sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Austeridade e saúde

Quando o país se sentiu mergulhado na crise económica e financeira, no contexto do inevitável alinhamento com a conjuntura internacional, e depois que os decisores políticos enveredaram, sob a batuta europeia, pela via austeritária, os efeitos da crise, que se fez global, sentiram-se gravemente por todo o lado. A maior parte da população sofreu o empobrecimento enquanto uma fatia mínima dos cidadãos logrou ver na circunstância uma privilegiante oportunidade única de autoencastelamento num refastelado estatuto económico-social.
Alguns grupos económicos, com o auxílio do Estado, que alguns consideravam falido, cresceram. Veja-se o incremento dado ao ensino privado, mercê da transferência de verbas do setor público, à luz do princípio da livre escolha, ou o crescimento do setor privado da saúde mediante a celebração de acordos entre as unidades de saúde privada e os subsistemas de saúde – alguns públicos como a ADSE superavitária – a que se furtaram os hospitais públicos.
Inúmeras empresas faliram, o desemprego aumentou em dimensão colossal; o estigma da precariedade pairou sobre a maior parte da população ativa; centenas de milhares de trabalhadores emigraram; aumentou abissalmente o número de pensionistas (reformados, aposentados e jubilados) e as pensões sofreram graves reduções; e muitos milhares ficaram na dependência das instituições de beneficência para sobreviverem.
Desinvestiu-se na educação, na saúde, na segurança social. As prestações sociais (no desemprego, pensões, subsídios por doença, rendimento social de inserção) emagreceram em montantes e tempo.
Os efeitos da crise socioeconómica assumiram visibilidade nas escolas, nos supermercados, nas empresas e serviços, na rua, nas coletividades, nos bancos alimentares. Os bancos, embora sujeitos a testes de stresse e a operações de recapitalização, deixaram de fazer chegar dinheiro à economia e alguns tornaram-se vassalos de bancos maiores, sendo que outros pura e simplesmente se eclipsaram ou ficaram como um peso pesado para o Estado.
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Cedo a Comunicação Social deu conta da existência de um número significativo de pessoas, sobretudo as marcadas pela idade, doenças crónicas e penúria de recursos (nomeadamente pessoas contempladas por baixíssimas pensões de velhice de doença ou de desemprego) que se viam na necessidade de cortar na alimentação e/ou na medicação. É certo que os sucessivos governos fizeram um grande esforço na disciplina do medicamento, quer promovendo a produção e venda dos medicamentos genéricos quer determinando a prescrição médica por substância ativa e não pela designação comercial do produto, deixando ao doente a capacidade de escolha. No entanto, muitos viram o acesso à consulta e à medicação dificultado; e alguns morreram isolados.
Entretanto, surgiram dois estudos que pretenderam uma abordagem aprofundada e sistemática dos efeitos da austeridade na saúde.

Um foi dado a conhecer hoje, dia 25 de fevereiro, na RTP: três investigadores do Porto – Andreia Filipa Novo, Rui Alves Castro e Marcelo Sá Carvalho – deram corpo a um estudo, cuja publicação se aguarda, sobre o “impacto da austeridade na saúde”, tendo concluído que a instabilidade económica provocou, entre 2000 e 2010, mais fraturas no fémur, por via da osteoporose, referindo que a fratura do colo do fémur é uma das maiores causas da mortalidade.

