A última vez
que se ouviu falar desta matéria foi quando o Papa Francisco optou por sancionar,
durante o Ano da Misericórdia, a validade e liceidade da receção dos sacramentos da
confissão e da unção dos enfermos administrados por sacerdotes lefebvrianos. No
entanto, é de sublinhar que se trata de um novo passo para o difícil reconhecimento
canónico da FSSPX (Fraternidade Sacerdotal de São Pio X). É óbvio que não faz muito sentido estar
colocada permanentemente em cima da mesa a preocupação e o esforço em torno do
ecumenismo e do diálogo inter-religioso e abrandar o esforço de aproximação entre
a Igreja Católica oficial e uma organização católica quase cismática e
sobretudo desalinhada do evento conciliar.
Ora, depois
que Bento XVI levantou a excomunhão em 2009 aos bispos, o tema estava na penumbra
até ao momento do gesto de abertura do Papa Francisco no contexto do Ano Santo.
Segundo os vaticanistas, tem dado bastante “pano para mangas”, nos
últimos anos, a difícil e delicada reaproximação entre a FSSPX e a Igreja de
Roma. O papa Bento XVI levantou a excomunhão em 2009, mas a posição dos membros
da fraternidade fundada por Dom Marcel Lefebvre continua irregular. Os seus membros
não aceitam o Novus Ordo da liturgia (nomeadamente o missal de
Paulo VI onde veem heresias), o ecumenismo e a liberdade religiosa.
A este respeito, Mons. Guido Pozzo, secretário
da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei,
criada em 1988 por João Paulo II, com o objetivo principal de iniciar o diálogo
com os lefebvrianos, a fim de, algum dia, conseguir a sua plena reintegração, prestou
declarações a Zenit – o mundo visto de Roma,
a 26 de fevereiro pp, sobre a situação atual da Fraternidade Sacerdotal de São
Pio X.
***
O levantamento
da excomunhão dos bispos da FSSPX, em 2009, por
Bento XVI, significa que “eles não estão mais sujeitos a esta grave
punição eclesiástica”. No entanto, apesar desta medida a Fraternidade “ainda
está numa posição irregular, porque não recebeu o reconhecimento canónico da
Santa Sé”. E, enquanto não tiver “uma posição canónica na Igreja, os seus
ministros não exercem de modo legítimo o ministério e a celebração dos
sacramentos”. Em conformidade com a fórmula empregada pelo então cardeal
Bergoglio em Buenos Aires e confirmada por Francisco à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, “os membros da FSSPX são
católicos a caminho da plena comunhão com a Santa Sé”, comunhão que “acontecerá
quando houver o reconhecimento canónico da Fraternidade”.
Ao longo destes
sete anos, para promover a reaproximação da Fraternidade São Pio X, tem vindo a decorrer, desde o ano do
levantamento da excomunhão dos bispos, uma série de reuniões de caráter doutrinal entre os peritos designados pela
Congregação para a Doutrina da Fé,
que está intimamente ligada à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei desde o motu
proprio Unitatem Ecclesiae, de
Bento XVI, de 2009, e os especialistas da FSSPX para discussão das principais
questões doutrinais subjacentes à controvérsia com a Santa Sé, designadamente:
a relação entre Tradição e Magistério, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso,
a liberdade religiosa e a reforma litúrgica, no contexto da doutrina do
Vaticano II.
Tal discussão durou cerca de dois anos e
tornou possível a clarificação das posições teológicas e a evidenciação dos
pontos de convergência e de divergência.
A seguir, as conversas doutrinais
continuaram com algumas iniciativas focadas no aprofundamento e na precisão das
questões em discussão. Em simultâneo, mantiveram-se os contactos assíduos entre
os superiores da Comissão Ecclesia Dei
e o superior e outros membros da FSSPX, que têm favorecido o desenvolvimento dum
clima de confiança e de respeito mútuo, que está na base do processo de
reaproximação. Sente-se, pois, que “é preciso superar as desconfianças e
endurecimentos que são compreensíveis depois de tantos anos de fratura, mas que
podem ser gradualmente dissipados se a atitude recíproca mudar e se as
divergências não forem consideradas como muros intransponíveis”, mas antes “como
pontos de discussão que merecem ser aprofundados e desenvolvidos a fim de se
chegar a um esclarecimento proveitoso para toda a Igreja”.
A fase atual, na ótica de Pozzo, está “orientada
para se alcançar a desejada reconciliação”, sendo que “o gesto do Papa
Francisco de conceder que os fiéis católicos recebam válida e licitamente dos
bispos e padres da FSSPX os sacramentos da reconciliação e da unção dos
enfermos durante o Ano Santo da Misericórdia” é o sinal inequívoco da vontade
papal de “favorecer o caminho para o reconhecimento canónico pleno e estável”.
Persistem, no entanto, ainda obstáculos no caminho para a reconciliação
final em dois níveis. A nível propriamente doutrinal, subsistem algumas
diferenças sobre tópicos específicos do Concílio Vaticano II e do magistério
pós-conciliar, relativos ao ecumenismo, à relação entre o cristianismo e as
religiões do mundo, à liberdade religiosa especialmente na relação entre Igreja
e Estado, bem como alguns aspetos da reforma litúrgica, sobretudo quando relacionados
com o dogma. A nível da atitude mental e psicológica, é necessário ainda passar
de “uma posição de confronto polémico e antagónico para uma posição de escuta e
de respeito mútuo, de estima e de confiança, como deve ser entre membros do
mesmo Corpo de Cristo, que é a Igreja”. Por conseguinte, é preciso um trabalho
mútuo em ambos os níveis referidos. E a aproximação empreendida tem dado alguns
frutos, especialmente para a mencionada “mudança de atitude de ambas as partes”,
parecendo valer a pena “prosseguir” na linha do que se vem a realizar.
***
O secretário da Ecclesia Dei aproveita o ensejo para alguns esclarecimentos. Assim,
sobre o Concílio, é preciso distinguir entre a “mens” autêntica do Vaticano II, a sua “intentio docendi” que consta nos documentos oficiais, e o que se
poderá chamar de “paraconcílio”, ou seja, o conjunto de orientações teológicas
e atitudes práticas que acompanhou o curso do próprio concílio e que pretendeu
cobrir-se com o seu nome, e que, na opinião pública, graças aos meios de comunicação,
se sobrepôs, às vezes, ao verdadeiro pensamento do concílio. Nas discussões com
a FSSPX, a oposição não é propriamente ao concílio (Lefebvre participou nele), mas ao dito “espírito do concílio”, que usa algumas expressões ou formulações
dos seus documentos para abrir caminho a interpretações e posições que estão
longe e que pretendem explorar o verdadeiro pensamento conciliar. No atinente à
crítica lefebvriana sobre a liberdade religiosa, “a posição da FSSPX é caraterizada
pela defesa da doutrina tradicional contra o laicismo agnóstico do Estado e
contra o secularismo e relativismo ideológico” e não já “contra o direito da
pessoa de não ser coagida nem impedida pelo Estado no exercício da profissão de
fé religiosa”.
Ora estas são questões que podem ser
aprofundadas e esclarecidas mesmo depois da plena reconciliação. O essencial é “encontrar
a total convergência naquilo que é necessário para se estar em plena comunhão
com a Sé Apostólica”: a comunhão “na integridade da profissão de fé católica,
no vínculo dos sacramentos e na aceitação do Supremo Magistério da Igreja”. Trata-se
de um magistério, que “não está acima da Palavra de Deus escrita e transmitida,
mas que a serve” e, como tal, “é o intérprete autêntico também de textos
precedentes do magistério, incluindo os do Vaticano II, à luz da perene
Tradição, que progride na Igreja com a assistência do Espírito, mas não com
novidades contrárias (o que significaria negar o dogma), mas “com uma compreensão melhor do
depósito da fé, sempre na mesma doutrina, no mesmo sentido e na mesma sentença”.
Nestes termos, a convergência com a FSSPX
é possível e necessária – o que não afeta a possibilidade e a legitimidade de
se debaterem e explorarem outras questões específicas, que não dizem respeito a
matéria de fé, mas à disciplina, a orientações pastorais e juízos prudenciais,
não dogmáticos, acerca dos quais pode haver pontos de vista diferentes. Não
ignoram nem esbatem as diferenças em alguns aspetos da vida pastoral da Igreja.
Porém, está-se ciente de que no Concílio há documentos doutrinais cuja intenção
é repropor verdades de fé já definidas ou verdades de doutrina católica (por exemplo, as constituições dogmáticas Dei Verbum e Lumen Gentium); e há documentos que pretendem sugerir
caminhos ou diretrizes para a ação prática, para a vida pastoral como aplicação
da doutrina (por exemplo, a declaração Nostra Aetate, o decreto Unitatis
Redintegratio, a declaração Dignitatis
Humanae…). A adesão aos ensinamentos do Magistério varia de acordo com o grau de
autoridade e com a categoria de verdade própria dos seus documentos. Não consta
que a FSSPX negue doutrinas de fé ou verdades da doutrina católica ensinadas
pelo magistério. As preocupações críticas têm a ver com declarações ou
afirmações sobre o renovado e reforçado cuidado pastoral nas relações
ecuménicas e com as demais religiões e algumas questões na relação entre a
Igreja e a sociedade, a Igreja e o Estado.
É de precisar que, mesmo sobre a reforma
litúrgica, Marcel Lefebvre, na carta que escreveu ao Papa João Paulo II, a 8 de
março de 1980, declarou: “Quanto à missa do Novus
Ordo, apesar de todas as reservas que se devem manter, eu nunca afirmei que
ela seja inválida ou herética”. Assim, as reservas relativas ao rito da Novus Ordo, portanto, mesmo não devendo
ser subestimadas, não se referem à validade da celebração do sacramento nem à
reta fé católica.
Confessando que o diálogo com a FSSPX
sempre continuou, Pozzo revela que foi decidido que ele continuasse de “forma
menos oficial e formal, para dar espaço e tempo ao amadurecimento das relações
em atitude de confiança e compreensão mútua, para fomentar um clima de relações
mais adequado, onde também se possa inserir o momento da discussão teológica e
doutrinal.” Por seu turno, Francisco, desde o início do seu pontificado, encorajou
a Ecclesia Dei a prosseguir neste
estilo de comunicação com a FSSPX. E o magnânimo gesto do Papa na circunstância
do Ano da misericórdia ajudou a serenar ainda mais o estado das relações com a
Fraternidade, mostrando que a Santa Sé traz no coração a reaproximação e a
reconciliação, que precisarão também de um revestimento canónico.
***
Oxalá
que o Francisco promova o ganho de mais esta cartada em prol da unidade e da paz
interna da Igreja, tão cara a Paulo VI, que rezou, em 13 de maio de 1967, em
Fátima, por esta intenção, bem como pela paz universal.
2016.02.28 –
Louro de Carvalho
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