sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Na procura de melhores alternativas e oportunidades

Este é um propósito que o Papa encarece no discurso que proferiu no “Encontro com o mundo do trabalho” no Colégio de Bachilleres do Estado de Chihuahua, Ciudad Juárez (México), na passada quarta-feira, 17 de fevereiro.
“Um luxo que hoje não nos podemos conceder é deixar sós e abandonados o presente e o futuro do México e, para isso, é preciso diálogo, confrontação, fontes de trabalho que vão criando esta senda construtiva” – disse claramente Bergoglio, contra a ausência de trabalho, contra a precariedade e contra a marginalização. É claro, trata-se de asserção aplicável a todos os países.
Reconhece Francisco a especial relação daquela cidade com a problemática do trabalho bem como a premência dos testemunhos que escutou da parte dos intervenientes que revelam “as ânsias, as alegrias e as esperanças” que sentem na vida. Por outro lado, aproveita a oportunidade que lhe foi dada para um exercício de pertinente “intercâmbio e reflexão”.
Não falando ex cathedra, antes usando da palavra na qualidade de participante que reflete e partilha com os outros a sua reflexão, o Bispo de Roma não se esquiva a sentenciar, implicando-se pessoalmente no compromisso de encontro-diálogo, mas não sem deixar de interpelar fortemente o auditório:
“Tudo o que pudermos fazer para dialogar, para nos encontrar, para procurar melhores alternativas e oportunidades já é uma conquista que merece apreço e destaque. E há duas palavras que quero sublinhar: diálogo e encontro. Não vos canseis de dialogar.”
Assegura que é na falta de diálogo (na “mudez”) e na falta de encontro (nos “desencontros”) que tem origem a gestação das guerras. E, apesar de saber que o diálogo e o encontro não são suficientes para evitar o conflito e conquistar a paz, sustenta que “hoje não podemos permitir-nos o luxo de cortar qualquer possibilidade de encontro, qualquer instância de discussão, confronto, pesquisa”. Mais: defende que “esta é a única maneira que temos de poder construir o amanhã”, que se desenvolve:
“Tecendo relações duradouras, capazes de gerar a estrutura necessária para, pouco a pouco, se reconstruírem os vínculos sociais consumidos pela falta do mínimo de respeito requerido para uma sadia convivência”.
***
Insistindo no valor, ao mesmo tempo instrumental e teleológico, da sadia convivência, aproveita o ensejo de neste encontro estarem representantes de várias organizações de trabalhadores e de associações empresariais para enunciar perante eles pressupostos de interesse comum. Parecendo, à partida, tratar-se de dois grupos naturalmente “antagonistas”, Francisco sublinha a responsabilidade de ambos em assiduamente “procurar criar oportunidades de trabalho digno e verdadeiramente útil para a sociedade e sobretudo para os jovens desta terra”.
Penso dever acentuar, em termos parentéticos, as duas caraterísticas do trabalho enunciadas: dignidade e utilidade. Quantas vezes as pessoas são sujeitas ou ao não trabalho ou ao trabalho espezinhante (não digno) e mesmo escravizante, e quantas vezes a um trabalho sem qualquer utilidade pessoal e social, apenas para justificar o canteiro ou o serviço que alguém dirige e para manter o pessoal sobrecarregado de trabalho fatigante ao serviço de um poder caprichoso!
Entretanto, o Papa seleciona como “um dos maiores flagelos a que estão expostos os jovens” a falta de “oportunidades de instrução e trabalho sustentável e rentável, que lhes permitam lançar-se na vida”.
Neste segmento discursivo, ficam aliados o trabalho e a instrução (concomitante esta com a educação e a formação, que dão qualificação), bem como a sustentabilidade do trabalho (contra a precariedade) e a sua rentabilidade (utilidade para a empresa, para o trabalhador e para a sua família).
A falta de instrução e a falta de trabalho sustentável e rentável geram “em muitos caos”, nas palavras do Pontífice, “situações de pobreza e marginalização” – pobreza e marginalização que se tornam “o terreno favorável para cair na espiral do narcotráfico e da violência”.
***
É óbvio que as considerações papais no “Encontro com o mundo do trabalho” contrariam em absoluto o “paradigma da utilidade económica” imposto por um sistema financeiro sem rosto, mas com inteligência demolidora e manipuladora, “como princípio das relações pessoais” – o que induz “a mentalidade dominante”, praticamente em todo o mundo, a pretender “a maior quantidade possível de lucro, a todo o custo e imediatamente”.
Como consequência emerge “a perda da dimensão ética das empresas” e o esquecimento de que “o melhor investimento que se pode fazer é investir no povo, nas pessoas, nas famílias”, sobretudo através da criação de “oportunidades”.
Por absurdo e negando a dignidade da pessoa humana, hoje “a mentalidade dominante coloca o fluxo de pessoas ao serviço do fluxo de capitais, provocando em muitos casos a exploração dos trabalhadores, como se fossem objetos para usar e jogar fora e descartar” (cf Enc. Laudato Si’, 123). É a forma contemporânea de esclavagismo a cujos agentes “Deus pedirá contas”, devendo nós “fazer todo o possível para que estas situações jamais ocorram”. Sendo assim, tem de concluir-se que “o fluxo do capital não pode determinar o fluxo e a vida das pessoas”. Daqui, a justeza do “anseio expresso de diálogo, de confrontação”.
