segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A relação entre comunicação e misericórdia

A comunicação em si mesma, seus lugares e instrumentos facultaram a muitas pessoas o alargamento dos seus horizontes. Isto é dom de Deus e grande responsabilidade dos homens. Quem o afirma é o Papa na sua mensagem para o 50.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, datada de 24 de Janeiro, memória litúrgica de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas e escritores católicos. 
Este santo é o padroeiro dos jornalistas e dos escritores, devido à sua intensa produção literária, e dos surdos, por ter tomado a guarda e o cuidado de um e criado uma linguagem de símbolos para se comunicar com ele. Bispo da cidade suíça de Genebra viveu no século XVI, na região da Saboia, atual fronteira franco-ítalo-suíça. Foi diretor espiritual de São Vicente de Paulo e de Santa Joana de Chantal. Com esta, criou uma ordem monástica, a Ordem da Visitação. Em homenagem ao santo, São João Bosco designou a organização que fundou no século XIX de Congregação dos Salesianos.
Este 50.º Dia Mundial das Comunicações Sociais celebrar-se-á no próximo dia 8 de maio em torno do tema “Comunicação e Misericórdia: um encontro fecundo”.
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Na sua mensagem, o Papa estabelece, a propósito do Ano Santo da Misericórdia, “a relação entre a comunicação e a misericórdia”. Esta relação parecerá estranha a quem circunscrever o ato da comunicação à mera troca de informação objetiva. Todavia, a comunicação é um ato verdadeiramente humano e a comunicação social, para a qual se dirige quer a mensagem papal quer o dia comemorativo, além da informação objetiva, tem outros múnus, como o da formação, o da promoção, o da publicidade e propaganda e o do entretenimento lúdico. Depois, há comunicar e comunicar. Desde o homem-estátua ao comunicador que galvaniza, cativa ou persuade, e do comunicador frio àquele que se emociona com o que sente, vê e ouve. E, como dizia, há dias, o Romano Pontífice, quem tem conhecimento duma boa notícia – venha ela de Deus ou do mundo dos homens – não pode deixar de a acolher, transmitir e proclamar com entusiasmo e alegria. Por isso é que não poucos se serviram dos diferentes meios de comunicação que o homem descobriu ao longo do tempo para exercer o seu apostolado cristão.
Também é próprio de Deus comunicar, comunicar internamente – Pai, Filho e Espírito Santo – e com os homens. Com efeito: 
“Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo.” (Heb 1,1-2).

E a Igreja como instrumento de salvação facilita a entrada do homem e dos povos na comunhão com aquele Deus uno e trino – o Deus comunidade, que Se ama e ama que ama comunicando e comunicando-Se.
Por seu turno, o Papa Francisco ensina que “a Igreja unida a Cristo, encarnação viva de Deus Misericordioso, é chamada a viver a misericórdia como traço caraterístico de todo o seu ser e agir”, de modo que “o que dizemos e o modo como o dizemos, cada palavra e cada gesto deveria poder expressar a compaixão, a ternura e o perdão de Deus para todos”.
Depois, fundamenta a comunicação no conceito de amor, entendido no sentido mais profundo:
“O amor, por sua natureza, é comunicação: leva a abrir-se, não se isolando. E, se o nosso coração e os nossos gestos forem animados pela caridade, pelo amor divino, a nossa comunicação será portadora da força de Deus.”

