Passou, a 28
de janeiro, o centenário do nascimento de Vergílio António Ferreira e, a 1 de
março, ocorrerá o 20.º aniversário do seu passamento. Com efeito, o
professor-escritor nasceu na freguesia de Melo, concelho de Gouveia, distrito
da Guarda, a 28 de janeiro de 1916, e faleceu em Lisboa, a 1 de março de 1996.
Tinha vários hobbies: pintura, futebol e xadrez.
A neve, que
viria a ser um dos elementos marcantes do imaginário romanesco vergiliano em
contraponto com a vida citadina, é o cenário fundamental da infância e
adolescência, passadas nas abas da Serra da Estrela – cenário que o escritor
nunca esqueceu.
Embora professor
de profissão (podem
ver-se referências à profissão docente em
Manhã Submersa e em Aparição), foi como escritor que Ferreira mais
se distinguiu. E continua atualmente associado à Literatura, ao menos pela instituição do Prémio Vergílio Ferreira, aquele que, em
1992, foi galardoado com o Prémio Camões.
A sua vasta e
diversificada obra, geralmente dividida em ficção (romance e conto), ensaio e diário, costuma ser
distribuída por dois períodos literários: o neorrealismo e o existencialismo. Considera-se
que foi com A Sibila (1953), de Agustina Bessa-Luís, e Aparição (1959), de Vergílio Ferreira, que se
fundou o romance contemporâneo. A Sibila
integrou o programa de Literatura Portuguesa no 4.º curso do 12.º ano, quando
este ano da escolaridade era um apêndice ao curso complementar do ensino
secundário (subsequente
ao 11.º ano e prévio ao ingresso no ensino superior); Aparição integrava o programa de Português do 12.º ano, da reforma
de Roberto Carneiro, em alternativa a Memorial
do Convento, até que David Justino pura e simplesmente baniu o romance de
Vergílio Ferreira do programa de Português do ensino secundário.
***
Na
vida do professor do Liceu, licenciado em Filologia Clássica pela Universidade
de Coimbra, em 1940, destacam-se dois momentos fundamentais: a estada em Évora
(1945-1958); e a vinda para Lisboa (1959), onde exerceu a docência no
Liceu Camões até à sua aposentação.
Foi
na década de quarenta do século XX que Ferreira iniciou a sua atividade
literária. Seduzido pela força do neorrealismo, acabou por sofrer uma sensível
mudança que o tornou marginal ao marxismo e o desviou do catolicismo,
inserindo-o no existencialismo. Considera-se que Mudança (1949) é a obra
que marca a transição entre estes dois períodos de fértil produção literária e
filosófica, embora já em 1946, com Vagão
J, tivesse ensaiado uma alteração de percurso, mas sem consequências.
Na
verdade, o pano de fundo vivencial do existencialismo que emoldura e enforma Aparição é já patente em obras escritas
antes de Aparição, embora publicadas
depois desta. Assim, em Apelo da Noite
(1963), reivindica o “crime de
pensar”; e já, em Cântico Final (1960), é a arte, como encontro de um
“mundo original”, de um sagrado ou absoluto agnóstico, que se esquiva a
qualquer compromisso ideológico.
O
que operou nele a mudança não terá sido, de acordo com o que o próprio escreveu,
a aspiração ao humanismo e à justiça, mas um conceito prático de justiça e de
humanismo, pois que, se os modos de concretização do sonho podem sofrer
correção, não o sofreu neste caso, a aspiração que visava concretizar.
É
ele, o escritor-filósofo, que nos explica o predito conceito prático de justiça
e de humanismo, um dos temas mais recorrentes no seu pensamento, remetendo-o
para o interior insondável e incognoscível de nós, um substrato gerado ao longo
dos infinitos acidentes, encontros e desencontros e que nos surge como
anterioridade radical às nossas escolhas e opções. Nestes termos, “o impensável
e o indiscutível subjaz a todo o pensar, e para lá dele, ao sentir”, sendo em
torno desse impensável que se nos organiza a harmonia do ato de pensar, que
ulteriormente nós nos esforçamos por explicar ou demonstrar racionalmente.
A
esta temática recorrente já o escritor se referira no seu mais importante
ensaio filosófico Invocação ao meu Corpo
(1969), ao verificar haver “duas zonas
no homem que são a das origens e a da concretização, a do indizível e a do
dizível, a do absoluto e a da redutibilidade”.
Daí
a relevante importância do tema de Aparição,
consentâneo com a revelação momentânea de uma verdade que em nós se pode gerar
lentamente, mas cujo ponto culminante tem quase sempre o instantâneo da estrada
de Damasco – evocação da conversão de São Paulo de Tarso (vd
At 9,1-30) – e a dimensão
fulgurante do mistério. Como diz em Carta
ao Futuro (1957),
“o mistério e o seu alarme são o tecido de tudo”.
