sábado, 27 de fevereiro de 2016

Cartaz polémico do BE não era necessário

A propósito da aprovação parlamentar da lei que permite a adoção por casais do mesmo sexo, o BE (Bloco de Esquerda) lançou cartaz com a imagem de Jesus Cristo encimada pela frase “Jesus também tinha 2 pais”. Com o cartaz, o BE coloca também outdoors com a palavra Igualdade emoldurada pela representação gráfica dos diferentes tipos de famílias. Cartaz e outdoors integram ainda a frase 10.02.2016 Parlamento termina discriminação na lei da adoção.
O material de propaganda teve o aval, embora não em termos consensuais, dos órgãos do partido e, em especial da sua coordenadora. Alguns dirigentes do BE dizem que a intenção não é polémica. Assim, para a deputada do BE Sandra Cunha – membro da subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República – não existe qualquer intenção “polémica” nem desejo de “afrontar a Igreja” com a associação da imagem de Jesus à questão da adoção por pessoas do mesmo sexo. Segundo a bloquista, “o objetivo é trazer visibilidade a este tipo de famílias e a este tipo de realidades”. Ao invés, a eurodeputada também bloquista Marisa Matias considerou que “foi um erro” o polémico cartaz do seu partido assinalando a legalização da adoção gay, admitindo que “saiu ao lado da intenção que se pretendia”.
O cartaz já foi criticado inclusivamente por ativistas de primeira linha nas causas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais). Miguel Vale de Almeida, aliás ex-militante (e fundador) do Bloco de Esquerda, escreveu nas redes sociais:
“Não percebo a razão de uma campanha para celebrar algo já conquistado (e com a Procriação Medicamente Assistida ainda pendente). Também não percebo o recurso à religião, que sempre se defendeu, e bem, ter de estar fora do debate.”

E acrescenta:
“Tenho uma certa aversão ao esfregar coisas na cara quando se está (de algum modo, bem sei) no poder – mesmo quando a condição 'normal' foi/é termos homofobia esfregada na cara a toda a hora. Ou seja: não se percebe e está tudo errado em vários planos – e, sim, incluindo o do respeito pelas convicções religiosas de outrem por parte da política organizada.”

A frase do cartaz não é inédita, mas nunca tinha sido propalada em Portugal. O BE resolveu celebrar a aprovação da adoção por casais do mesmo sexo com o tal cartaz com aquela frase, mas parece que ninguém gostou deste género de “humor”, obviamente por motivos diferentes. Bispos, padres, movimentos católicos, homossexuais católicos, a ILGA e mesmo deputados bloquistas consideram infeliz a campanha ou, pelo menos, um erro tático.
Anselmo Borges, sacerdote e professor universitário da UC, reage à campanha do BE: “Mais do que infeliz, é ridícula. Onde está a graça? A mim não me ofende e a Deus também não, porque o ridículo só atinge quem o produz.”. Também o padre António Vaz Pinto resume a atitude do partido de duas maneiras: referindo-se ao cartaz, considera-o de “de mau gosto e inoportuno”; e, referindo-se à postura, sustenta que “as pessoas não precisam de ser cristãs para não gostarem deste cartaz”, que significa “uma falta de respeito para com as convicções dos outros”.
Por seu turno, Daniel Oliveira, ex-dirigente do BE, declarou:
“Há algumas décadas que se tenta tirar a religião do debate político sobre igualdade de direitos. Deste ponto de vista, o cartaz, além de não acrescentar qualquer argumento ao tema, é um péssimo serviço a esta causa.”