Por conseguinte, sendo nós filhos de Deus, devemos, em consonância com a condição de filhos que gera a fraternidade, “comunicar com todos sem exclusão”.
Nesse sentido, torna-se “próprio da linguagem e ações da Igreja transmitir misericórdia” – que é aquilo que melhor revela o rosto de Deus – “para tocar o coração das pessoas e sustentá-las na via do rumo à plenitude daquela vida que Jesus Cristo, enviado pelo Pai, veio trazer a todos”. É na comunicação misericordiosa que se revela a face materna da Igreja: acolhendo e irradiando o calor divino de rosto humano e o calor humano de génese divina, de modo que “Jesus seja conhecido e amado” e lhe sejam presentes as alegrias e os dramas dos homens: “aquele calor que dá substância às palavras da fé e acende, na pregação e no testemunho, a centelha que vivifica”.
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Comunicação e comunhão são dois termos de significado muito próximo. Remontam aos étimos latinos comunicatio, onis e communio, onis – respetivamente. O primeiro significa: ação de comunicar, ação de participar, comunicação, participação; O segundo significa: comunhão, participação mútua, associação, relação íntima, união, conformidade, comunidade, compartilha, comunhão sacramental. Ambos os vocábulos derivam do adjetivo communis, e (comum, que pertence a todos, compartilhado por vários, público, geral, benévolo, afável). Communis deriva de cum+munis, do adjetivo munis, e – a significar: obsequiador, serviçal, que cumpre o seu dever. O dicionário de Francisco Torrinha deriva “munis do antigo verbo meio – entornar, mudar, trocar. Porém, o dicionário de F.Gaffiot deriva-o de munus, eris (cargo, função, ofício, ocupação, serviço público, dádiva, brinde, presente, graça, favor, obséquio, benefício, funeral, espetáculo).
Cognatas de communicatio são: commune (nome), com o significado de “comunidade”, “povo”, “Estado”; communicator (nome), com o significado de “o que comunica”, “o que participa”; communicatorius (adjetivo), a significar “que se comunica”; communico (verbo) e communicor (verbo depoente), a significar “dividir”, “repartir”, “comunicar”, “reunir”, “conversar”, “ter relações com alguém”, “falar com alguém”.  
Cognatas de communio são: communitas (nome), a significar “relação comum”, “conformidade”, “comunidade”, “instinto social”, “sociabilidade”, “cortesia”, “afabilidade”, “condescendência”; e communiter (advérbio), com o significado de “em comum”, “juntamente”, “em geral”, “geralmente”, “em conjunto”. Communio (nome) relaciona-se com communio (verbo), que significa “fortificar”, “entrincheirar”; e com communitio (nome) a significar “fortificação”, “ação de fortificar”. E estes dois vocábulos derivam de munio (verbo), a significar “fortificar”, “proteger”, “defender” – o qual se relaciona com moenia (nome plural), a significar “muralhas”, “cidade fortificada”.
A defesa de pessoas, territórios e bens implica que as pessoas se juntem e partilhem alegrias, preocupações, bens e esforços; e quem está junto e em comunhão de alegrias, preocupações, bens e esforços sente-se mais protegido, defendido e fortificado – ou seja, em segurança.
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Por isso, Francisco refere que “a comunicação tem o poder de criar pontes, favorecer o encontro e a inclusão, assim enriquecendo a sociedade” e enaltece o esforço das pessoas que escolhem cuidadosamente palavras e gestos com que tentam “superar as incompreensões, curar a memória ferida e construir paz e harmonia”. E, já que “as palavras podem construir pontes entre as pessoas, as famílias, os grupos sociais, os povos”, as “palavras e ações hão de ser tais que nos ajudem a sair dos círculos viciosos de condenações e vinganças que mantêm prisioneiros os indivíduos e as nações, expressando-se através de mensagens de ódio”. Assim, a palavra do cristão tem de incrementar a comunhão “e, mesmo quando deve com firmeza condenar o mal”, nunca pode romper “o relacionamento e a comunicação”. Em conformidade com este pressuposto, o Papa apela a todas as pessoas de boa vontade para que redescubram “o poder que a misericórdia tem de sarar as relações dilaceradas e de restaurar a paz e a harmonia entre as famílias e nas comunidades”:
“Todos nós sabemos como velhas feridas e prolongados ressentimentos podem aprisionar as pessoas, impedindo-as de comunicar e reconciliar-se. E isto aplica-se também às relações entre os povos. Em todos estes casos, a misericórdia é capaz de implementar um novo modo de falar e dialogar.”

E, citando Shakespeare (O mercador de Veneza, Acto IV, Cena I), explicita:
A misericórdia não é uma obrigação. Desce do céu como o refrigério da chuva sobre a terra. É uma dupla bênção: abençoa quem a dá e quem a recebe.”

Estendendo o desejo de misericórdia à “linguagem da política e da diplomacia”, apela “sobretudo àqueles que têm responsabilidades institucionais, políticas e de formação da opinião pública”, para que estejam vigilantes sobre “o modo como se exprimem a respeito de quem pensa ou age de forma diferente e ainda de quem possa ter errado”.
Reconhecendo que “é fácil ceder à tentação” de explorar as situações de diferença e de erro e, assim, alimentar a desconfiança, o medo, o ódio, afirma a necessidade da “coragem para orientar as pessoas em direção a processos de reconciliação”, pois, “é precisamente tal audácia positiva e criativa que oferece verdadeiras soluções para conflitos antigos e a oportunidade de realizar uma paz duradoura”. E todo o discurso papal se estriba na força das bem-aventuranças evangélicas: “Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. (...) Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,7.9).
Francisco gostaria de que o modo de comunicar dos pastores em Igreja, enquanto anunciadores da Palavra e testemunhas da Verdade, nunca expressasse “o orgulho soberbo do triunfo sobre um inimigo”, nem humilhasse ou descartasse “os que a mentalidade do mundo considera perdedores e descartáveis”. E, porque a misericórdia ajuda “a mitigar as adversidades da vida” e dá “calor a quantos têm conhecido apenas a frieza do julgamento”, o estilo da comunicação dos pastores dever ser “capaz de superar a lógica que separa nitidamente os pecadores dos justos”:  
“Podemos e devemos julgar situações de pecado – violência, corrupção, exploração, etc. –, mas não podemos julgar as pessoas, porque só Deus pode ler profundamente no coração delas. É nosso dever admoestar quem erra, denunciando a maldade e a injustiça de comportamentos, para libertar as vítimas e levantar quem caiu. O Evangelho de João lembra-nos que a verdade [nos] tornará livres (Jo 8,32). Em última análise, esta verdade é o próprio Cristo, cuja misericórdia repassada de mansidão constitui a medida do nosso modo de anunciar a verdade e condenar a injustiça. É nosso principal dever afirmar a verdade com amor (cf Ef 4,15)”.

