segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Porfírio Silva e a União Europeia

Porfírio Silva, conselheiro e estratega de António Costa, responsável pelas relações internacionais do PS e coordenador do grupo Socialista na Comissão de Educação na Assembleia da República, considera, em entrevista ao jornal i, do passado dia 1 de fevereiro, que a UE (União Europeia) está a ser gerida pela direita, não aceitando alternativas, e denuncia o facto de eurofuncionários estarem a “envenenar” a comunicação social contra Portugal.
O estratega de Costa diz com todas as letras que “há responsáveis em Bruxelas que têm andado a chamar jornalistas para, em off, envenenarem a comunicação social contra Portugal, mostrando documentos que deviam ser reservados e dando pretensas explicações que são afinal falsidades”. E é peremptório ao sentenciar:
“Funcionários públicos europeus, pagos para servir o bem comum europeu, não deveriam deixar-se instrumentalizar, não deveriam deixar-se transformar em armas de arremesso da direita europeia”.
Sobre a direção política e estratégica da UE, adverte que se corre o risco de a União se converter numa espécie de “União Soviética sem KGB”.
Levou-me ao interesse pelo assunto um artigo de opinião que li no quinzenário Notícias de Castro Daire, da chancela de Hélio Lopes sob o título A Maravilha Europeia, que cita aquele socialista membro do Secretariado do PS e da sua Comissão Permanente. Este explicita que “a União Europeia, apesar de reconhecer a diversidade dos países, de ter várias instituições, de contar com várias forças políticas, acaba na prática a ser gerida por uma ideologia dominante que não aceita alternativas e mesmo por uma espécie de novo partido dominante”.
Porfírio Silva tem, neste aspeto, toda a razão, pois, quem manda na Europa é politicamente o PPE (Partido Popular Europeu), que concebe, dirige e controla os governos dos Estados-Membros, colocando-os sob o desígnio do poder financeiro sem rosto que dispõe de toda a liberdade de atuação desde que mantenha intactos os interesses das instituições financeiras alemãs, o que fará não à custa dos mais ricos (países e instituições financeiras), mas à custa dos países periféricos.
Assim, a Comissão Europeia, cujos elementos não são objeto de eleição direta, mas indicados pelos governos dos respetivos países, acaba por ditar o teor das decisões que o Conselho Europeu há de tomar nas suas sessões. Por outro lado, revestida de uma autoridade a que se arroga abusivamente, faz advertências, impõe veredictos (incluindo penalizações) e controla as opções dos governos dos Estados-Membros.
Para lá disto, o socialista crítico evidencia outro elemento perturbador conexo com a burocracia, fazendo mais uma vez o paralelo da UE com o antigo Estado soviético, onde a “questão dos direitos e dos deveres [acabava] por ser reduzida a um funcionamento humanístico”. Não raro a UE transforma discussões políticas em discussões técnicas e burocráticas (relevando a posição do funcionário que segue o dossiê em detrimento da posição do comissário), numa tentativa de ocultar o facto de a decisão estar já tomada e ser indiscutível.
E vêm hipocritamente, de vez em quando, os comissários e o presidente da Comissão dourar a pílula, fazendo uma espécie de mea culpa por desrespeito para com os países periféricos, ou afirmar que os diversos países têm o direito de escolher muito bem quem querem. Porém, na prática, as escolhas só são consideradas válidas, inquestionáveis e incondicionadas, se o tiverem sido feito à direita. Caso contrário, os escolhidos ou se submetem como bons alunos (caso de Sócrates ou Hollande) ou acabam por ser vilipendiados e sitiados, como foi o caso do Syriza, agora o de Costa e futuramente o de Sanchez. E mesmo os governantes de direita têm de comer e calar ou ir ainda mais além da Comissão, como foi o caso de Rajoy e de Passos.
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Quando interrogado se havia má vontade de Bruxelas contra o Orçamento do Estado português, sustentou que aqueles que foram recentemente criticados pelo Tribunal de Contas Europeu por terem sido “tão pródigos em previsões falhadas” e “pela forma como geriram os programas de ajustamento” nos países que foram sujeitos à intervenção externa, “não deveriam ser tão lestos a prejudicar a cooperação que devia ser leal entre Estados-Membros e instituições europeias”.