O cardeal-patriarca de Lisboa e presidente da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) afirmou à agência Ecclesia que a utilização da frase “Jesus também tinha dois pais” num cartaz sobre a adoção por casais do mesmo sexo “falseia uma verdade”, é a “pior das mentiras” e “desqualifica quem a propaga”. D. Manuel Clemente disse que Jesus sempre se referiu a Deus “como Seu Pai”, tinha uma mãe, Maria, e um pai adotivo, na “terminologia atual”, que era José, da descendência de David.
Antes do Presidente da CEP, já o padre Manuel Barbosa, secretário e porta-voz da mesma, considerara que o cartaz “não se enquadra num respeito mútuo” e criticara o “aproveitamento abusivo” da figura de Cristo. E sintetiza a sua avaliação no segmento seguinte:
“Há um aproveitamento abusivo, sem sentido, da figura de Jesus Cristo. É uma analogia que não faz qualquer sentido. É abusiva e mesmo de mau gosto”.

Nas suas declarações à agência Ecclesia, o padre Barbosa sublinhou que a família para a Igreja “é sempre constituída por um casal, homem e mulher”, observando que “as convicções são diferentes” e que “não podemos dizer de outro modo”. Defendendo o respeito pela liberdade de expressão, o sacerdote observou que, neste caso, “não há o respeito mútuo” pelo outro, não só na Igreja mas também por “outros cristãos que seguem Jesus nas suas vidas”. Sustentou que este material de campanha se “enquadra naturalmente no respeito pela liberdade de expressão mas não se enquadra num respeito mútuo que deveria existir porque a liberdade implica sempre uma corresponsabilidade e uma relação também com os valores essenciais da vida”.
O secretário da CEP assinala que está a “dar importância” a este cartaz e slogan pela utilização da figura de Jesus porque “há aspetos mais importantes, outras problemáticas” que Igreja e sociedade têm de atender.
O jornal ‘Económico’ noticiou que na Internet já circula uma petição pública da iniciativa de jovens católicos a exigir pedido de desculpa por parte do BE, porque, segundo eles, “o cartaz tem, de forma clara e inequívoca, o propósito de ofender a comunidade católica portuguesa.”
Também a AJC (Associação de Juristas Católicos) considera o cartaz do BE sobre a adoção por casais do mesmo sexo com a frase “Jesus também tinha dois pais” uma “provocação gratuita” e desrespeitosa por conceções culturais diferentes. Em comunicado, declara:
“A Associação dos Juristas Católicos considera lamentável que um partido político com representação parlamentar na Assembleia da República, onde os deputados representam todo o País, use este meio, que constitui apenas uma provocação gratuita que traduz, no fundo, a incapacidade do BE em respeitar conceções culturais, religiosas e sociais que divirjam e contradigam a única que considera legítima”.

O mesmo documento sustenta:
“A democracia, para que assegure a coesão social e uma convivência pacífica entre todos, mais do que o cumprimento da lei, impõe o respeito por códigos de conduta próprios do estado civilizacional em que nos encontramos”.

Para esta Associação, a iniciativa do BE é “de total e acintoso desrespeito pelas crenças e pelos direitos fundamentais de todos os cristãos”. Os juristas católicos afirmam que
“Em todas as sociedades desenvolvidas se exige das instituições com responsabilidades democráticas o respeito pelas convicções religiosas dos outros, tal como, num país livre e democrático, a liberdade religiosa constitui um direito fundamental de todos e cada um dos cidadãos”.

E acrescentam:
“Sendo Verdadeiramente Homem e também Verdadeiramente Deus, é ofensiva e não é legítima qualquer analogia com a matéria objeto do debate relativo às uniões homossexuais e à adoção neste contexto, que tanto a Revelação como a Tradição constante da Igreja Católica tratam de forma inequívoca e coerente”.

Pedro Vaz Patto, da AJC e também residente da CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz) disse, em declarações à agência Ecclesia, que a instrumentalização “com propósitos políticos” da figura de Jesus é “lamentável” e asseverou:
“Instrumentalizar com propósitos políticos a figura de Jesus Cristo, ou qualquer figura ou símbolo sagrado para crentes de qualquer religião, é sempre condenável. Mas ainda mais quando está em causa a propaganda de uma lei que muitos cristãos consideram iníqua, por sobrepor ao bem das crianças o interesse dos adultos”.