E
é justamente a partir da dimensão do mistério que resulta o estatuto da arte ao
longo da obra vergiliana: o mundo da arte é o mundo da aparição, o mundo inicial.
A arte será, segundo o filósofo-esteta, “o arauto do impensável, ou o lugar
onde se lhe vê a face, cabendo ao filósofo explicitá-la em pensamento”, ou de
outro modo: “a arte inscreve no coração do homem o que a vida lhe revelou sem
ele saber como, e o filósofo transpõe a notícia ao cérebro, na obsessiva e doce
mania de querer ter razão”. Por isso, a filosofia é uma aventura tão perene
como a arte. Cada filósofo recupera esse mundo inicial de espanto, “de
interrogação suspensa, degradando-a em pergunta quando lhe reponde com razões”,
deixando claro que tal degradação se reporta a uma filosofia de matriz
racionalista.
Para
o filósofo-esteta, a arte não interpreta, revela; mostra o lado oculto do homem
– pelo que, em arte, saber é comover-se.
Já o afirmara em Espaço do Invisível
III (1977), a justificar o título:
“Mas,
se em todo o horizonte está presente um horizonte que o margina, até um
horizonte final, se na mais breve palavra está o aviso do insondável, se o
espaço do invisível se anuncia no do visível, é na obra de arte que mais
presente e visível se nos revela o invisível”.
Corporizando
um pensamento de base existencialista, predomina na obra o sentir. E, desta
maneira, “o essencial não é para se pensar mas para se sentir”, sentir que nos
diz que “a verdade é amor” e é a verdade emotiva que, em primeira e a última instância,
nos relaciona com o mundo. Em Estrela Polar
(1962) e em Alegria Breve (1965), o pathos
da sua escrita toca o ponto culminante da máxima exacerbação e da máxima
perfeição, aprofundando e completando a temática de Aparição.
Em
conexão com esta filosofia de vida, um outro dos seus temas preferidos é o das “verdades
de sangue”. Como dirá em Do Mundo Original
(1957), “uma verdade só interfere na vida
quando o sangue a reconhece”, sendo que a razão ajuda, mas não decide a
recetividade.
A
partir de Nítido
Nulo (1971), o tom da obra começa a ficar
matizado pela ironia amarga, ironia que provém do que o desgaste revela – que a
verdade se esvazia, a evidência se torna opaca e as ideias pendem para o lado
da morte. É o niilismo ativo. Depois, em Para
Sempre (1983)
e nas duas séries de Conta-Corrente (a
1.ª de 5 volumes, 1980-1987, e a segunda de 4 volumes, 1993-1994), o homem é definido como um
sujeito-casa atravessado por quanto vem dos quatro pontos cardeais, e contudo
lateral a essa multiplicidade de orientações, sempre não sabendo.
De
Até ao Fim (1987) a Cartas a Sandra (1996 e 1997, edição póstuma), os narradores envelhecem como
o autor. O narrador é um pai a quem morre o filho. E a morte do filho prova que
a lateralidade vital em que o pai se posiciona não é propriamente a desistência
do cansaço, mas a sapiência da suplementaridade.
A
raiz da atitude lírica vergiliana que integra a sua atividade romanesca,
fazendo do romance o ponto crucial de encontro entre o lirismo e a reflexão
filosófica de vertente existencial, na convicção de poder perfeitamente escoar
em prosa a poesia que de que foi dotado e com a preocupação acrescida de
teorizar em ensaios múltiplos as questões ficcional e literariamente apresentadas.
É o cantar do homem circunscrito à sua individualidade que tanto afastou o
autor do estruturalismo e nele via a morte do homem, que assistira, por sua
vez, à morte de Deus. Esta morte do homem, morte Deus é tragicamente vivida em Manhã Submersa (1954), romance onde alguns indevidamente
pouco mais viram que uma crítica à educação seminarística. Esta morte, que se alcandorou
ao seu altar com a força iluminadora que de si próprio o autor descobriu e
conseguiu irradiar, coexiste com a experiência frustrante da desagregação dos
valores ideológicos, históricos, artísticos e sociais. Entre eles, destaca-se a
morte da arte, que assume a dimensão mais trágica, porque é autodestruição e
que justifica muita da frieza que perpassa os seus últimos romances,
designadamente Para Sempre (1983).
Regressará
ao tema em Pensar (1992) evocando singelamente o aldeão
que sempre foi:
“Dar
um sentido à vida. Para lho darem aos domingos, quando não trabalham, os
campónios da aldeia embebedam-se e dão-se facadas. A arte do nosso tempo sabe-o
e faz o mesmo”.
Porém,
o tema essencial de toda a obra foi o da procura do sentido da existência num
universo sem sentido, no dinamismo do “niilismo criador” e um “humanismo
trágico”, nas expressões de Eduardo Lourenço, explorando até à exaustão o tema
do egotismo, simultaneamente tempo eterno e inscrito na finitude, que embrenha o
escritor filósofo na temática da morte e o torna o homem que, heroica e
angustiadamente, arca com o desafio da finitude.
***
Para
assinalar o centenário do escritor, a
Universidade de Évora, que tem honrado a sua memória, através da atribuição anual,
desde 1997, do Prémio Vergílio Ferreira, vai realizar, de 29 de fevereiro a 2
de março, um Congresso Internacional de cariz interdisciplinar.
Em organização conjunta do Departamento de Linguística
e Literaturas e do Departamento de Filosofia, o evento “Vergílio Ferreira: entre o silêncio e a palavra
total” pretende ser uma grande oportunidade de congregar investigadores de
várias áreas do saber em torno de Vergílio Ferreira, para (re)evocar as
coordenadas que pautam a sua escrita e promover novas hipóteses interpretativas
do seu legado ficcional e ensaístico.
Na perspectiva vergiliana, o labor da palavra
desdobra-se num horizonte inalcançável e por isso ininterrupto, como
liminarmente sublinha em Conta-Corrente III, ao referir-se ao
“périplo de uma vida à procura da palavra”:
“Viemos ao
mundo para a encontrar. A palavra total, a que nos diga inteiros, a que nos
diga a vida toda. Procurei a minha e não a encontrei. E estou a chegar ao fim.
Ou encontrei apenas a do silêncio. Ou a palavra enigmática que a mãe do
narrador desse meu romance Para Sempre lhe diz ao ouvido à
hora da morte e ele tenta entender através da vida inteira”.
O Congresso conta, no seu programa de conferências
plenárias, proferidas por oradores convidados, e de comunicações apresentadas
em sessões paralelas, com abordagens e eixos temáticos diversos, de que se
destacam:
- Literatura
e Filosofia – relação de Vergílio Ferreira com as escolas e os escritores do
seu tempo;
- Tradição e
singularidade na obra vergiliana;
- Os géneros
literários em Vergílio Ferreira – apropriações, confluências e reconfigurações;
- A condição
humana: descoberta e experiência do “eu”; inquietações e angústia de cada vida
concreta;
- Relação de
Vergílio Ferreira com a Música, o Cinema, a Pintura e as outras Artes;
- As emoções
existenciais nas obras de ficção e no ensaio vergilianos;
- Liberdade e responsabilidade,
fascínio e solidão, triunfo e tragédia, ser e morte – contradições vitais em
Vergílio Ferreira;
- Vergílio
Ferreira e a vida política e social portuguesa;
- Vergílio
Ferreira e Évora.
Fonte: vergilio2016.uevora.pt
***
Principais
Obras
Narrativa – O Caminho Fica Longe (1943); Onde Tudo Foi Morrendo (1944); Vagão J (1946) Mudança (1949); A Face Sangrenta (1953); Manhã
Submersa (1954);
Aparição (1959); Cântico Final (1960); Estrela
Polar (1962);
Apelo da Noite (1963); Alegria Breve (1965); Nítido Nulo
(1971); Apenas Homens (1972); Rápida a
Sombra (1975);
Contos (1976); Signo Sinal (1979); Para Sempre
(1983); Uma Esplanada sobre o Mar (1986); Até ao Fim (1987); Em Nome da Terra (1990); Na Tua Face (1993); Do Impossível Repouso (1995); Cartas a Sandra (1996);
Ensaio
– Sobre o Humorismo de Eça de Queirós
(1943); Do Mundo Original (1957); Carta ao
Futuro (1958);
Da Fenomenologia a Sartre (1962); Introdução a “O Existencialismo é um Humanismo” de Jean Paul Sartre (1962); André Malreaux – Interrogação ao Destino (1963); Espaço do Invisível, 5 volumes, (1965.1976.1977.1987.1998,
o último póstumo); Invocação ao meu Corpo (1969); Arte Tempo (1988); Pensar (1992);
Diário
– Conta-Corrente, (5
volumes, 1980-1988);
Conta-Corrente-nova série, (4
volumes, 1993-1994);
Escrever (2001,
póstumo); Diário Inédito (2001,
póstumo, do espólio 1944-1949);
Entrevistas
– Um Escritor Apresenta-se (1981).
***
É
pena que os programas escolares tenham passado quase ao silêncio o professor filósofo
e escritor que empresta à ficção romanesca ora profundo lirismo ora intensa força
dramática!
(vd
Wikipédia; Ilídio Rocha, Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses-IV; Pedro Calafate, CVC – Instituto Camões)
2016.02. 07 –
Louro de Carvalho
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