Também dá que pensar que o Orçamento do Estado dependa mais da aceitação da UE do que da discussão interna. A este respeito, as palavras do deputado são:
“O que nós não podemos é aceitar que sejam as próprias instituições europeias, às vezes os próprios serviços, a dar razão àqueles que dizem que há umas pessoas em Bruxelas que acham que as coisas têm de ser como elas pensam e não de acordo com as escolhas dos povos e com um cumprimento razoável das regras”.
Depois, sem o exprimir claramente, indicia a dualidade de critérios da Comissão Europeia, dando como exemplo a forma como foram tratados os processos dos dois bancos que tiveram de ser sujeitos a resolução bancária, um na XII legislatura, o novo Banco, e outro na XIII (a atual), o Banif, dizendo que não é aceitável que tenha havido orientações diferentes dos serviços europeus num caso e no outro.
Poderia o político ter dito – não sei porque o não terá feito – que a Comissão se conluiou com o XIX Governo em torno do período eleitoral no caso do Banif. É certo que fez avisos, mas contemporizou em deixar ultrapassar prazos. Por outro lado, não exigiu que o Novo Banco fosse vendido antes ou aquando da resolução – espera-se que o consultor Sérgio Monteiro o venda? – mas exigiu a venda do Banif ao Santander Totta, alegadamente por se tratar de um banco robusto, quando o que parece foi para obviar à necessidade de recapitalizar o Banco espanhol. Para tanto, havia que usar por experimentalismo opressivo para com um país pobre, o poder de antecipação do mecanismo da União Bancária em vigor de 1 de janeiro de 2016.
Ademais, não é aceitável que Bruxelas venha a impor metas orçamentais sem analisar a realidade dos respetivos países, bem como sem atentar nas reais causas da situação vivida por eles, e a dar indicações em concreto sobre os meios para as atingir, colaborando para que os mercados tenham sinais, por vezes desviantes das verdadeiras causas, de instabilidade e de risco de incumprimento.
Poderia o socialista ter dito que as medidas adicionais de última hora exigidas no âmbito do Eurogrupo foram quantificadas em cerca de centena e meia de milhões de euros, como poderia ter dito que é o dinheiro dos países periféricos que tem de restabelecer a saúde financeira dos bancos dos países do diretório europeu (leia-se: em especial, Alemanha e seu banco central).  
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A comparação com o antigo Estado Soviético pretende ser uma resposta à questão se há efetivamente um preconceito da UE contra governos de esquerda. Com efeito, em sua opinião, a UE corre o risco de se transformar numa URSS sem KGB, sem KGB apenas porque não existe entre nós tal aparelho de repressão. E explica:
“Na União Soviética tínhamos um Estado com uma Constituição que reconhecia direitos aos cidadãos e um certo número de instituições. Se as coisas fossem como estavam na Constituição e se as instituições funcionassem como estava previsto, havia condições para a existência de liberdade política e social.”
Ora, segundo ele – e com razão – as coisas não funcionavam em conformidade com a Constituição porque o partido único, eivado de uma ideologia totalitária, condicionava e “controlava todos os aspetos”, transformando “um sistema que podia ser pluralista num sistema dominado por uma única organização e um único ponto de vista”.  Também a UE, sob a capa da necessidade do cumprimento dos tratados (e seria bom, se fosse com racionalidade e não “custe o que custar” para alguns), manda às malvas as Constituições e os parlamentos nacionais e pressiona de todas as formas os governos. A este respeito, Porfírio Silva explicita:
“A direita europeia, organizada no PPE, acaba por controlar governos, acaba por ter uma força desmesurada na Comissão Europeia e também tem o seu peso no Parlamento Europeu, acaba por ter uma influência excessiva num certo tipo de serviços da Comissão Europeia”.
Ora, do meu ponto de vista, não há nem tem de haver qualquer tipo de estrutura do tipo do KGB, já que a Comissão e seus olharapos dispõem e controlam os governos pelo lado da pressão económica e financeira e deixa aos cidadãos a possibilidade da catarse de pensarem e dizerem o que quiserem, mas sem consequências. É o KGB virtual a funcionar ao contrário.
Depois, a UE sofre de uma outra coisa esquisita, tal como a URSS: a burocracia. A máquina administrativa, sem rosto de pessoas (quem dá as ordens é o Partido, o Comité, eles…), está por trás do funcionário que enfrenta o utente, o público, e o submete. Do lado da Europa a burocracia funciona perante os próprios governos. Assim, quando um governante quer estabelecer diálogo político com um comissário e este “faz descer a conversa para um diretor-geral”, o qual, por sua vez, a faz descer “para o funcionário que segue o dossiê”, a discussão política – que espelha a importância que têm as escolhas dos países e dos povos – fica reduzida a discussão técnico-burocrática, incompatível com o questionamento.          
Embora não sendo membro do Governo, Porfírio Silva, mesmo no papel de deputado, sente o funcionamento democrático da UE ameaçado pela “tentativa sistemática de transmitir sinais negativos quando um país muda de orientação”, sobretudo ao fazer uma opção de esquerda. A pretensa “ortodoxia de pensamento” impede “a necessária capacidade de compreensão para analisar a realidade tal como ela” é, e não de forma preconceituosa.
Quanto a mim, julgo que não se trata de incapacidade de compreensão, mas de intenção deliberada de intoxicar a opinião pública, criando o ambiente propício à manipulação e à concretização da via punitiva frente aos mais frágeis inoculando a ideia da inevitabilidade ou de terem estado a viver acima das suas possibilidades. Para as calendas gregas se remete a perspetiva mutualistas das responsabilidades, dos ganhos e das perdas, deixando de aliviar os serviços das dívidas soberanas, esquecendo a renegociação quanto a montantes, juros e maturidades. Para longe vai a mutualização e europeização das dívidas e dos mecanismos de proteção social, nomeadamente o subsídio europeu de desemprego.
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À questão de saber se a troika ainda manda, a propósito de a mesma ter vindo ao país fiscalizar as políticas de um governo que tenta inverter a via austeritária, o estratega do PS opina ser natural que os credores queiram saber como é que as coisa estão a correr”. Porém, contrapõe:
“O que não seria aceitável é que se voltasse a um clima em que de certo modo deixávamos de ter as instituições normais da União Europeia e passávamos a ter uma espécie de instituição de emergência que era a troika, como se a troika definisse a nossa conveniência comum no seio da Europa”.
No entanto, entende que nem tudo o que deveria ter sido feito nos anos do ajustamento o foi efetivamente e que houve coisas que nunca deviam ter sido feitas, porque “foram impostas na base de estudos insuficientes” ou porque foram más escolhas políticas. Estando a arrepiar-se caminho, é normal que uma equipa técnica venha trabalhar com as nossas equipas técnicas, mas não pode vir investida de poder de decisão política como se fosse um órgão de soberania.
Ainda sobre o acordo assinado entre o PS e o PSOE espanhol, com uma estratégia para exercer pressão na UE no sentido de uma alteração da rota de orientação política e face às dificuldades do partido homólogo em Espanha, referiu o acolhimento que o PS europeu fez ao documento.
Nesse documento, cujo objetivo é a criação de “um novo impulso para a convergência na Europa”, os socialistas concordam em fazer as reformas necessárias para melhorar a capacidade de os países responderem aos desafios presentes, nomeadamente no respeitante ao crescimento económico, ao melhor funcionamento do Estado e à sanidade das finanças públicas assente em “bons princípios económicos”. Porém, rejeitam as reformas ditas estruturais que dizem que a direita inventou como receita a aplicar a toda a gente, sobretudo aos países mais fragilizados.
Assim, não será solução a reforma que desregule “o mercado de trabalho”, que diminua “salários”. Ao invés, é necessário enfrentar e resolver o “défice de qualificações, conferir maior eficácia e eficiência ao Estado, fazer com que o Estado favoreça a sociedade e a economia, em vez de as obstaculizar.
Neste sentido, os socialistas querem que a UE reconheça este desígnio como uma necessidade de transformação estrutural e que apoie os diversos países. Querem que se permita aos países que identifiquem as suas reformas de progresso” e que não os obriguem a uma receita inventada alhures por alguém.
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Sendo assim, é de questionar: o que é que andaram a fazer os governos socialistas e socialdemocratas quanto seguraram o timão de muitos dos países europeus, provavelmente iludidos e iludindo com o mito da terceira via; onde estavam os partidos socialistas e socialdemocratas quando viram a inflexão da Europa à direita, talvez acreditando na sua reversibilidade; e que têm andado a fazer os partidos socialistas e socialdemocratas quando a União Europeia esgota os recursos dos países pobres até ao tutano e tem dificuldade em pôr na ordem alguns dos países grandes e/ou ricos.
Ainda temos os partidos socialistas e socialdemocratas? Ainda teremos Europa?  Ainda teremos Europa dos países, dos cidadãos, da solidariedade?  

2016.02.15 – Louro de Carvalho   

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