais, estende-se uma rede que apanha e destrói sempre os mais pobres. À pobreza que já sofrem, vem juntar-se o sofrimento de todas estas formas de violência.”
No meio de todos estes injustiçados, o Papa destaca, de modo especial, os jovens e as mulheres:
“Uma injustiça que se radicaliza ainda mais contra os jovens: como carne de canhão, eles veem-se perseguidos e ameaçados quando tentam sair da espiral de violência e do inferno das drogas. E que dizer de tantas mulheres a quem arrebataram injustamente a vida?”
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Porém, não se pode desmembrar o discurso papal sobre esta miserável situação humana e social do ambiente litúrgico do dia, que avoca, por sua vez, o ambiente bíblico em cujo centro da Liturgia da Palavra do dia ferial (quarta-feira da I semana da Quaresma) está a grande cidade de Nínive e o profeta Jonas (vd Jn 3,1-10). A proclamação e a escuta da Palavra de Deus têm de produzir efeitos. E, quando ela denuncia situações pecaminosas nos homens e nas estruturas que eles implantaram, a Palavra postula a mudança, a conversão das pessoas de iníquas em justas, a transformação das estruturas de fautoras do pecado em propiciadoras da justiça.
O Papa lança a sua palavra homilética a partir do enunciado de Santo Ireneu, no século II, de que “a glória de Deus é a vida do homem” – uma asserção que hoje “continua a ressoar no coração da Igreja”. E vê na perícopa bíblica evocada a explicitação deste enunciado, ao referir:
“A glória do Pai é a vida dos seus filhos. Não há maior glória para um pai do que ver a realização dos seus; não há maior satisfação do que vê-los avançar, vê-los crescer e desenvolver-se. Assim o atesta a primeira Leitura que escutámos e nos falava de Nínive.”
Daquela grande cidade diz o Pontífice que “se estava autodestruindo em consequência da opressão e degradação, da violência e injustiça”. Por isso, “tinha os dias contados, pois não era mais tolerável a violência nela gerada”. Porém o Senhor, que nunca desiste dos homens, surge a mover o coração do profeta Jonas. É o Pai que aparece a convidar e enviar em missão o seu mensageiro. Jonas, que tinha resistido e recalcitrado (Jn caps. 1 e 2), acabou por ir: foi e ajudou-os “a compreender que, com esta forma de comportar-se, regular-se, organizar-se, a única coisa que estão a gerar é morte e destruição, sofrimento e opressão”. Deste modo, “não há vida para ninguém, nem para o rei nem para o súbdito, nem para os campos nem para o gado”.
E qual era o grande mal dos ninivitas? Era terem-se habituado “de tal maneira à degradação, que perderam a sensibilidade perante o sofrimento”. Era preciso dizer-lhes “que a injustiça se apoderou do seu olhar”. Por isso, Deus envia o seu profeta para “pôr em evidência o que estava a acontecer” e “para despertar um povo inebriado de si mesmo”.
Ora, segundo o Papa Francisco, esta é uma das expressões do “mistério da misericórdia divina”. Esta misericórdia “rejeita sempre o mal, tomando muito a sério o ser humano”, apela sempre “à bondade de cada pessoa, mesmo que esteja adormecida, anestesiada”. Em vez da aniquilação, como muitas vezes pretendemos ver ou queremos fazer, “aproxima-se de cada situação para a transformar a partir de dentro”. Para tanto, “aproxima-se e convida à conversão”, ao arrependimento, “a ver o dano que está a ser causado a todos os níveis”. Enfim, “entra no mal para o transformar”. Esta é a misericórdia Deus: “o mistério de Deus nosso Pai”, que “envia o seu Filho que penetrou no mal, Se fez pecado para transformar o mal”.
Aquela cidade do pecado, ao invés do que hoje sucede tantas vezes, ouviu a pregação de Jonas:
“O rei ouviu, os habitantes da cidade reagiram e foi decretado o arrependimento. A misericórdia de Deus entrou no coração, revelando e manifestando algo que é a nossa certeza e a nossa esperança: há sempre a possibilidade de mudar, estamos a tempo de reagir e transformar, modificar e alterar, converter aquilo que nos está a destruir como povo, o que nos está a degradar como humanidade.”
É a misericórdia que leva as pessoas a acreditar na recuperabilidade dos outros. Assim, “a misericórdia anima-nos a olhar o presente e confiar naquilo que de são e bom está escondido em cada coração”. Assim, “a misericórdia de Deus é o nosso escudo e a nossa fortaleza”.
Como Jonas, compete-nos ajudar a ver, a tomar consciência. Depois, a misericórdia de Deus, assumida na vida dos homens, fará o resto: o seu apelo encontrará homens e mulheres com a capacidade de arrependimento, “capazes de chorar”, deplorando a injustiça, a degradação e a opressão:
“São as lágrimas que podem abrir o caminho à transformação; são as lágrimas que podem abrandar o coração, são as lágrimas que podem purificar o olhar e ajudar a ver a espiral de pecado em que muitas vezes se está enredado. São as lágrimas que conseguem sensibilizar o olhar e a atitude endurecida, e sobretudo adormecida, perante o sofrimento alheio. São as lágrimas que podem gerar uma rutura capaz de nos abrir à conversão.”
