domingo, 7 de fevereiro de 2016

No centenário do nascimento do autor de Aparição

Passou, a 28 de janeiro, o centenário do nascimento de Vergílio António Ferreira e, a 1 de março, ocorrerá o 20.º aniversário do seu passamento. Com efeito, o professor-escritor nasceu na freguesia de Melo, concelho de Gouveia, distrito da Guarda, a 28 de janeiro de 1916, e faleceu em Lisboa, a 1 de março de 1996. Tinha vários hobbies: pintura, futebol e xadrez.
A neve, que viria a ser um dos elementos marcantes do imaginário romanesco vergiliano em contraponto com a vida citadina, é o cenário fundamental da infância e adolescência, passadas nas abas da Serra da Estrela – cenário que o escritor nunca esqueceu.  
Embora professor de profissão (podem ver-se referências à profissão docente em Manhã Submersa e em Aparição), foi como escritor que Ferreira mais se distinguiu. E continua atualmente associado à Literatura, ao menos pela instituição do Prémio Vergílio Ferreira, aquele que, em 1992, foi galardoado com o Prémio Camões. 
A sua vasta e diversificada obra, geralmente dividida em ficção (romance e conto), ensaio e diário, costuma ser distribuída por dois períodos literários: o neorrealismo e o existencialismo. Considera-se que foi com A Sibila (1953), de Agustina Bessa-Luís, e Aparição (1959), de Vergílio Ferreira, que se fundou o romance contemporâneo. A Sibila integrou o programa de Literatura Portuguesa no 4.º curso do 12.º ano, quando este ano da escolaridade era um apêndice ao curso complementar do ensino secundário (subsequente ao 11.º ano e prévio ao ingresso no ensino superior); Aparição integrava o programa de Português do 12.º ano, da reforma de Roberto Carneiro, em alternativa a Memorial do Convento, até que David Justino pura e simplesmente baniu o romance de Vergílio Ferreira do programa de Português do ensino secundário.
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Na vida do professor do Liceu, licenciado em Filologia Clássica pela Universidade de Coimbra, em 1940, destacam-se dois momentos fundamentais: a estada em Évora (1945-1958); e a vinda para Lisboa (1959), onde exerceu a docência no Liceu Camões até à sua aposentação.
Foi na década de quarenta do século XX que Ferreira iniciou a sua atividade literária. Seduzido pela força do neorrealismo, acabou por sofrer uma sensível mudança que o tornou marginal ao marxismo e o desviou do catolicismo, inserindo-o no existencialismo. Considera-se que Mudança (1949) é a obra que marca a transição entre estes dois períodos de fértil produção literária e filosófica, embora já em 1946, com Vagão J, tivesse ensaiado uma alteração de percurso, mas sem consequências.
Na verdade, o pano de fundo vivencial do existencialismo que emoldura e enforma Aparição é já patente em obras escritas antes de Aparição, embora publicadas depois desta. Assim, em Apelo da Noite (1963), reivindica o “crime de pensar”; e já, em Cântico Final (1960), é a arte, como encontro de um “mundo original”, de um sagrado ou absoluto agnóstico, que se esquiva a qualquer compromisso ideológico.
O que operou nele a mudança não terá sido, de acordo com o que o próprio escreveu, a aspiração ao humanismo e à justiça, mas um conceito prático de justiça e de humanismo, pois que, se os modos de concretização do sonho podem sofrer correção, não o sofreu neste caso, a aspiração que visava concretizar.
É ele, o escritor-filósofo, que nos explica o predito conceito prático de justiça e de humanismo, um dos temas mais recorrentes no seu pensamento, remetendo-o para o interior insondável e incognoscível de nós, um substrato gerado ao longo dos infinitos acidentes, encontros e desencontros e que nos surge como anterioridade radical às nossas escolhas e opções. Nestes termos, “o impensável e o indiscutível subjaz a todo o pensar, e para lá dele, ao sentir”, sendo em torno desse impensável que se nos organiza a harmonia do ato de pensar, que ulteriormente nós nos esforçamos por explicar ou demonstrar racionalmente.
A esta temática recorrente já o escritor se referira no seu mais importante ensaio filosófico Invocação ao meu Corpo (1969), ao verificar haver “duas zonas no homem que são a das origens e a da concretização, a do indizível e a do dizível, a do absoluto e a da redutibilidade”.
Daí a relevante importância do tema de Aparição, consentâneo com a revelação momentânea de uma verdade que em nós se pode gerar lentamente, mas cujo ponto culminante tem quase sempre o instantâneo da estrada de Damasco – evocação da conversão de São Paulo de Tarso (vd At 9,1-30) – e a dimensão fulgurante do mistério. Como diz em Carta ao Futuro (1957), “o mistério e o seu alarme são o tecido de tudo”.
