Este é um propósito que o Papa
encarece no discurso que proferiu no “Encontro
com o mundo do trabalho” no Colégio de Bachilleres do Estado de Chihuahua, Ciudad Juárez (México), na passada quarta-feira, 17 de fevereiro.
“Um luxo que
hoje não nos podemos conceder é deixar sós e abandonados o presente e o futuro
do México e, para isso, é preciso diálogo, confrontação, fontes de trabalho que
vão criando esta senda construtiva” – disse claramente Bergoglio, contra a
ausência de trabalho, contra a precariedade e contra a marginalização. É claro,
trata-se de asserção aplicável a todos os países.
Reconhece
Francisco a especial relação daquela cidade com a problemática do trabalho bem
como a premência dos testemunhos que escutou da parte dos intervenientes que
revelam “as ânsias,
as alegrias e as esperanças” que sentem na vida. Por outro lado, aproveita a
oportunidade que lhe foi dada para um exercício de pertinente “intercâmbio e
reflexão”.
Não falando ex cathedra, antes usando da palavra na qualidade de participante
que reflete e partilha com os outros a sua reflexão, o Bispo de Roma não se
esquiva a sentenciar, implicando-se pessoalmente no compromisso de
encontro-diálogo, mas não sem deixar de interpelar fortemente o auditório:
“Tudo
o que pudermos fazer para dialogar, para nos encontrar, para procurar melhores
alternativas e oportunidades já é uma conquista que merece apreço e destaque. E
há duas palavras que quero sublinhar: diálogo e encontro. Não vos canseis de
dialogar.”
Assegura que é na falta de
diálogo (na “mudez”)
e na falta de encontro (nos “desencontros”) que tem origem a gestação das
guerras. E, apesar de saber que o diálogo e o encontro não são suficientes para
evitar o conflito e conquistar a paz, sustenta que “hoje não podemos
permitir-nos o luxo de cortar qualquer possibilidade de encontro, qualquer
instância de discussão, confronto, pesquisa”. Mais: defende que “esta é a única
maneira que temos de poder construir o amanhã”, que se desenvolve:
“Tecendo
relações duradouras, capazes de gerar a estrutura necessária para, pouco a
pouco, se reconstruírem os vínculos sociais consumidos pela falta do mínimo de
respeito requerido para uma sadia convivência”.
***
Insistindo no
valor, ao mesmo tempo instrumental e teleológico, da sadia convivência,
aproveita o ensejo de neste encontro estarem representantes de várias
organizações de trabalhadores e de associações empresariais para enunciar perante
eles pressupostos de interesse comum. Parecendo, à partida, tratar-se de dois
grupos naturalmente “antagonistas”, Francisco sublinha a responsabilidade de
ambos em assiduamente “procurar criar
oportunidades de trabalho digno e verdadeiramente útil para a sociedade e
sobretudo para os jovens desta terra”.
Penso dever
acentuar, em termos parentéticos, as duas caraterísticas do trabalho
enunciadas: dignidade e utilidade. Quantas vezes as pessoas
são sujeitas ou ao não trabalho ou ao trabalho espezinhante (não digno) e mesmo escravizante, e quantas
vezes a um trabalho sem qualquer utilidade pessoal e social, apenas para
justificar o canteiro ou o serviço que alguém dirige e para manter o pessoal
sobrecarregado de trabalho fatigante ao serviço de um poder caprichoso!
Entretanto, o
Papa seleciona como “um dos maiores flagelos a que estão expostos os jovens” a
falta de “oportunidades de instrução e trabalho sustentável e rentável, que lhes
permitam lançar-se na vida”.
Neste
segmento discursivo, ficam aliados o trabalho e a instrução (concomitante esta com a educação e a
formação, que dão qualificação), bem como a sustentabilidade do trabalho (contra a precariedade) e a sua rentabilidade (utilidade para a empresa, para o
trabalhador e para a sua família).
A falta de
instrução e a falta de trabalho sustentável e rentável geram “em muitos caos”,
nas palavras do Pontífice, “situações de pobreza e marginalização” – pobreza e
marginalização que se tornam “o terreno favorável para cair na espiral do
narcotráfico e da violência”.
***
É óbvio que
as considerações papais no “Encontro com
o mundo do trabalho” contrariam em absoluto o “paradigma da utilidade
económica” imposto por um sistema financeiro sem rosto, mas com inteligência demolidora
e manipuladora, “como princípio das relações pessoais” – o que induz “a
mentalidade dominante”, praticamente em todo o mundo, a pretender “a maior
quantidade possível de lucro, a todo o custo e imediatamente”.
Como consequência
emerge “a perda da dimensão ética das empresas” e o esquecimento de que “o
melhor investimento que se pode fazer é investir no povo, nas pessoas, nas
famílias”, sobretudo através da criação de “oportunidades”.
Por absurdo e
negando a dignidade da pessoa humana, hoje “a mentalidade dominante coloca o
fluxo de pessoas ao serviço do fluxo de capitais, provocando em muitos casos a
exploração dos trabalhadores, como se fossem objetos para usar e jogar fora e
descartar” (cf Enc.
Laudato Si’, 123). É a forma
contemporânea de esclavagismo a cujos agentes “Deus pedirá contas”, devendo nós
“fazer todo o possível para que estas situações jamais ocorram”. Sendo assim,
tem de concluir-se que “o fluxo do capital não pode determinar o fluxo e a vida
das pessoas”. Daqui, a justeza do “anseio expresso de diálogo, de confrontação”.
