Evidentemente
que não é bonito, muito menos agradável para os visados, vermos e ouvirmos o
Chefe do Governo da República criticar o “prestigiado” BdP (Banco
de Portugal) e seu
competente governador, já que se trata de uma entidade independente que tem
supostamente prestado tantos serviços à Pátria.
Também
quero dizer que o país está cheio de entidades independentes. Refiro a título
de exemplo, além do BdP, a CMVM, a ANAC, a ANACOM, a ERC, o IAVE, a CRESAP, a
UTAO e o CFP. É óbvio que a existência de entidades independentes para
monitorizar a ação governativa e apoiar a fiscalização que a Assembleia da
República deve fazer à atividade do Governo e à Administração Pública, bem como
para servir de suporte técnico à ação política do Parlamento e do Governo e
fazer de norte dos cidadãos. Todavia, estas entidades, em vez de usarem da
palavra publicamente, a torto e a direito, deveriam ser mais eficazes e
intervir junto de quem de direito.
Não
está bem que, a coberto da propalada independência, tais entidades se arroguem
a liberalidade de intervirem publicamente ou contrariando pura e simplesmente o
curso dos acontecimentos ou lançando alertas excessivos ou atuando fora de
tempo (caso
da ANAC a propósito da privatização da TAP).
Quanto ao BdP, a independência do regulador, a quem a lei dá poderes
discricionários sobre a Banca, são de relevar os danos a que o país foi sujeito
(para
contribuintes, acionistas, obrigacionistas ou clientes) pela falta de vigilância e
supervisão do BPN, do BPP, pela forma como foi obviado aos múltiplos desastres
do BES/GES e do Banif – o que constitui mau augúrio para o hipotético caso de
um Montepio ou de um BPI entrarem em crise e reaviva as velhas questões
atinentes à CGD e ao BCP.
É
ainda de salientar que não foi António Costa quem inaugurou a crítica às
entidades ditas independentes. Recorde-se, por exemplo, que Passos Coelho
manifestou, em tempos idos, clara e pública indisposição relativamente ao INE,
outra entidade independente.
No
caso vertente, não há, na prática, motivos para censurar o Primeiro-Ministro,
que supostamente interveio na defesa do interesse nacional, ao menos como o
entende o Governo, mas exatamente o BdP e o seu governador cuja atuação tem
visivelmente estado ao serviço do poder financeiro sob a batuta da Comissão
Europeia. Diga-se que esta Comissão Europeia exigiu alteração da proposta
orçamental por causa de uma verba de pouco mais de uma centena de milhões de
euros, mas não teve pejo de urgir a entrega de cerca de 3 mil milhões de euros
ao Santander Totta juntamente com o Banif que, pelos vistos, dava lucro em
outubro passado.
Ademais,
apesar de uma entidade ter um reconhecido estatuto de independência, real ou
apenas convencional, nem por isso ela fica imune do escrutínio e da crítica,
seja dos cidadãos seja dos órgãos de soberania.
***
Também
não faz parte da nossa tradição tecerem-se críticas aos órgãos de soberania,
designadamente ao Presidente da República, à AR (Assembleia da
República) e aos
tribunais. O Presidente da República, enquanto supremo magistrado da República,
costuma gozar de um prestígio que, ao menos durante o exercício do mandato,
concita o respeito dos cidadãos e a contenção crítica da parte dos demais órgãos
de soberania. Foi para Cavaco Silva que essa quebra de contenção se tornou mais
patente por motivos mais que sobejamente conhecidos, sobretudo da parte dos
cidadãos e de alguns deputados.
São
usualmente criticados os deputados e os respetivos grupos parlamentares, mas não
a AR em si nem o seu presidente, ao qual se reconhece facilmente o segundo
lugar na hierarquia do Estado, nos termos constitucionais. Também a única
pessoa para quem se criou exceção, e apenas da parte dos cidadãos, foi a
ex-presidenta Assunção Esteves, também por motivos conhecidos. Os tribunais,
com exceção do Tribunal Constitucional, em alguns casos, também são
praticamente intocáveis, porque as suas decisões prevalecem,
constitucionalmente, sobre as das demais autoridades e porque não há mecanismos
de escrutínio da ação dos tribunais fora do sistema judicial. O órgão de
soberania que “leva pancada” de todos é o Governo, sobretudo dos grupos
sociais. No entanto, Presidente da República, Presidente da AR e membros dos
tribunais dirigem-se ao Governo e aos seus membros com correção (os
deputados nem sempre).
Também a única exceção foi de Mota Amaral (como Presidente da AR) em relação à Ministra da
Educação Maria do Carmo Félix Seabra.
É
certo que é o Governo, como órgão executivo, que mais se expõe à crítica dado
ser ele que tem a competência da condução da política do país e a
superintendência na administração pública. Por conseguinte, é ao governo que
incumbe cumprir e executar as leis da AR, propor à AR a maior parte ou as mais
complexas das leis, legislar em matérias da sua competência em matéria de reserva
relativa da AR mediante autorização da mesma, bem como fazer decretos
regulamentares, portarias e despachos normativos e gerir através dos
responsáveis as diversas pastas ministeriais. E, segundo a Constituição, o
Governo depende politicamente da AR no atinente à rejeição ou não do programa,
na aprovação de moções de censura e de moções de confiança – o que significa
que, se a maioria dos deputado sem efetividade de funções votar em sentido
contrário ao almejado pelo Governo, este fica demissionário.