E é justamente a partir da dimensão do mistério que resulta o estatuto da arte ao longo da obra vergiliana: o mundo da arte é o mundo da aparição, o mundo inicial. A arte será, segundo o filósofo-esteta, “o arauto do impensável, ou o lugar onde se lhe vê a face, cabendo ao filósofo explicitá-la em pensamento”, ou de outro modo: “a arte inscreve no coração do homem o que a vida lhe revelou sem ele saber como, e o filósofo transpõe a notícia ao cérebro, na obsessiva e doce mania de querer ter razão”. Por isso, a filosofia é uma aventura tão perene como a arte. Cada filósofo recupera esse mundo inicial de espanto, “de interrogação suspensa, degradando-a em pergunta quando lhe reponde com razões”, deixando claro que tal degradação se reporta a uma filosofia de matriz racionalista.
Para o filósofo-esteta, a arte não interpreta, revela; mostra o lado oculto do homem – pelo que, em arte, saber é comover-se. Já o afirmara em Espaço do Invisível III (1977), a justificar o título:
“Mas, se em todo o horizonte está presente um horizonte que o margina, até um horizonte final, se na mais breve palavra está o aviso do insondável, se o espaço do invisível se anuncia no do visível, é na obra de arte que mais presente e visível se nos revela o invisível”.
Corporizando um pensamento de base existencialista, predomina na obra o sentir. E, desta maneira, “o essencial não é para se pensar mas para se sentir”, sentir que nos diz que “a verdade é amor” e é a verdade emotiva que, em primeira e a última instância, nos relaciona com o mundo. Em Estrela Polar (1962) e em Alegria Breve (1965), o pathos da sua escrita toca o ponto culminante da máxima exacerbação e da máxima perfeição, aprofundando e completando a temática de Aparição.
Em conexão com esta filosofia de vida, um outro dos seus temas preferidos é o das “verdades de sangue”. Como dirá em Do Mundo Original (1957), “uma verdade só interfere na vida quando o sangue a reconhece”, sendo que a razão ajuda, mas não decide a recetividade.
A partir de Nítido Nulo (1971), o tom da obra começa a ficar matizado pela ironia amarga, ironia que provém do que o desgaste revela – que a verdade se esvazia, a evidência se torna opaca e as ideias pendem para o lado da morte. É o niilismo ativo. Depois, em Para Sempre (1983) e nas duas séries de Conta-Corrente (a 1.ª de 5 volumes, 1980-1987, e a segunda de 4 volumes, 1993-1994), o homem é definido como um sujeito-casa atravessado por quanto vem dos quatro pontos cardeais, e contudo lateral a essa multiplicidade de orientações, sempre não sabendo.
De Até ao Fim (1987) a Cartas a Sandra (1996 e 1997, edição póstuma), os narradores envelhecem como o autor. O narrador é um pai a quem morre o filho. E a morte do filho prova que a lateralidade vital em que o pai se posiciona não é propriamente a desistência do cansaço, mas a sapiência da suplementaridade.
A raiz da atitude lírica vergiliana que integra a sua atividade romanesca, fazendo do romance o ponto crucial de encontro entre o lirismo e a reflexão filosófica de vertente existencial, na convicção de poder perfeitamente escoar em prosa a poesia que de que foi dotado e com a preocupação acrescida de teorizar em ensaios múltiplos as questões ficcional e literariamente apresentadas. É o cantar do homem circunscrito à sua individualidade que tanto afastou o autor do estruturalismo e nele via a morte do homem, que assistira, por sua vez, à morte de Deus. Esta morte do homem, morte Deus é tragicamente vivida em Manhã Submersa (1954), romance onde alguns indevidamente pouco mais viram que uma crítica à educação seminarística. Esta morte, que se alcandorou ao seu altar com a força iluminadora que de si próprio o autor descobriu e conseguiu irradiar, coexiste com a experiência frustrante da desagregação dos valores ideológicos, históricos, artísticos e sociais. Entre eles, destaca-se a morte da arte, que assume a dimensão mais trágica, porque é autodestruição e que justifica muita da frieza que perpassa os seus últimos romances, designadamente Para Sempre (1983).
Regressará ao tema em Pensar (1992) evocando singelamente o aldeão que sempre foi:
“Dar um sentido à vida. Para lho darem aos domingos, quando não trabalham, os campónios da aldeia embebedam-se e dão-se facadas. A arte do nosso tempo sabe-o e faz o mesmo”.