Foi com as lágrimas do arrependimento que “Pedro, depois de ter renegado Jesus, chorou e as lágrimas abriram-lhe o coração” e ele obteve o perdão.
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Crendo na força da misericórdia, o Papa assegura:
“Hoje esta palavra ressoa vigorosamente no meio de nós; esta palavra é a voz que clama no deserto e nos convida à conversão. Neste Ano da Misericórdia, quero implorar convosco neste lugar a misericórdia divina, quero pedir convosco o dom das lágrimas, o dom da conversão.”
Em consonância com este propósito, urge suplicar “ao nosso Deus o dom da conversão, o dom das lágrimas” e “a graça de ter o coração aberto, como os ninivitas, ao seu apelo no rosto sofredor de tantos homens e mulheres”. A misericórdia não se deixa aprisionar, olha sempre para o outro como olhou para nós. E são duas as palavras de ordem papais: “Não mais morte nem exploração!”; e “Há sempre tempo para mudar, há sempre uma via de saída e sempre há uma oportunidade, é sempre tempo para implorar a misericórdia do Pai”.
Depois, Francisco resolve olhar para o mundo com o olhar esperançoso de Deus:
“Hoje, como sucedeu no tempo de Jonas, também apostamos na conversão; há sinais que se tornam luz no caminho e anúncio de salvação. Conheço o trabalho de muitas organizações da sociedade civil em favor dos direitos dos migrantes. Estou a par também do trabalho generoso de muitas irmãs religiosas, de religiosos e sacerdotes, de leigos votados ao acompanhamento e à defesa da vida.”
E faz um juízo valorativo destes obreiros da justiça:
“Prestam ajuda na vanguarda, muitas vezes arriscando a própria vida. Com a sua vida, são profetas de misericórdia, são o coração compreensivo e os pés da Igreja que acompanha, que abre os braços e apoia.”
Saudando reconhecidamente este precioso “tempo de conversão”, “tempo de salvação” e “tempo de misericórdia”, pede oração conjunta de misericórdia e purificação:
“Por isso, juntamente com o sofrimento de tantos rostos, digamos: Pela vossa imensa compaixão e misericórdia, Senhor, tende piedade de nós (...), purificai-nos dos nossos pecados e criai em nós um coração puro, um espírito novo (cf. Sl 51/50, 3.4.12).”
E aproveita o ensejo para saudar os grupos que partilham desta celebração eucarística lá do outro lado:
“Daqui, neste momento, desejo saudar também os nossos queridos irmãos e irmãs que nos acompanham em simultâneo do outro lado da fronteira, especialmente aqueles que estão congregados no Estádio da Universidade de El Paso (conhecido como o Sun Bowl) sob a guia do seu bispo, D. Mark Seitz. Com a ajuda da tecnologia, podemos rezar, cantar e celebrar, juntos, este amor misericordioso que o Senhor nos dá e que nenhuma fronteira nos pode impedir de partilhar. Obrigado, irmãos e irmãs de El Paso, por nos fazerdes sentir uma só família e a mesma comunidade cristã.”
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E, na saudação final ao povo mexicano, Francisco declarou que o México é “uma surpresa”. Depois, agradeceu o facto de lhe terem “aberto as portas da vossa vida, da vossa nação”. E, comentando um trecho do poema Un sol más vivo (in Antología poética, México 2014), de Octávio Paz, declarou:
“Ouso sugerir que aquilo que nos decifra e traça o caminho é a presença misteriosa mas real de Deus na carne concreta de todas as pessoas, especialmente dos mais pobres e necessitados do México. A noite pode parecer-nos enorme e muito escura, mas […], no povo mexicano, há tantas luzes que anunciam esperança; pude ver, em muitos dos seus testemunhos, nos seus rostos, a presença de Deus que continua a caminhar nesta terra guiando-os e sustentando a esperança; muitos homens e mulheres, com o seu esforço de cada dia, tornam possível que esta sociedade mexicana não fique às escuras.”
Evocando um gesto especial que o comoveu, aproveitou para deixar uma boa recomendação:
“Quando passava, muitos homens e mulheres ao longo das estradas levantavam os seus filhos, mostravam-mos: são o futuro do México; cuidemos deles, amemo-los. Estas crianças são profetas do amanhã, são sinal dum novo amanhecer.”
Finalmente, entrega este povo à Gaudalupana:
“Que Maria, a Mãe de Guadalupe, continue a visitar-vos, continue a caminhar por estas terras – sem Ela, não se entende o México –, ajudando-vos a ser missionários e testemunhas de misericórdia e reconciliação”.
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Em baixo, pode ler-se o trecho de Octávio Paz referenciado:
Sou homem: duro pouco e é enorme a noite.
Mas olho para o alto: as estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo: também sou escritura
e, neste mesmo instante, alguém me está decifrando.
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Bem pode ver-se como o discurso social e até político de Bergoglio fica integrado na perspetiva bíblica e dela decorre como corolário necessário. Não é discurso artificioso ou de oportunidade!

2016.02.21 – Louro de Carvalho

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