domingo, 28 de fevereiro de 2016

Sobre a relação entre a Santa Sé a Fraternidade São Pio X

A última vez que se ouviu falar desta matéria foi quando o Papa Francisco optou por sancionar, durante o Ano da Misericórdia, a validade e liceidade da receção dos sacramentos da confissão e da unção dos enfermos administrados por sacerdotes lefebvrianos. No entanto, é de sublinhar que se trata de um novo passo para o difícil reconhecimento canónico da FSSPX (Fraternidade Sacerdotal de São Pio X). É óbvio que não faz muito sentido estar colocada permanentemente em cima da mesa a preocupação e o esforço em torno do ecumenismo e do diálogo inter-religioso e abrandar o esforço de aproximação entre a Igreja Católica oficial e uma organização católica quase cismática e sobretudo desalinhada do evento conciliar.
Ora, depois que Bento XVI levantou a excomunhão em 2009 aos bispos, o tema estava na penumbra até ao momento do gesto de abertura do Papa Francisco no contexto do Ano Santo.
Segundo os vaticanistas, tem dado bastante “pano para mangas”, nos últimos anos, a difícil e delicada reaproximação entre a FSSPX e a Igreja de Roma. O papa Bento XVI levantou a excomunhão em 2009, mas a posição dos membros da fraternidade fundada por Dom Marcel Lefebvre continua irregular. Os seus membros não aceitam o Novus Ordo da liturgia (nomeadamente o missal de Paulo VI onde veem heresias), o ecumenismo e a liberdade religiosa.
A este respeito, Mons. Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, criada em 1988 por João Paulo II, com o objetivo principal de iniciar o diálogo com os lefebvrianos, a fim de, algum dia, conseguir a sua plena reintegração, prestou declarações a Zenit – o mundo visto de Roma, a 26 de fevereiro pp, sobre a situação atual da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X.
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O levantamento da excomunhão dos bispos da FSSPX, em 2009, por Bento XVI, significa que “eles não estão mais sujeitos a esta grave punição eclesiástica”. No entanto, apesar desta medida a Fraternidade “ainda está numa posição irregular, porque não recebeu o reconhecimento canónico da Santa Sé”. E, enquanto não tiver “uma posição canónica na Igreja, os seus ministros não exercem de modo legítimo o ministério e a celebração dos sacramentos”. Em conformidade com a fórmula empregada pelo então cardeal Bergoglio em Buenos Aires e confirmada por Francisco à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, “os membros da FSSPX são católicos a caminho da plena comunhão com a Santa Sé”, comunhão que “acontecerá quando houver o reconhecimento canónico da Fraternidade”.
Ao longo destes sete anos, para promover a reaproximação da Fraternidade São Pio X, tem vindo a decorrer, desde o ano do levantamento da excomunhão dos bispos, uma série de reuniões de caráter doutrinal entre os peritos designados pela Congregação para a Doutrina da Fé, que está intimamente ligada à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei desde o motu proprio Unitatem Ecclesiae, de Bento XVI, de 2009, e os especialistas da FSSPX para discussão das principais questões doutrinais subjacentes à controvérsia com a Santa Sé, designadamente: a relação entre Tradição e Magistério, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, a liberdade religiosa e a reforma litúrgica, no contexto da doutrina do Vaticano II.
Tal discussão durou cerca de dois anos e tornou possível a clarificação das posições teológicas e a evidenciação dos pontos de convergência e de divergência.
A seguir, as conversas doutrinais continuaram com algumas iniciativas focadas no aprofundamento e na precisão das questões em discussão. Em simultâneo, mantiveram-se os contactos assíduos entre os superiores da Comissão Ecclesia Dei e o superior e outros membros da FSSPX, que têm favorecido o desenvolvimento dum clima de confiança e de respeito mútuo, que está na base do processo de reaproximação. Sente-se, pois, que “é preciso superar as desconfianças e endurecimentos que são compreensíveis depois de tantos anos de fratura, mas que podem ser gradualmente dissipados se a atitude recíproca mudar e se as divergências não forem consideradas como muros intransponíveis”, mas antes “como pontos de discussão que merecem ser aprofundados e desenvolvidos a fim de se chegar a um esclarecimento proveitoso para toda a Igreja”.
A fase atual, na ótica de Pozzo, está “orientada para se alcançar a desejada reconciliação”, sendo que “o gesto do Papa Francisco de conceder que os fiéis católicos recebam válida e licitamente dos bispos e padres da FSSPX os sacramentos da reconciliação e da unção dos enfermos durante o Ano Santo da Misericórdia” é o sinal inequívoco da vontade papal de “favorecer o caminho para o reconhecimento canónico pleno e estável”.
Persistem, no entanto, ainda obstáculos no caminho para a reconciliação final em dois níveis. A nível propriamente doutrinal, subsistem algumas diferenças sobre tópicos específicos do Concílio Vaticano II e do magistério pós-conciliar, relativos ao ecumenismo, à relação entre o cristianismo e as religiões do mundo, à liberdade religiosa especialmente na relação entre Igreja e Estado, bem como alguns aspetos da reforma litúrgica, sobretudo quando relacionados com o dogma. A nível da atitude mental e psicológica, é necessário ainda passar de “uma posição de confronto polémico e antagónico para uma posição de escuta e de respeito mútuo, de estima e de confiança, como deve ser entre membros do mesmo Corpo de Cristo, que é a Igreja”. Por conseguinte, é preciso um trabalho mútuo em ambos os níveis referidos. E a aproximação empreendida tem dado alguns frutos, especialmente para a mencionada “mudança de atitude de ambas as partes”, parecendo valer a pena “prosseguir” na linha do que se vem a realizar.