Mais dizem que “a falta de acesso a medicamentos e a diminuição do poder de compra estão diretamente relacionados com o problema”.
Embora se trate de um estudo que ainda não abrange o tempo mais pernicioso da austeridade – de 2011 a 2015 – o mesmo releva para a reflexão dos cidadãos e como marco de referência para a tomada de decisão de quem democraticamente é obrigado a dirigir o rumo do país.
Diga-se que um estudo que abrangesse o período da aplicação da austeridade como receita plasmada num afolha de Excel provavelmente permitiria chegar a conclusões mais gravosas, dada a aplicação cega da receita “custe o que custar” ou ainda além da troika. Muito embora, durante esse período, se fizessem sentir os efeitos de algumas políticas setoriais, como a da disciplinação do medicamento ou a do envolvimento das autarquias e da chamada sociedade civil na solução de muitas das situações de carência, houve aspetos de notória dificuldade, como: situações de legionella, gripe A, hepatite C, entupimento das urgências, rarefação dos médicos no serviço nacional de saúde, precariedade no trabalho, isolamento crescente de membros das famílias.
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Também em 2013 a Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa publicou um trabalho sob o título Os efeitos da austeridade na saúde da população: evidência internacional e experiência portuguesa”, da autoria dum grupo de investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa: Carlos Matias Dias, Rita Carvalho da Fonseca, Teresa Contreiras e José Pereira Miguel. No seu resumo, os autores referem:
“A evidência disponível, em parte histórica, demonstra que a austeridade em tempos de crise económica tem efeitos predominantemente negativos sobre a saúde dos indivíduos e das populações que incluem aumentos na mortalidade, morbilidade e fatores de risco, assim como diminuição no acesso e utilização de cuidados de saúde. Alguns destes efeitos não são imediatos e podem fazer-se sentir a médio prazo. Numa perspetiva de saúde pública, a austeridade surge, assim, como parte do sistema complexo e ainda não totalmente conhecido que explica porque é que algumas pessoas e algumas sociedades são mais saudáveis do que outras. A austeridade influencia de forma complexa, os fatores de risco, protetores e promotores do estado de saúde, assim como as consequências dos problemas de saúde e a resposta organizada das sociedades, consubstanciada nos sistemas de saúde de cada país.”
O site do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge tem acessível um PowerPoint organizado pelos referidos investigadores. Este instrumento de apresentação do estudo releva que a “austeridade surge como um elemento fundamental a considerar no planeamento e organização das respostas da sociedade com vista à promoção, prevenção e melhoria do estado de saúde da população”.
Num primeiro momento, põem em evidência a dupla “austeridade e saúde pública, tentando definir o “Estado de Saúde da População” e elencando os “determinantes sociais da saúde”, bem como as “políticas adotadas na generalidade dos setores”, nomeadamente no da “saúde” e no respeitante a “todas as políticas públicas” que possam repercutir-se na saúde ou desta receber significativa influência.  
Depois, sob a asserção de que a “austeridade influencia de forma complexa e não completamente conhecida o estado de saúde”, abordam os “fatores de risco” e os “fatores de proteção e promoção”; as “consequências dos problemas de saúde existentes”; e a “capacidade de resposta dos sistemas de saúde”.
Salientam que “estudos com análise de dados individuais reportam essencialmente efeitos negativos”, ao passo que “estudos com análise de dados agregados apresentam efeitos negativos a curto e médio prazo”, reportando, no entanto, “alguns efeitos positivos a curto prazo”.
Dos “efeitos negativos a curto e médio prazo”, selecionam: a “alteração das condições de acesso a cuidados de saúde”; o aumento dos suicídios”; o “aumento de consumo de álcool e de substâncias ilícitas”; a “doença mental”; e os “surtos de doenças transmissíveis”.
Dos “efeitos positivos a curto prazo reportados em situações de crise anteriores”, destacam; a “redução da mortalidade por acidentes de viação”; a “alteração nos estilos de vida dos grandes fumadores e nos grandes obesos; e o “aumento da atividade física”. No entanto, sabemos que a obesidade infantil parece ter vindo para ficar.
Por outro lado, a política austeritária tem como efeito sistémico a “redução de despesa pública”, que se materializa na “redução de serviços e recursos financeiros, humanos e materiais”, na “introdução (reintrodução ou aumento) de taxas de acesso”, no “aumento do pagamento das despesas de saúde pelas famílias”, na “reorganização do setor prestador de cuidados”, na “renegociação da despesa com medicamentos e outros bens e serviços” e na “alteração do quadro normativo do setor da saúde”.
Depois, a “investigação sobre os fatores determinantes e de confundimento face aos efeitos das medidas de austeridade” sublinha dados como os da morbilidade e mortalidade, em franco aumento; a “investigação sobre os mecanismos de reposta individuais e da população (epidemiologia da resiliência)” releva, por um lado a “capacidade de autodefesa” de uma grande franja da população e a corrida a apoios e, por outro, a desistência de muitos; e a “monitorização dos efeitos a curto, médio e longo prazo em setores para além da saúde (da educação, da proteção social, produtivo,…)” evidencia a visibilidade que a crise projeta na escola e na autarquia, levando-as a um esforço suplementar, e nas empresas, que produzem menos e pagam menos, embora os custos de produção não baixem.
Em suma, o estudo conclui que os “efeitos da austeridade na saúde dos indivíduos e das populações parecem ser predominantemente negativos”, pelo que há “necessidade de desenvolver sistemas de registo e recolha de informação adequados” e de “monitorizar os efeitos das medidas de austeridade na saúde da população para além do período de austeridade”.
Por outro lado, há que estabelecer uma “investigação mais aprofundada sobre os mecanismos de resiliência dos indivíduos e das populações” e definir um conjunto de “intervenções planeadas, organizadas e fundamentadas em evidência que amenizem os efeitos negativos a curto e médio prazo em idênticas situações futuras”.
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Nada que não se esperasse, mas que robora a força das vozes que protestavam contra a aplicação da receita prescrita pela política austeritária sob a égide da inevitabilidade, mas sem ter em conta a realidade sobre que iam recaindo inexoravelmente as células da folha de Excel do receptivo monitor/inspetor.
Razão tinha o atual Presidente da Comissão Europeia quando declarou que as autoridades europeias feriram a dignidade das populações dos países sujeitos a programas de resgate ou o seu assessor ao clamar que tinham sido impostos tantos sacrifícios como muito mais dor que resultados.
Ademais, os dados recentes da Comunicação Social sobre depressões, tragédias de assassinatos e suicídios e casos de abandono bem mostram como é urgente inverter a situação.

2016.02.25 – Louro de Carvalho

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