quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Um grande ponto de contacto entre Francisco e Bento XVI: a caridade

O Pontifício Conselho Cor Unum promove um congresso de dois dias para celebrar e assinalar a atualidade da encíclica Deus Caritas Est, a primeira das três de Bento XVI.
Trata-se dum aniversário no Ano da Misericórdia que se harmoniza muito bem com o espírito jubilar: a celebração do 10.º aniversário da publicação da emblemática Deus Caritas Est.
O tema do predito congresso internacional, que se realiza nos dias 25 e 26 de fevereiro na Sala Nova do Sínodo, no Vaticano, é “A caridade nunca terá fim”. E vem no alinhamento do capítulo 13 da 1.ª epístola de São Paulo aos Coríntios (vd 1Cor 13,8.13).
O seu objetivo é estimular a reflexão sobre o tipo de pessoa que queremos promover e, portanto, o tipo de desenvolvimento a ser favorecido”, enfatizou Mons. Giampietro Dal Toso, secretário do Pontifício Conselho Cor Unum.
Por sua vez, o subsecretário do Cor Unum, Mons. Tejado Muñoz, recordou que a Igreja não é uma associação filantrópica e que as suas organizações de caridade estão sempre presentes nos locais concretos, inclusive em situações de emergência e desastres, com os seus operadores “sofrendo junto com as pessoas que sofrem”. Vive-se, desta maneira, o princípio de que o verdadeiro cristão “toca a carne de Cristo em cada um que sofre”.
A presença de dois palestrantes não cristãos, um judeu e um muçulmano, pretende ilustrar que “no coração de todas as religiões existe a atenção para com o outro”, sublinha Dal Toso, advertindo, porém, que a “caridade” na sua dimensão mais profunda e abrangente é um conceito neotestamentário. Por outro lado, a participação dos dois palestrantes no congresso tem como outro objetivo o de superar o preconceito segundo o qual “as religiões são uma fonte de conflito” em vez de “purificação”: o conflito surge, essencialmente, da “exploração da religião” – sustenta Dal Toso.
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O evento, incluído entre os eventos do Jubileu da Misericórdia, conta com a participação de personalidades eclesiásticas e leigas para examinar e aprofundar as perspetivas teológicas e pastorais da encíclica para o mundo atual, em particular em relação ao trabalho das pessoas envolvidas no e com o ministério da caridade da Igreja, mormente os representantes das conferências episcopais e organizações católicas internacionais de caridade.
Conforme relatado a Zenit – o mundo visto de Roma por Mons. Giampietro Dal Toso, já referido, os dois dias de estudo contam com o apoio do Santo Padre Francisco, que, em consonância com o espírito do congresso, tem insistido recorrentemente, desde a sua primeira homilia como Bispo de Roma, na asserção de que a Igreja católica não é uma “ONG piedosa”.
Nestes termos, Dal Toso asseverou que “precisamos de manter vivo o espírito da Deus Caritas Est, que é mais atual do que nunca” Por consequência, acrescentou, “o foco da nossa conferência não está na ‘memória’, mas na ‘perspetiva’, com uma ampla reflexão sobre a aplicação concreta da encíclica”.
Logo na abertura do congresso, no dia 25, às 9h45, hora de Roma, o cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, apresentará aos circunstantes uma interpretação teológica da encíclica. Palestrará também, da parte da manhã, Michel Thio, presidente da Confederação Internacional São Vicente de Paulo, bem como Marina Almeida Costa, diretora da Caritas de Cabo Verde, e Roy Moussalli, diretor executivo da Sociedade Síria de Desenvolvimento Social.
A sessão vespertina do mesmo dia 25 será aberta, como já foi referido, pelo rabino David Shlomo Rosen, diretor internacional de assuntos inter-religiosos do Comité Judaico Americano, e pelo muçulmano Said Ahmed Khan, professor da Universidade Estadual de Wayne, nos EUA. Falarão, respetivamente, da “Perspetiva judaica do amor bíblico” e da “Perspetiva muçulmana da misericórdia”. E, no final da tarde, o filósofo franco-tunisiano Fabrice Hadjadj, diretor do Instituto Philantropos, abordará a perspetiva antropológica da caridade e do seu valor para o homem moderno.
O segundo dia, 26 de fevereiro, será aberto pelo cardeal Luis Antonio Tagle, arcebispo de Manila e presidente da Caritas Internationalis, que se focará na importância da Deus Caritas Est para o serviço da caridade da Igreja hoje. Seguir-se-ão os testemunhos de Alejandro Marius, presidente da Asociación Civil Trabajo y Persona, da Venezuela, e Eduardo Almeida, representante do Banco Interamericano de Desenvolvimento, no Paraguai.
Ao meio-dia, os congressistas serão recebidos pelo Papa no Palácio Apostólico. De tarde, haverá espaço para as intervenções do Rev. Prof. Paolo Asolan, da Pontifícia Universidade Lateranense, e do Prof. Rainer Gehrig, da Universidade Católica de Murcia, Espanha.
A moderação das duas sessões da manhã do dia 26 será confiada a Martina Pastorelli, presidente da Catholic Voices, Itália; e as sessões da tarde serão moderadas pelo Prof. Luca Tuninetti, professor da Pontifícia Universidade Urbaniana.
Cada um dos dois dias de congresso se encerrará na igreja de Santa Maria della Pietà, no Cemitério Teutónico, na Cidade do Vaticano, com a celebração da Eucaristia: no dia 25 de fevereiro, a missa será presidida pelo cardeal Paul Josef Cordes, presidente emérito do Cor Unum; e, no dia 26, pelo cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, que também foi, de 2010 a 2014, presidente do Cor Unum.
O congresso será inteiramente transmitido pelo site do Pontifício Conselho Cor Unum: www.corunumjubilaeum.va.
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Não é de estranhar que se tenha selecionado a “caridade”, o amor, como ponto de contacto entre Bento e Francisco, que fala muito em “misericórdia”. São conceitos tão próximos que em muitas das traduções para língua portuguesa com facilidade se substituem um ao outro. E Francisco tem falado no amor de Deus imenso, terno, misericordioso e sem limites.
Também o padre Marko Ivan Rupnick expôs, durante a meditação que dirigiu a 22 de fevereiro na Sala Paulo VI, por ocasião da abertura do Jubileu da Cúria Romana e das Instituições da Santa Sé, o desígnio de uma Igreja misericordiosa, acolhedora, generosa e que não ceda às tentações “para-imperiais”. Segundo o padre Rupnick, a nossa fé é “o acolhimento de uma vida” e a tarefa da Igreja é a de “mostrar de qual graça e bondade somos destinatários”: mostrar ao mundo o que Deus tem feito por nós “através da humanidade”.
O teólogo jesuíta acusa uma tentação recorrente, que não só diz respeito à Cúria romana, mas a “todas as cúrias”, que é a de “adquirir um caráter para-imperial, como no passado”. Por outro lado, na sua ótica, seria um “escândalo” mostrar ao mundo um cristianismo vivido como “realidade individual”, dado que a Igreja, no seu “modo de se estruturar, de governar, de dirigir, de administrar”, deve expressar a comunhão e a inclusão. Por conseguinte, só será atrativa uma “Igreja bela”, que, em seus gestos e pregação, faça “emergir o Filho, e, ainda mais, o Pai”, para que o homem se torne “lugar da vida, como comunhão e misericórdia”. Assim, é necessário que surjam também na Cúria “pessoas livres, livres de si mesmas, que se ofereçam, disponíveis, generosas, que se abram”.
Depois, a presenta uma perspetiva notável da missão da Igreja: “cobrir a distância entre nós e o nosso homem contemporâneo, ferido como nós, dolorido como nós, provado como nós: quanto mais provados formos, como todos os homens, mais misericordiosos seremos” e mais capacitados para envolver “as pessoas num desejo de nova vida”. Contudo, sozinho, o homem não pode “cobrir a distância que separa o homem perdido, um pecador, morto, do Deus vivente”: só Deus pode fazer isso, manifestando a sua identidade “em relação a nós e à criação: a misericórdia”. E conclui:
“Se fluir em nós esta vida de Deus, o homem será capaz de produzir um fruto que permanece, será capaz de envolver o seu trabalho no amor que permanece para sempre, porque retorna ao Pai: o que o homem pode revelar é a sua divina humanidade em Cristo”.
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Já em 30 de agosto de 2015, o coração da homilia de Bento XVI – na Missa a que presidiu na igreja do Campo Santo Teutónico no Vaticano, para os membros do “Schülerkreis” (círculo de estudantes de Ratzinger), que se reuniram em Castel Gandolfo para refletir sobre ‘Como falar de Deus, hoje’, tema proposto pelo sacerdote e filósofo checo Tomás Halík – se sintetizava na seguinte formulação:
“Verdade, amor e bondade que vêm de Deus tornam o homem puro; e a verdade, amor e bondade encontram-se na Palavra, que liberta do ‘esquecimento’ de um mundo que já não pensa em Deus”.
Recordou que, há 3 anos, no encontro do Schülerkreis, fora lido o mesmo Evangelho de Marcos (vd Mc 7,1-8a.14-15.21-23) e que o cardeal Schönborn, que fez a homilia, perguntava:
“Mas não devemos ser purificados também externamente e não somente interiormente? O mal só vem de dentro ou também de fora?”.
O Papa Emérito, embora não se lembrasse da resposta, considerou a pergunta muito interessante e, por isso, centrou a sua meditação a partir da mesma, observando:
 “Para uma resposta adequada devemos ampliar a pergunta e levar em consideração não apenas esta passagem do Evangelho, mas o Evangelho na sua totalidade”.
Assegura que é necessário purificarmo-nos de todas as impurezas que estão fora, ou seja, é preciso fazer “a higiene exterior contra muitas doenças e epidemias que nos ameaçam”. Mas isso não é suficiente porque há também “a epidemia do coração”, do interior, que “leva à corrupção e ainda a outras sujeiras, que levam o homem a pensar apenas em si mesmo e não no bem”. A este respeito, é ter em conta o que disse Francisco ao jornal holandês a 28 de outubro: “Há sempre a ganância humana, a falta de solidariedade, o egoísmo que criam os pobres”.
Ora, Bento XVI acentua que é de crucial importância o ethos, ou seja, “a higiene interior”. E “o que faz um homem puro? Como resposta, o Papa Emérito socorre-se de outra passagem do Evangelho em que o Senhor diz: “Vós sois puros por causa da palavra que eu anunciei”. Portanto, o homem torna-se puro por meio da Palavra:
“Verdade, amor e bondade que vêm de Deus tornam o homem puro; e verdade, amor e bondade encontram-se na Palavra, que liberta do ‘esquecimento’ de um mundo que já não pensa em Deus”.
Ora, a Palavra é o próprio Jesus Cristo, que nós encontramos naqueles que O refletem, que nos mostram o rosto de Deus e que refletem a sua mansidão, a sua humildade de coração, a sua ternura, a sua bondade, a sua sinceridade”.
Depois, na oração dos fiéis, rezou-se pelo Papa Francisco, “para que o Senhor o ajude em seu trabalho, especialmente, no Ano Santo da Misericórdia”.
Após a missa, teve lugar nas salas adjacentes do Campo Santo Teutónico a cerimónia da inauguração da Sala Papa Bento – Joseph Ratzinger. E, no seu discurso de abertura, Dom Hans Peter Fischer, reitor do Colégio Teutónico, anunciou que em 18 de novembro ocorreria a cerimónia de abertura da biblioteca Joseph Ratzinger – Bento XVI, na Biblioteca do Colégio Teutónico e do Instituto Romano da Sociedade Görres, no Vaticano. O evento contaria com uma palestra do Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura sobre o tema “Da Bíblia à Biblioteca – Bento XVI e a Cultura da Palavra”.
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Cá está o reconhecimento do pensamento e ação de dois Pontífices diferentes, mas marcados pela comunhão de doutrina, de espiritualidade e de preocupação social numa perspetiva de integração, inclusão, racionalidade e mística. Revestidos do poder misericordioso ou amoroso de Deus, lutando pela purificação das epidemias do exterior e do interior, marcham ao encontro do homem de hoje, sobretudo do mais desorientado e/ou ferido.
O supradito congresso pretende, além do aprofundamento da notável encíclica, ser mais um evento significativo do diálogo inter-religioso testemunhando a preocupação das diversas religiões para com o homem que mais precisa.

2016.02.24 – Louro de Carvalho

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