Ao serviço
desta justeza decorrente dos pressupostos antropológicos enunciados deve ser entendida
a Doutrina Social da Igreja, que muitas vezes vê as suas propostas diminuídas e
postas em questão com palavras como estas: “Estes pretendem que sejamos
organizações de beneficência ou que transformemos as nossas empresas em
instituições filantrópicas”. Ora, o que se passa é que, em rigor, “a única
pretensão que tem a Doutrina Social da Igreja é velar pela integridade das
pessoas e das estruturas sociais”. E, se esta integridade “é ameaçada ou
reduzida a bem de consumo, a Doutrina Social da Igreja há de ser uma voz
profética que nos ajudará a todos a não nos perdermos no mar sedutor da ambição”.
Mais: a violação da integridade duma pessoa produz o começo da deterioração da “sociedade
inteira”.
Por outro
lado, o Papa Francisco esclarece que “a Doutrina Social da Igreja não é contra
ninguém, mas a favor de todos” e adianta em termos de cidadania e solidariedade:
“Cada setor tem a obrigação de se preocupar
pelo bem de todos; estamos todos no mesmo barco. Todos devemos lutar para que o
trabalho seja uma instância de humanização e de futuro, seja um espaço para
construir sociedade e cidadania. Esta atitude não só cria uma melhoria
imediata, mas, a longo prazo, tornar-se-á uma cultura capaz de promover espaços
dignos para todos. Esta cultura, nascida muitas vezes de tensões, vai gerando
um novo estilo de relações, um novo tipo de nação.”
***
Toda esta pertinente
reflexão tem a ver, segundo o Pontífice argentino, com a questão: Que mundo queremos deixar aos nossos filhos e aos filhos dos outros? Sendo eles “o
nosso horizonte” e “a nossa meta” devemos por eles “unir-nos e trabalhar”.
É claro que os
decisores do México (aliás, como os dos outros países) dirão que não querem deixar aos vindouros “uma recordação de
exploração, de salários insuficientes, de pressão laboral ou de tráfico de
trabalho escravo”. Certamente, todos querem, antes, “deixar-lhes na memória a
cultura de um trabalho digno, um teto decente e terra para trabalhar”. É seguramente
a exigência dos três “tês”: “trabalho, teto e terra” – trilogia socioeconómica recorrentemente
apontada por Bergoglio, que interroga:
“Em qual cultura queremos ver nascer
aqueles que virão depois de nós? Que atmosfera vão respirar? Um ar contaminado
pela corrupção, violência, insegurança e desconfiança ou, pelo contrário, um ar
capaz de gerar – é uma palavra-chave –, gerar alternativas, gerar renovação ou
mudança?”
E sentencia: “Gerar
é ser cocriadores com Deus”. Ora, como qualquer ato de geração e gestação, além
da alegria a ele inerente, implica custo, dificuldade e sofrimento, também a
geração social não se afigura de fácil desenvolvimento e consecução. Porém, “é
pior deixar o futuro nas mãos da corrupção, da brutalidade e da falta de
equidade”, adverte o Papa, que sabe como, numa negociação, muitas vezes, “não é
fácil harmonizar todas as partes”, mas também sabe que “é pior e acaba por
fazer um dano maior a falta de negociação e a falta de avaliação”.
Refere o caso
de um dirigente operário honesto já de idade, que lhe dissera: “Sempre que nos
tínhamos de sentar a uma mesa de negociação, eu sabia que tinha que perder
alguma coisa para ganharmos todos”. Depois, comenta a partir da atitude daquele
homem:
“Linda a filosofia deste homem de
trabalho! Quando se vai negociar, sempre se perde algo, mas ganham todos. Sei
que não é fácil viver de acordo num mundo cada vez mais competitivo, mas é pior
deixar que o mundo competitivo acabe por determinar o destino dos povos…
escravos.”
Colocando as coisas
no seu justo lugar, assegura:
“O lucro e o capital não são um bem
superior ao homem, mas estão ao serviço do bem comum. E, quando o bem comum é
forçado a estar ao serviço do lucro e o único a ganhar é o capital, isto tem um
nome, chama-se exclusão.”
E conclui: “Assim,
se vai consolidando a cultura do descarte: Descartado! Excluído!”
***
Por fim, Francisco reforçou o discurso no “Encontro com o mundo do trabalho” com o testemunho (e congruente resposta papal) de um jovem no “Encontro com os jovens” havido no dia
anterior no Estádio “José María
Morelos y Pavón”, em Morelia.
Dizia o jovem
que “este mundo tira a capacidade de sonhar”. E o Pontífice corrobora:
“É verdade! Às vezes tira-nos a
capacidade de sonhar, a capacidade da gratuidade. Quando um menino ou uma
menina vê o pai e/ou a mãe apenas ao fim de semana, porque vão para o trabalho
antes que ele(a) acorde e regressam quando já está a dormir, esta é a cultura
do descarte.”
Por isso,
lança o repto do convite “a sonhar com um México, onde o pai possa ter tempo
para brincar com o seu filho, onde a mãe possa ter tempo para brincar com os
seus filhos”, na certeza de que isto se conseguirá “dialogando, confrontando,
negociando, perdendo para que ganhem todos”. Propõe “um México, onde não haja
pessoas de primeira, segunda, terceira ou quarta classe, mas um México que
saiba reconhecer no outro a dignidade de filho de Deus”.
Para tanto,
aponta a intercessão da “Guadalupana”, que há quase quinhentos anos, “Se
manifestou a São Juan Diego demonstrando como os que aparentemente não contam
ser as suas testemunhas privilegiadas” e deseja que Ela os “ajude a todos,
independentemente da profissão ou do trabalho” que tiverem “nesta terra de
diálogo, confrontação e encontro”.
***
Não
se diga que este discurso não constitui um importante manual para uso dos decisores
políticos, empresários e trabalhadores!
2016.02.19 – Louro de Carvalho
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