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O secretário da Ecclesia Dei aproveita o ensejo para alguns esclarecimentos. Assim, sobre o Concílio, é preciso distinguir entre a “mens” autêntica do Vaticano II, a sua “intentio docendi” que consta nos documentos oficiais, e o que se poderá chamar de “paraconcílio”, ou seja, o conjunto de orientações teológicas e atitudes práticas que acompanhou o curso do próprio concílio e que pretendeu cobrir-se com o seu nome, e que, na opinião pública, graças aos meios de comunicação, se sobrepôs, às vezes, ao verdadeiro pensamento do concílio. Nas discussões com a FSSPX, a oposição não é propriamente ao concílio (Lefebvre participou nele), mas ao dito “espírito do concílio”, que usa algumas expressões ou formulações dos seus documentos para abrir caminho a interpretações e posições que estão longe e que pretendem explorar o verdadeiro pensamento conciliar. No atinente à crítica lefebvriana sobre a liberdade religiosa, “a posição da FSSPX é caraterizada pela defesa da doutrina tradicional contra o laicismo agnóstico do Estado e contra o secularismo e relativismo ideológico” e não já “contra o direito da pessoa de não ser coagida nem impedida pelo Estado no exercício da profissão de fé religiosa”.
Ora estas são questões que podem ser aprofundadas e esclarecidas mesmo depois da plena reconciliação. O essencial é “encontrar a total convergência naquilo que é necessário para se estar em plena comunhão com a Sé Apostólica”: a comunhão “na integridade da profissão de fé católica, no vínculo dos sacramentos e na aceitação do Supremo Magistério da Igreja”. Trata-se de um magistério, que “não está acima da Palavra de Deus escrita e transmitida, mas que a serve” e, como tal, “é o intérprete autêntico também de textos precedentes do magistério, incluindo os do Vaticano II, à luz da perene Tradição, que progride na Igreja com a assistência do Espírito, mas não com novidades contrárias (o que significaria negar o dogma), mas “com uma compreensão melhor do depósito da fé, sempre na mesma doutrina, no mesmo sentido e na mesma sentença”.
Nestes termos, a convergência com a FSSPX é possível e necessária – o que não afeta a possibilidade e a legitimidade de se debaterem e explorarem outras questões específicas, que não dizem respeito a matéria de fé, mas à disciplina, a orientações pastorais e juízos prudenciais, não dogmáticos, acerca dos quais pode haver pontos de vista diferentes. Não ignoram nem esbatem as diferenças em alguns aspetos da vida pastoral da Igreja. Porém, está-se ciente de que no Concílio há documentos doutrinais cuja intenção é repropor verdades de fé já definidas ou verdades de doutrina católica (por exemplo, as constituições dogmáticas Dei Verbum e Lumen Gentium); e há documentos que pretendem sugerir caminhos ou diretrizes para a ação prática, para a vida pastoral como aplicação da doutrina (por exemplo, a declaração Nostra Aetate, o decreto Unitatis Redintegratio, a declaração Dignitatis Humanae). A adesão aos ensinamentos do Magistério varia de acordo com o grau de autoridade e com a categoria de verdade própria dos seus documentos. Não consta que a FSSPX negue doutrinas de fé ou verdades da doutrina católica ensinadas pelo magistério. As preocupações críticas têm a ver com declarações ou afirmações sobre o renovado e reforçado cuidado pastoral nas relações ecuménicas e com as demais religiões e algumas questões na relação entre a Igreja e a sociedade, a Igreja e o Estado.
É de precisar que, mesmo sobre a reforma litúrgica, Marcel Lefebvre, na carta que escreveu ao Papa João Paulo II, a 8 de março de 1980, declarou: “Quanto à missa do Novus Ordo, apesar de todas as reservas que se devem manter, eu nunca afirmei que ela seja inválida ou herética”. Assim, as reservas relativas ao rito da Novus Ordo, portanto, mesmo não devendo ser subestimadas, não se referem à validade da celebração do sacramento nem à reta fé católica.
Confessando que o diálogo com a FSSPX sempre continuou, Pozzo revela que foi decidido que ele continuasse de “forma menos oficial e formal, para dar espaço e tempo ao amadurecimento das relações em atitude de confiança e compreensão mútua, para fomentar um clima de relações mais adequado, onde também se possa inserir o momento da discussão teológica e doutrinal.” Por seu turno, Francisco, desde o início do seu pontificado, encorajou a Ecclesia Dei a prosseguir neste estilo de comunicação com a FSSPX. E o magnânimo gesto do Papa na circunstância do Ano da misericórdia ajudou a serenar ainda mais o estado das relações com a Fraternidade, mostrando que a Santa Sé traz no coração a reaproximação e a reconciliação, que precisarão também de um revestimento canónico.
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Oxalá que o Francisco promova o ganho de mais esta cartada em prol da unidade e da paz interna da Igreja, tão cara a Paulo VI, que rezou, em 13 de maio de 1967, em Fátima, por esta intenção, bem como pela paz universal.

2016.02.28 – Louro de Carvalho

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