Vaz Patto esclareceu ainda:
“A adoção por uniões homossexuais não é uma exigência do princípio da igualdade. Pelo contrário, representa um tratamento desigual e injusto para com as crianças adotadas, deliberadamente privadas de um pai e de uma mãe. Também Jesus Cristo, Deus feito homem, conheceu um pai e uma mãe, como só os políticos do Bloco de Esquerda parecem ignorar”.
***
Como comentário, começo por dizer que em política não é relevante que haja intenção ou não. O que é de apreciar é o facto político.
Toda a gente sabe que a Igreja Católica, aliás como outras Igrejas Cristãs e outros cidadãos, é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo e contra a adoção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo (casadas ou a viver em união de facto). Todavia, esta perspetiva não se impõe; forma-se para ela de forma contínua, paciente e insistente. E o BE sabe-o. Porém, este partido, em ascensão, conseguiu pôr muita gente a falar dele. Oxalá que o tiro não lhe venha a sair pela culatra. Não é, pois despicienda a postura daqueles bloquistas que têm este meio de campanha como um grande erro tático e desnecessário. Primeiro, não é fácil aceitar que não tenha havido intenção deliberada de agitar a opinião pública provavelmente com desrespeito por quem, vencido pela lei, aceitou o veredicto parlamentar sem pestanejar e sem fazer alarido por respeito aos órgãos de soberania e que agora teve o ensejo de se exprimir abertamente. Depois, embora a religião tenha consequências políticas e sociais e influencie a discussão política, habituámo-nos a não a ver invocada na mesa das discussões, sobretudo pelos partidos de feição mais laica. Ademais, os partidos políticos têm ao seu dispor, e como base de discussão e intervenção políticas, os tratados e manuais e de ciência política, Constituição da República Portuguesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e demais documentos afins. Importa saber o que tais documentos dizem e como são lidos.
Como alguns o fizeram em relação ao Charlie Hebdo, é preciso declarar que a liberdade de expressão é um valor a promover e preservar, porque decorrente de um dos direitos e liberdades fundamentais. Não obstante, deve ter em linha de conta outros valores inestimáveis, também eles decorrentes de outros diretos e liberdades fundamentais, entre os quais se conta a liberdade religiosa (ao nível da consciência, da profissão de fé, do culto privado e público, do ensino da fé e da intervenção na política, sociedade e economia), que merece respeito e abstenção do achincalhamento.   
Deus e os cristãos bem podem com os dislates que só ficam com quem os profere ou arma. Por outro lado, não é consensual que a questão da adoção de crianças por casais homossexuais decorra necessariamente do princípio da igualdade, que respeita as naturais diferenças, nem sei se as pessoas que invocam, por tudo e por nada, o dito “superior interesse da criança” sabem efetivamente do que estão a falar ou se este é um conceito unívoco ou mesmo se não se confunde tantas vezes com as maneiras de ver e com as pretensões dos adultos.
Quanto a Jesus de Nazaré, é preciso dizer que, aos olhos dos seus coevos e segundo o que a História pode apurar, ele tinha os pais, José e Maria, como as demais crianças. O que sabemos do Pai de Jesus Cristo, qui in caelis est, sabemo-lo pela Revelação, secundada pela reflexão teológica que gera e robora a fé dos crentes e que esclarece que José era apenas o pai “putativo” (como se dizia quando comecei a estudar o catecismo) do Nazareno ou o seu pai “adotivo”, segundo a nomenclatura corrente. Nesta perspetiva, que só aceita quem é crente, em termos carnais, Jesus era unicamente filho de Maria, a Virgem e protótipo da Igreja peregrina neste mundo.
E recordo do dito de Apeles: Ne sutor ultra crepidam! (Não vá o sapateiro remendão além da chinela).

2016.02.27 – Louro de Carvalho

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