Mesmo sabendo que “só palavras pronunciadas com amor e acompanhadas de mansidão e misericórdia” tocam os “corações de pecadores”, alguns pensam que “a visão duma sociedade enraizada na misericórdia será injustificadamente idealista ou excessivamente indulgente”. Todos sabem que a dureza de gestos pretensamente moralistas aliena ainda mais “aqueles que queríamos levar à conversão e à liberdade, reforçando o seu sentido de negação e defesa”.
A este respeito, as nossas “primeiras experiências de relação no seio da família” constituem para nós uma lição eloquente. Diz o Papa:
“Os pais amavam-nos e apreciavam-nos mais pelo que somos do que pelas nossas capacidades e sucessos. Naturalmente os pais querem o melhor para os seus filhos, mas o seu amor nunca esteve condicionado à obtenção dos objetivos. A casa paterna é o lugar onde sempre se é bem-vindo” (cf Lc 15,11-32).

Por isso há que “pensar a sociedade humana não como um espaço onde estranhos competem e procuram prevalecer”, mas sobretudo como “uma casa ou uma família onde a porta está sempre aberta e se procuram aceitar uns aos outros”. Para tanto, Francisco afirma a fundamentalidade do “escutar” e ensina que o significa “comunicar” e “escutar”:
“Comunicar significa partilhar, e a partilha exige a escuta, o acolhimento. Escutar é muito mais do que ouvir. Ouvir diz respeito ao âmbito da informação; escutar, ao invés, refere-se ao âmbito da comunicação e requer a proximidade. A escuta permite-nos assumir a atitude justa, saindo da tranquila condição de espectadores, usuários, consumidores. Escutar significa também ser capaz de compartilhar questões e dúvidas, caminhar lado a lado, libertar-se de qualquer presunção de omnipotência e colocar humildemente as próprias capacidades e dons ao serviço do bem comum.”

Escutar é ouvir em atitude de disponibilidade e de forma ativa, acolher, ir ao encontro de quem pretende comunicar connosco. E comunicar não consiste em despejar informação. É, antes, um fornecer de informação, uma oferta de conhecimento e calor humano a outrem, é, em certa medida, oferecer a disponibilidade pessoal, profissional e social. Comunicar, mesmo que seja difundir ou divulgar, tem de significar empenhamento humano. Comunicar realiza-se quando aproxima, une, põe em contacto e comunhão pessoas, comunidades. Por isso, sem menosprezar a importância da comunicação unilateral ou monodirecional, há que privilegiar a comunicação bilateral e a comunicação interativa, que se realiza no diálogo, na participação. Porém, para a participação ser proveitosa e humanizante, é preciso equilibrar proporcionalmente escuta e uso da palavra na certeza de que, como apregoava Sólon, o homem tem dois ouvidos e só uma boca. No entanto, o ser humano não comunica somente com a boca, mas também com as mãos e mesmo com o corpo inteiro.
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O Papa acentua a dificuldade de escutar e emoldura o martírio da escuta:
“Às vezes é mais cómodo fingir-se de surdo. Escutar significa prestar atenção, ter desejo de compreender, dar valor, respeitar, guardar a palavra alheia. Na escuta, consuma-se uma espécie de martírio, um sacrifício de nós mesmos em que se renova o gesto sacro realizado por Moisés diante da sarça-ardente: descalçar as sandálias na terra santa do encontro com o outro que me fala (cf Ex 3,5). Saber escutar é uma graça imensa, é um dom que é preciso implorar e depois exercitar-se a praticá-lo.”

E, referindo que não é “a tecnologia que determina se a comunicação é autêntica ou não, mas o coração do homem e a sua capacidade de fazer bom uso dos meios ao seu dispor”, salienta o papel ambivalente dos atuais meios de comunicação:
“As redes sociais são capazes de favorecer as relações e promover o bem da sociedade, mas podem também levar a uma maior polarização e divisão entre pessoas e grupos. O ambiente digital é uma praça, um lugar de encontro, onde é possível acariciar ou ferir, realizar uma discussão proveitosa ou um linchamento moral.”

Neste âmbito, o Pontífice quer que o Ano Jubilar “nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor nos conhecermos e compreendermos, elimine todas as formas de fechamento e desprezo e expulse todas as formas de violência e discriminação” (MV, 23). Assegurando que em rede, se bem utilizada, “se constrói uma verdadeira cidadania” e se faz “crescer uma sociedade sadia e aberta à partilha”, adverte para o facto de o acesso às redes digitais implicar a responsabilidade pelo outro, que não se vê, mas que é real e tem a sua dignidade, a respeitar.  
Por isso, o Papa define o poder da comunicação como proximidade. E salienta a fecundidade do encontro entre a comunicação e a misericórdia, dada a sua capacidade de gerar a proximidade do cuidado, conforto, cura, acompanhamento e festa. É assim, que, na ótica papal, “num mundo dividido, fragmentado, polarizado, comunicar com misericórdia significa contribuir para a boa, livre e solidária proximidade entre os filhos de Deus e irmãos em humanidade” e para a celebração da comunicação como presença e festa.

2016.02.01 – Louro de Carvalho

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