Ora,
muitas vezes, confunde-se a independência, separação e interdependência dos
poderes exercidos pelos diferentes órgãos de soberania com a inibição do
escrutínio e da crítica quer dos cidadãos quer de outros órgãos de soberania –
postura que entra em rota de colisão com os pressupostos e as exigências da
democracia. Então, no concernente aos tribunais, parece que se confunde mesmo a
obrigação de acatar as suas sentenças e acórdãos transitado sem julgado com a
inibição da crítica. Porém, é frequente ouvir os detentores dos demais órgãos
de soberania – Presidente, AR e Governo – clamarem o estribilho “à justiça o
que é da justiça, à política ao que é da política”; e os magistrados atirarem
para os políticos (AR e Governo) a responsabilidade pelo devir
do ordenamento jurídico, como se os magistrados não fossem também detentores do
poder político nos termos da Constituição. É certo que não são eleitos, mas a
eleição não é a única fonte de legitimidade; também o são, por exemplo, a
nomeação, o contrato e o concurso.
Neste
aspeto, a quebra da contenção começou com o Presidente da República nas
considerações de ordem política que fez por ocasião da indigitação do Chefe do
XX Governo, bem como no ato de posse do XXI Governo, o que está em funções, e
ainda marcando o ato de tomada de posse deste para uma hora em que estava
marcado sessão plenária da AR. Por seu turno, o Presidente da AR, logo após a
eleição, mas antes de assumir a cadeira, proferiu umas palavras de remoque que
apareciam resposta à postura presidencial. Todavia, o Primeiro-Ministro, ao
menos nas palavras, tem mantido uma postura de correção com o Presidente da
República e com a AR. E, neste âmbito, parece que as coisas serenaram.
***
Por
falarmos do Primeiro-Ministro e sabendo que uma das marcas da liderança (e
o chefe do governo é necessariamente um líder) é a comunicação clara, coerente e sintonizada,
temos de apontar ao Primeiro-Ministro e à sua equipa algum défice de
comunicação. E é já défice que vem dos tempos da liderança do partido.
Não
é plausível que, apesar da complexidade e melindre de algumas matérias, o líder
tenha de vir esclarecer hoje o que ficou enovelado ontem. Não pode o líder
utilizar uma linguagem desatualizada em assuntos de relevância pública, como,
por exemplo, falar em exames da 4.ª classe. Depois, deve haver mais sintonia
entre os conteúdos de comunicação do Primeiro-Ministro e dos seus ministros.
Recordo dois ou três exemplos. Na AR, o Primeiro-Ministro comunicou a supressão
das provas finais de Português e Matemática no quarto ano de escolaridade.
Porém, ao ser questionado sobre a hipotética supressão das mesmas provas no 6.º
ano e no 9.º, conforme projetos entrados na mesa da AR, remeteu os deputados
para o Programa do Governo, onde a supressão destas não constava. Todavia, o
Ministro da Educação, em princípios de janeiro, comunicou às escolas e à
opinião pública, a reformulação da avaliação externa dos alunos no ensino
básico, de que fazem parte, entre outras coisas, a abolição das provas finais
no 4.º ano e no 6.º ano e a prova final de Inglês no 9.º ano – já para este ano
letivo.
No
atinente à reversão da privatização da TAP, o Primeiro-Ministro sublinhou a importância
do aeroporto Francisco Sá Carneiro, leia-se: sem supressão das rotas. Por seu turno, o Ministro das
Infraestruturas explicou que o Governo não interferiria nas atribuições da
comissão executiva, scilicet gestão
corrente, em que estão incluídas a criação e supressão de rotas. Por outro
lado, não foi revelada a abertura da participação do capital ao grupo chinês, a
HNA, pelo lado da Azul, nem a entrega da antiga Portugália
à White sob a designação de TAP
express.
Também
o Primeiro-Ministro garantia que a reposição do horário semanal de trabalho de
35 horas na administrarão pública seria feita a partir de 1 de julho, ao passo
que o Ministro das Finanças afirmava que a reposição seria possível desde que
não implicasse mais encargos para o Estado, o que significaria que a reposição não
se aplicaria para já na generalidade dos serviços.
***
Ora,
este défice de comunicação torna-se perigoso em si mesmo e pelo que pode significar.
Alguns já põem em dúvida a exatidão das declarações do Primeiro-Ministro sobre
o caso do Banif e sobretudo sobre o Orçamento do Estado. E tal situação é dificilmente
pensável num líder de franca experiência política e governativa e cuja equipa está
sob os holofotes da crítica interna e externa.
Neste
aspeto, Costa não parece muito diferente de Passos Coelho e terá que mudar.
Quanto
ao escrutínio e crítica dos órgãos de soberania entre si e para com as
entidades ditas independentes, tal postura será bem-vinda por força da
democracia e pela exigência do sistema de contrapesos. Postula-se, no entanto,
uma base de respeito. Algo de semelhante se diga do direito e do dever de crítica
da parte dos cidadãos e das suas organizações.
2016.02.22 – Louro
de Carvalho
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