Porém, o tema essencial de toda a obra foi o da procura do sentido da existência num universo sem sentido, no dinamismo do “niilismo criador” e um “humanismo trágico”, nas expressões de Eduardo Lourenço, explorando até à exaustão o tema do egotismo, simultaneamente tempo eterno e inscrito na finitude, que embrenha o escritor filósofo na temática da morte e o torna o homem que, heroica e angustiadamente, arca com o desafio da finitude.
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Para assinalar o centenário do escritor, a Universidade de Évora, que tem honrado a sua memória, através da atribuição anual, desde 1997, do Prémio Vergílio Ferreira, vai realizar, de 29 de fevereiro a 2 de março, um Congresso Internacional de cariz interdisciplinar.
Em organização conjunta do Departamento de Linguística e Literaturas e do Departamento de Filosofia, o evento “Vergílio Ferreira: entre o silêncio e a palavra total” pretende ser uma grande oportunidade de congregar investigadores de várias áreas do saber em torno de Vergílio Ferreira, para (re)evocar as coordenadas que pautam a sua escrita e promover novas hipóteses interpretativas do seu legado ficcional e ensaístico.
Na perspectiva vergiliana, o labor da palavra desdobra-se num horizonte inalcançável e por isso ininterrupto, como liminarmente sublinha em Conta-Corrente III, ao referir-se ao “périplo de uma vida à procura da palavra”:
“Viemos ao mundo para a encontrar. A palavra total, a que nos diga inteiros, a que nos diga a vida toda. Procurei a minha e não a encontrei. E estou a chegar ao fim. Ou encontrei apenas a do silêncio. Ou a palavra enigmática que a mãe do narrador desse meu romance Para Sempre lhe diz ao ouvido à hora da morte e ele tenta entender através da vida inteira”.
O Congresso conta, no seu programa de conferências plenárias, proferidas por oradores convidados, e de comunicações apresentadas em sessões paralelas, com abordagens e eixos temáticos diversos, de que se destacam:
- Literatura e Filosofia – relação de Vergílio Ferreira com as escolas e os escritores do seu tempo;
- Tradição e singularidade na obra vergiliana;
- Os géneros literários em Vergílio Ferreira – apropriações, confluências e reconfigurações;
- A condição humana: descoberta e experiência do “eu”; inquietações e angústia de cada vida concreta;
- Relação de Vergílio Ferreira com a Música, o Cinema, a Pintura e as outras Artes;
- As emoções existenciais nas obras de ficção e no ensaio vergilianos;
- Liberdade e responsabilidade, fascínio e solidão, triunfo e tragédia, ser e morte – contradições vitais em Vergílio Ferreira;
- Vergílio Ferreira e a vida política e social portuguesa;
- Vergílio Ferreira e Évora.
Fonte: vergilio2016.uevora.pt
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Principais Obras
Narrativa – O Caminho Fica Longe (1943); Onde Tudo Foi Morrendo (1944); Vagão J (1946) Mudança (1949); A Face Sangrenta (1953); Manhã Submersa (1954); Aparição (1959); Cântico Final (1960); Estrela Polar (1962); Apelo da Noite (1963); Alegria Breve (1965); Nítido Nulo (1971); Apenas Homens (1972); Rápida a Sombra (1975); Contos (1976); Signo Sinal (1979); Para Sempre (1983); Uma Esplanada sobre o Mar (1986); Até ao Fim (1987);  Em Nome da Terra (1990); Na Tua Face (1993)Do Impossível Repouso (1995); Cartas a Sandra (1996);
Ensaio – Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (1943); Do Mundo Original (1957); Carta ao Futuro (1958); Da Fenomenologia a Sartre (1962); Introdução a “O Existencialismo é um Humanismo” de Jean Paul Sartre (1962); André Malreaux – Interrogação ao Destino (1963); Espaço do Invisível, 5 volumes, (1965.1976.1977.1987.1998, o último póstumo); Invocação ao meu Corpo (1969); Arte Tempo (1988); Pensar (1992);
Diário – Conta-Corrente, (5 volumes, 1980-1988); Conta-Corrente-nova série, (4 volumes, 1993-1994); Escrever (2001, póstumo); Diário Inédito (2001, póstumo, do espólio 1944-1949);
Entrevistas – Um Escritor Apresenta-se (1981).
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É pena que os programas escolares tenham passado quase ao silêncio o professor filósofo e escritor que empresta à ficção romanesca ora profundo lirismo ora intensa força dramática!
(vd Wikipédia; Ilídio Rocha, Dicionário Cronológico de Autores Portugueses-IV; Pedro Calafate, CVC – Instituto Camões)

2016.02. 07 – Louro de Carvalho

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