segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Críticas de Costa e capacidade de comunicação do Governo

Evidentemente que não é bonito, muito menos agradável para os visados, vermos e ouvirmos o Chefe do Governo da República criticar o “prestigiado” BdP (Banco de Portugal) e seu competente governador, já que se trata de uma entidade independente que tem supostamente prestado tantos serviços à Pátria.  
Também quero dizer que o país está cheio de entidades independentes. Refiro a título de exemplo, além do BdP, a CMVM, a ANAC, a ANACOM, a ERC, o IAVE, a CRESAP, a UTAO e o CFP. É óbvio que a existência de entidades independentes para monitorizar a ação governativa e apoiar a fiscalização que a Assembleia da República deve fazer à atividade do Governo e à Administração Pública, bem como para servir de suporte técnico à ação política do Parlamento e do Governo e fazer de norte dos cidadãos. Todavia, estas entidades, em vez de usarem da palavra publicamente, a torto e a direito, deveriam ser mais eficazes e intervir junto de quem de direito.  
Não está bem que, a coberto da propalada independência, tais entidades se arroguem a liberalidade de intervirem publicamente ou contrariando pura e simplesmente o curso dos acontecimentos ou lançando alertas excessivos ou atuando fora de tempo (caso da ANAC a propósito da privatização da TAP). Quanto ao BdP, a independência do regulador, a quem a lei dá poderes discricionários sobre a Banca, são de relevar os danos a que o país foi sujeito (para contribuintes, acionistas, obrigacionistas ou clientes) pela falta de vigilância e supervisão do BPN, do BPP, pela forma como foi obviado aos múltiplos desastres do BES/GES e do Banif – o que constitui mau augúrio para o hipotético caso de um Montepio ou de um BPI entrarem em crise e reaviva as velhas questões atinentes à CGD e ao BCP.
É ainda de salientar que não foi António Costa quem inaugurou a crítica às entidades ditas independentes. Recorde-se, por exemplo, que Passos Coelho manifestou, em tempos idos, clara e pública indisposição relativamente ao INE, outra entidade independente.
No caso vertente, não há, na prática, motivos para censurar o Primeiro-Ministro, que supostamente interveio na defesa do interesse nacional, ao menos como o entende o Governo, mas exatamente o BdP e o seu governador cuja atuação tem visivelmente estado ao serviço do poder financeiro sob a batuta da Comissão Europeia. Diga-se que esta Comissão Europeia exigiu alteração da proposta orçamental por causa de uma verba de pouco mais de uma centena de milhões de euros, mas não teve pejo de urgir a entrega de cerca de 3 mil milhões de euros ao Santander Totta juntamente com o Banif que, pelos vistos, dava lucro em outubro passado.
Ademais, apesar de uma entidade ter um reconhecido estatuto de independência, real ou apenas convencional, nem por isso ela fica imune do escrutínio e da crítica, seja dos cidadãos seja dos órgãos de soberania.
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Também não faz parte da nossa tradição tecerem-se críticas aos órgãos de soberania, designadamente ao Presidente da República, à AR (Assembleia da República) e aos tribunais. O Presidente da República, enquanto supremo magistrado da República, costuma gozar de um prestígio que, ao menos durante o exercício do mandato, concita o respeito dos cidadãos e a contenção crítica da parte dos demais órgãos de soberania. Foi para Cavaco Silva que essa quebra de contenção se tornou mais patente por motivos mais que sobejamente conhecidos, sobretudo da parte dos cidadãos e de alguns deputados.
São usualmente criticados os deputados e os respetivos grupos parlamentares, mas não a AR em si nem o seu presidente, ao qual se reconhece facilmente o segundo lugar na hierarquia do Estado, nos termos constitucionais. Também a única pessoa para quem se criou exceção, e apenas da parte dos cidadãos, foi a ex-presidenta Assunção Esteves, também por motivos conhecidos. Os tribunais, com exceção do Tribunal Constitucional, em alguns casos, também são praticamente intocáveis, porque as suas decisões prevalecem, constitucionalmente, sobre as das demais autoridades e porque não há mecanismos de escrutínio da ação dos tribunais fora do sistema judicial. O órgão de soberania que “leva pancada” de todos é o Governo, sobretudo dos grupos sociais. No entanto, Presidente da República, Presidente da AR e membros dos tribunais dirigem-se ao Governo e aos seus membros com correção (os deputados nem sempre). Também a única exceção foi de Mota Amaral (como Presidente da AR) em relação à Ministra da Educação Maria do Carmo Félix Seabra.
É certo que é o Governo, como órgão executivo, que mais se expõe à crítica dado ser ele que tem a competência da condução da política do país e a superintendência na administração pública. Por conseguinte, é ao governo que incumbe cumprir e executar as leis da AR, propor à AR a maior parte ou as mais complexas das leis, legislar em matérias da sua competência em matéria de reserva relativa da AR mediante autorização da mesma, bem como fazer decretos regulamentares, portarias e despachos normativos e gerir através dos responsáveis as diversas pastas ministeriais. E, segundo a Constituição, o Governo depende politicamente da AR no atinente à rejeição ou não do programa, na aprovação de moções de censura e de moções de confiança – o que significa que, se a maioria dos deputado sem efetividade de funções votar em sentido contrário ao almejado pelo Governo, este fica demissionário.
Ora, muitas vezes, confunde-se a independência, separação e interdependência dos poderes exercidos pelos diferentes órgãos de soberania com a inibição do escrutínio e da crítica quer dos cidadãos quer de outros órgãos de soberania – postura que entra em rota de colisão com os pressupostos e as exigências da democracia. Então, no concernente aos tribunais, parece que se confunde mesmo a obrigação de acatar as suas sentenças e acórdãos transitado sem julgado com a inibição da crítica. Porém, é frequente ouvir os detentores dos demais órgãos de soberania – Presidente, AR e Governo – clamarem o estribilho “à justiça o que é da justiça, à política ao que é da política”; e os magistrados atirarem para os políticos (AR e Governo) a responsabilidade pelo devir do ordenamento jurídico, como se os magistrados não fossem também detentores do poder político nos termos da Constituição. É certo que não são eleitos, mas a eleição não é a única fonte de legitimidade; também o são, por exemplo, a nomeação, o contrato e o concurso.
Neste aspeto, a quebra da contenção começou com o Presidente da República nas considerações de ordem política que fez por ocasião da indigitação do Chefe do XX Governo, bem como no ato de posse do XXI Governo, o que está em funções, e ainda marcando o ato de tomada de posse deste para uma hora em que estava marcado sessão plenária da AR. Por seu turno, o Presidente da AR, logo após a eleição, mas antes de assumir a cadeira, proferiu umas palavras de remoque que apareciam resposta à postura presidencial. Todavia, o Primeiro-Ministro, ao menos nas palavras, tem mantido uma postura de correção com o Presidente da República e com a AR. E, neste âmbito, parece que as coisas serenaram.
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Por falarmos do Primeiro-Ministro e sabendo que uma das marcas da liderança (e o chefe do governo é necessariamente um líder) é a comunicação clara, coerente e sintonizada, temos de apontar ao Primeiro-Ministro e à sua equipa algum défice de comunicação. E é já défice que vem dos tempos da liderança do partido.
Não é plausível que, apesar da complexidade e melindre de algumas matérias, o líder tenha de vir esclarecer hoje o que ficou enovelado ontem. Não pode o líder utilizar uma linguagem desatualizada em assuntos de relevância pública, como, por exemplo, falar em exames da 4.ª classe. Depois, deve haver mais sintonia entre os conteúdos de comunicação do Primeiro-Ministro e dos seus ministros. Recordo dois ou três exemplos. Na AR, o Primeiro-Ministro comunicou a supressão das provas finais de Português e Matemática no quarto ano de escolaridade. Porém, ao ser questionado sobre a hipotética supressão das mesmas provas no 6.º ano e no 9.º, conforme projetos entrados na mesa da AR, remeteu os deputados para o Programa do Governo, onde a supressão destas não constava. Todavia, o Ministro da Educação, em princípios de janeiro, comunicou às escolas e à opinião pública, a reformulação da avaliação externa dos alunos no ensino básico, de que fazem parte, entre outras coisas, a abolição das provas finais no 4.º ano e no 6.º ano e a prova final de Inglês no 9.º ano – já para este ano letivo.  
No atinente à reversão da privatização da TAP, o Primeiro-Ministro sublinhou a importância do aeroporto Francisco Sá Carneiro, leia-se: sem supressão das rotas. Por seu turno, o Ministro das Infraestruturas explicou que o Governo não interferiria nas atribuições da comissão executiva, scilicet gestão corrente, em que estão incluídas a criação e supressão de rotas. Por outro lado, não foi revelada a abertura da participação do capital ao grupo chinês, a HNA, pelo lado da Azul, nem a entrega da antiga Portugália à White sob a designação de TAP express.
Também o Primeiro-Ministro garantia que a reposição do horário semanal de trabalho de 35 horas na administrarão pública seria feita a partir de 1 de julho, ao passo que o Ministro das Finanças afirmava que a reposição seria possível desde que não implicasse mais encargos para o Estado, o que significaria que a reposição não se aplicaria para já na generalidade dos serviços.
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Ora, este défice de comunicação torna-se perigoso em si mesmo e pelo que pode significar. Alguns já põem em dúvida a exatidão das declarações do Primeiro-Ministro sobre o caso do Banif e sobretudo sobre o Orçamento do Estado. E tal situação é dificilmente pensável num líder de franca experiência política e governativa e cuja equipa está sob os holofotes da crítica interna e externa.
Neste aspeto, Costa não parece muito diferente de Passos Coelho e terá que mudar.
Quanto ao escrutínio e crítica dos órgãos de soberania entre si e para com as entidades ditas independentes, tal postura será bem-vinda por força da democracia e pela exigência do sistema de contrapesos. Postula-se, no entanto, uma base de respeito. Algo de semelhante se diga do direito e do dever de crítica da parte dos cidadãos e das suas organizações.

2016.02.22 – Louro de Carvalho

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