Ao serviço desta justeza decorrente dos pressupostos antropológicos enunciados deve ser entendida a Doutrina Social da Igreja, que muitas vezes vê as suas propostas diminuídas e postas em questão com palavras como estas: “Estes pretendem que sejamos organizações de beneficência ou que transformemos as nossas empresas em instituições filantrópicas”. Ora, o que se passa é que, em rigor, “a única pretensão que tem a Doutrina Social da Igreja é velar pela integridade das pessoas e das estruturas sociais”. E, se esta integridade “é ameaçada ou reduzida a bem de consumo, a Doutrina Social da Igreja há de ser uma voz profética que nos ajudará a todos a não nos perdermos no mar sedutor da ambição”. Mais: a violação da integridade duma pessoa produz o começo da deterioração da “sociedade inteira”.
Por outro lado, o Papa Francisco esclarece que “a Doutrina Social da Igreja não é contra ninguém, mas a favor de todos” e adianta em termos de cidadania e solidariedade:
“Cada setor tem a obrigação de se preocupar pelo bem de todos; estamos todos no mesmo barco. Todos devemos lutar para que o trabalho seja uma instância de humanização e de futuro, seja um espaço para construir sociedade e cidadania. Esta atitude não só cria uma melhoria imediata, mas, a longo prazo, tornar-se-á uma cultura capaz de promover espaços dignos para todos. Esta cultura, nascida muitas vezes de tensões, vai gerando um novo estilo de relações, um novo tipo de nação.”
***
Toda esta pertinente reflexão tem a ver, segundo o Pontífice argentino, com a questão: Que mundo queremos deixar aos nossos filhos e aos filhos dos outros? Sendo eles “o nosso horizonte” e “a nossa meta” devemos por eles “unir-nos e trabalhar”.
É claro que os decisores do México (aliás, como os dos outros países) dirão que não querem deixar aos vindouros “uma recordação de exploração, de salários insuficientes, de pressão laboral ou de tráfico de trabalho escravo”. Certamente, todos querem, antes, “deixar-lhes na memória a cultura de um trabalho digno, um teto decente e terra para trabalhar”. É seguramente a exigência dos três “tês”: “trabalho, teto e terra” – trilogia socioeconómica recorrentemente apontada por Bergoglio, que interroga:
“Em qual cultura queremos ver nascer aqueles que virão depois de nós? Que atmosfera vão respirar? Um ar contaminado pela corrupção, violência, insegurança e desconfiança ou, pelo contrário, um ar capaz de gerar – é uma palavra-chave –, gerar alternativas, gerar renovação ou mudança?”
E sentencia: “Gerar é ser cocriadores com Deus”. Ora, como qualquer ato de geração e gestação, além da alegria a ele inerente, implica custo, dificuldade e sofrimento, também a geração social não se afigura de fácil desenvolvimento e consecução. Porém, “é pior deixar o futuro nas mãos da corrupção, da brutalidade e da falta de equidade”, adverte o Papa, que sabe como, numa negociação, muitas vezes, “não é fácil harmonizar todas as partes”, mas também sabe que “é pior e acaba por fazer um dano maior a falta de negociação e a falta de avaliação”.
Refere o caso de um dirigente operário honesto já de idade, que lhe dissera: “Sempre que nos tínhamos de sentar a uma mesa de negociação, eu sabia que tinha que perder alguma coisa para ganharmos todos”. Depois, comenta a partir da atitude daquele homem:
“Linda a filosofia deste homem de trabalho! Quando se vai negociar, sempre se perde algo, mas ganham todos. Sei que não é fácil viver de acordo num mundo cada vez mais competitivo, mas é pior deixar que o mundo competitivo acabe por determinar o destino dos povos… escravos.”
Colocando as coisas no seu justo lugar, assegura:
“O lucro e o capital não são um bem superior ao homem, mas estão ao serviço do bem comum. E, quando o bem comum é forçado a estar ao serviço do lucro e o único a ganhar é o capital, isto tem um nome, chama-se exclusão.”
E conclui: “Assim, se vai consolidando a cultura do descarte: Descartado! Excluído!”
***
Por fim, Francisco reforçou o discurso no “Encontro com o mundo do trabalho” com o testemunho (e congruente resposta papal) de um jovem no “Encontro com os jovens” havido no dia anterior no Estádio “José María Morelos y Pavón”, em Morelia.   
Dizia o jovem que “este mundo tira a capacidade de sonhar”. E o Pontífice corrobora:
“É verdade! Às vezes tira-nos a capacidade de sonhar, a capacidade da gratuidade. Quando um menino ou uma menina vê o pai e/ou a mãe apenas ao fim de semana, porque vão para o trabalho antes que ele(a) acorde e regressam quando já está a dormir, esta é a cultura do descarte.”
Por isso, lança o repto do convite “a sonhar com um México, onde o pai possa ter tempo para brincar com o seu filho, onde a mãe possa ter tempo para brincar com os seus filhos”, na certeza de que isto se conseguirá “dialogando, confrontando, negociando, perdendo para que ganhem todos”. Propõe “um México, onde não haja pessoas de primeira, segunda, terceira ou quarta classe, mas um México que saiba reconhecer no outro a dignidade de filho de Deus”.
Para tanto, aponta a intercessão da “Guadalupana”, que há quase quinhentos anos, “Se manifestou a São Juan Diego demonstrando como os que aparentemente não contam ser as suas testemunhas privilegiadas” e deseja que Ela os “ajude a todos, independentemente da profissão ou do trabalho” que tiverem “nesta terra de diálogo, confrontação e encontro”.
***
Não se diga que este discurso não constitui um importante manual para uso dos decisores políticos, empresários e trabalhadores!

2016.02.19 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário