A propósito da aprovação parlamentar da lei que
permite a adoção por casais do mesmo sexo, o BE (Bloco de Esquerda) lançou cartaz com a imagem de Jesus Cristo encimada pela
frase “Jesus também tinha 2 pais”. Com o cartaz, o BE coloca também outdoors com a palavra Igualdade
emoldurada pela representação gráfica dos diferentes tipos de famílias. Cartaz
e outdoors integram ainda a
frase “10.02.2016
Parlamento termina discriminação na lei da adoção”.
O material de propaganda teve o aval, embora não em
termos consensuais, dos órgãos do partido e, em especial da sua coordenadora.
Alguns dirigentes do BE dizem que a intenção não é polémica. Assim, para a deputada do BE Sandra Cunha – membro da
subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação da Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República –
não existe qualquer intenção “polémica” nem desejo de “afrontar a Igreja” com a
associação da imagem de Jesus à questão da adoção por pessoas do mesmo sexo.
Segundo a bloquista, “o objetivo é trazer visibilidade a este tipo de famílias
e a este tipo de realidades”. Ao invés, a eurodeputada também bloquista
Marisa Matias considerou que “foi um erro” o polémico cartaz do seu partido
assinalando a legalização da adoção gay, admitindo que “saiu ao lado da
intenção que se pretendia”.
O cartaz já foi criticado inclusivamente por ativistas
de primeira linha nas causas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais). Miguel Vale de Almeida, aliás ex-militante (e fundador) do Bloco de Esquerda, escreveu nas redes sociais:
“Não percebo
a razão de uma campanha para celebrar algo já conquistado (e com a Procriação
Medicamente Assistida ainda pendente). Também não percebo o recurso à religião,
que sempre se defendeu, e bem, ter de estar fora do debate.”
E acrescenta:
“Tenho uma
certa aversão ao esfregar coisas na cara quando se está (de algum modo, bem
sei) no poder – mesmo quando a condição 'normal' foi/é termos homofobia
esfregada na cara a toda a hora. Ou seja: não se percebe e está tudo errado em
vários planos – e, sim, incluindo o do respeito pelas convicções religiosas de
outrem por parte da política organizada.”
A frase do cartaz não é inédita, mas nunca tinha sido
propalada em Portugal. O BE resolveu celebrar a aprovação da adoção por casais
do mesmo sexo com o tal cartaz com aquela frase, mas parece que ninguém gostou
deste género de “humor”, obviamente por motivos diferentes. Bispos, padres,
movimentos católicos, homossexuais católicos, a ILGA e mesmo deputados bloquistas
consideram infeliz a campanha ou, pelo menos, um erro tático.
Anselmo Borges, sacerdote e professor universitário da
UC, reage à campanha do BE: “Mais do que
infeliz, é ridícula. Onde está a graça? A mim não me ofende e a Deus também
não, porque o ridículo só atinge quem o produz.”. Também o padre António
Vaz Pinto resume a atitude do partido de duas maneiras: referindo-se ao cartaz,
considera-o de “de mau gosto e inoportuno”; e, referindo-se à postura, sustenta
que “as pessoas não precisam de ser cristãs para não gostarem deste cartaz”,
que significa “uma falta de respeito para com as convicções dos outros”.
Por seu turno, Daniel Oliveira, ex-dirigente do BE,
declarou:
“Há algumas
décadas que se tenta tirar a religião do debate político sobre igualdade de
direitos. Deste ponto de vista, o cartaz, além de não acrescentar qualquer
argumento ao tema, é um péssimo serviço a esta causa.”
O cardeal-patriarca de Lisboa e
presidente da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) afirmou à agência Ecclesia que a utilização da frase
“Jesus também tinha dois pais” num cartaz sobre a adoção por casais do mesmo
sexo “falseia uma verdade”, é a “pior das mentiras” e “desqualifica quem a
propaga”. D. Manuel Clemente disse que Jesus sempre se referiu a Deus “como Seu
Pai”, tinha uma mãe, Maria, e um pai adotivo, na “terminologia atual”, que era
José, da descendência de David.
Antes do Presidente da CEP, já o padre Manuel
Barbosa, secretário e porta-voz da mesma, considerara que o cartaz “não se
enquadra num respeito mútuo” e criticara o “aproveitamento abusivo” da figura
de Cristo. E sintetiza a sua avaliação no segmento seguinte:
“Há um aproveitamento abusivo, sem sentido,
da figura de Jesus Cristo. É uma analogia que não faz qualquer sentido. É
abusiva e mesmo de mau gosto”.
Nas suas declarações à agência Ecclesia, o padre Barbosa sublinhou que a
família para a Igreja “é sempre constituída por um casal, homem e mulher”,
observando que “as convicções são diferentes” e que “não podemos dizer de outro
modo”. Defendendo o respeito pela liberdade de expressão, o sacerdote observou
que, neste caso, “não há o respeito mútuo” pelo outro, não só na Igreja mas também
por “outros cristãos que seguem Jesus nas suas vidas”. Sustentou que este
material de campanha se “enquadra naturalmente no respeito pela liberdade de
expressão mas não se enquadra num respeito mútuo que deveria existir porque a
liberdade implica sempre uma corresponsabilidade e uma relação também com os
valores essenciais da vida”.
O secretário da CEP assinala que está a “dar
importância” a este cartaz e slogan pela utilização da figura de Jesus porque
“há aspetos mais importantes, outras problemáticas” que Igreja e sociedade têm
de atender.
O jornal ‘Económico’ noticiou que na Internet já
circula uma petição pública da
iniciativa de jovens católicos a exigir pedido de desculpa por parte do
BE, porque, segundo eles, “o cartaz tem, de forma clara e inequívoca, o
propósito de ofender a comunidade católica portuguesa.”
Também a AJC (Associação de Juristas Católicos) considera o cartaz do
BE sobre a adoção por casais do mesmo sexo com a frase “Jesus também tinha dois
pais” uma “provocação gratuita” e desrespeitosa por conceções culturais
diferentes. Em comunicado, declara:
“A Associação dos Juristas Católicos
considera lamentável que um partido político com representação parlamentar na
Assembleia da República, onde os deputados representam todo o País, use este
meio, que constitui apenas uma provocação gratuita que traduz, no fundo, a
incapacidade do BE em respeitar conceções culturais, religiosas e sociais que
divirjam e contradigam a única que considera legítima”.
O mesmo documento sustenta:
“A democracia, para que assegure a coesão
social e uma convivência pacífica entre todos, mais do que o cumprimento da
lei, impõe o respeito por códigos de conduta próprios do estado civilizacional
em que nos encontramos”.
Para esta Associação, a iniciativa do BE é “de
total e acintoso desrespeito pelas crenças e pelos direitos fundamentais de
todos os cristãos”. Os juristas católicos afirmam que
“Em todas as sociedades desenvolvidas se
exige das instituições com responsabilidades democráticas o respeito pelas convicções
religiosas dos outros, tal como, num país livre e democrático, a liberdade
religiosa constitui um direito fundamental de todos e cada um dos cidadãos”.
E acrescentam:
“Sendo Verdadeiramente Homem e também
Verdadeiramente Deus, é ofensiva e não é legítima qualquer analogia com a
matéria objeto do debate relativo às uniões homossexuais e à adoção neste
contexto, que tanto a Revelação como a Tradição constante da Igreja Católica
tratam de forma inequívoca e coerente”.
Pedro Vaz Patto, da AJC e também residente da
CNJP (Comissão
Nacional Justiça e Paz) disse, em declarações à agência Ecclesia, que a instrumentalização “com propósitos políticos” da
figura de Jesus é “lamentável” e asseverou:
“Instrumentalizar com propósitos políticos
a figura de Jesus Cristo, ou qualquer figura ou símbolo sagrado para crentes de
qualquer religião, é sempre condenável. Mas ainda mais quando está em causa a
propaganda de uma lei que muitos cristãos consideram iníqua, por sobrepor ao
bem das crianças o interesse dos adultos”.
Vaz Patto esclareceu ainda:
“A adoção por uniões homossexuais não é uma
exigência do princípio da igualdade. Pelo contrário, representa um tratamento
desigual e injusto para com as crianças adotadas, deliberadamente privadas de
um pai e de uma mãe. Também Jesus Cristo, Deus feito homem, conheceu um pai e
uma mãe, como só os políticos do Bloco de Esquerda parecem ignorar”.
***
Como comentário, começo por dizer que em política não é
relevante que haja intenção ou não. O que é de apreciar é o facto político.
Toda a gente sabe que a Igreja Católica, aliás como outras
Igrejas Cristãs e outros cidadãos, é contra o casamento de pessoas do mesmo
sexo e contra a adoção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo (casadas ou a
viver em união de facto). Todavia,
esta perspetiva não se impõe; forma-se para ela de forma contínua, paciente e insistente.
E o BE sabe-o. Porém, este partido, em ascensão, conseguiu pôr muita gente a
falar dele. Oxalá que o tiro não lhe venha a sair pela culatra. Não é, pois despicienda
a postura daqueles bloquistas que têm este meio de campanha como um grande erro
tático e desnecessário. Primeiro, não é fácil aceitar que não tenha havido
intenção deliberada de agitar a opinião pública provavelmente com desrespeito por
quem, vencido pela lei, aceitou o veredicto parlamentar sem pestanejar e sem
fazer alarido por respeito aos órgãos de soberania e que agora teve o ensejo de
se exprimir abertamente. Depois,
embora a religião tenha consequências políticas e sociais e influencie a
discussão política, habituámo-nos a não a ver invocada na mesa das discussões,
sobretudo pelos partidos de feição mais laica. Ademais, os partidos políticos têm
ao seu dispor, e como base de discussão e intervenção políticas, os tratados e manuais
e de ciência política, Constituição da República Portuguesa e a Declaração
Universal dos Direitos do Homem e demais documentos afins. Importa saber o que
tais documentos dizem e como são lidos.
Como alguns o fizeram em relação ao Charlie Hebdo, é
preciso declarar que a liberdade de expressão é um valor a promover e
preservar, porque decorrente de um dos direitos e liberdades fundamentais. Não
obstante, deve ter em linha de conta outros valores inestimáveis, também eles
decorrentes de outros diretos e liberdades fundamentais, entre os quais se
conta a liberdade religiosa (ao nível da consciência, da profissão de fé, do culto privado
e público, do ensino da fé e da intervenção na política, sociedade e economia), que merece respeito e abstenção do achincalhamento.
Deus e os cristãos bem podem com os dislates que só
ficam com quem os profere ou arma. Por outro lado, não é consensual que a
questão da adoção de crianças por casais homossexuais decorra necessariamente do
princípio da igualdade, que respeita as naturais diferenças, nem sei se as
pessoas que invocam, por tudo e por nada, o dito “superior interesse da criança”
sabem efetivamente do que estão a falar ou se este é um conceito unívoco ou mesmo
se não se confunde tantas vezes com as maneiras de ver e com as pretensões dos adultos.
Quanto a Jesus de Nazaré, é preciso dizer que, aos
olhos dos seus coevos e segundo o que a História pode apurar, ele tinha os pais,
José e Maria, como as demais crianças. O que sabemos do Pai de Jesus Cristo, qui in caelis est, sabemo-lo pela Revelação,
secundada pela reflexão teológica que gera e robora a fé dos crentes e que
esclarece que José era apenas o pai “putativo” (como se dizia quando comecei a
estudar o catecismo) do
Nazareno ou o seu pai “adotivo”, segundo a nomenclatura corrente. Nesta perspetiva,
que só aceita quem é crente, em termos carnais, Jesus era unicamente filho de Maria,
a Virgem e protótipo da Igreja peregrina neste mundo.
E recordo do dito de Apeles: Ne sutor ultra crepidam! (Não vá o sapateiro remendão além da
chinela).
2016.02.27 – Louro
de Carvalho
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