quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Muito se mudou com Francisco, mas a Igreja é a mesma, a de Cristo


Já lá vão 5 anos. A 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI saudava os fiéis reunidos em Castel Gandolfo, como Papa, pela última vez. Às 20 horas, consumava-se formalmente a sua renúncia, anunciada a 11 de fevereiro, e Joseph Ratzinger passava a ser o Papa Emérito Bento XVI. Mas, antes, da varanda da casa de verão dos Pontífices, aquele que havia sido o Sumo Pontífice durante quase 8 anos, dirigiu-se aos peregrinos reunidos na praça para lhes dizer:
Eu sou simplesmente um peregrino que iniciou a última etapa da sua peregrinação nesta terra”.
Logo depois, fecharam-se as portas da casa e começou o regime de Sede Vacante.
Bento viveu em Castel Gandolfo durante dois meses, enquanto se realizavam as apropriadas adaptações na sua nova residência, o mosteiro “Mater Eclesiae”, nos jardins do Vaticano, distante uns 750 metros da residência de Santa Marta, onde Francisco optou por viver com o pessoal que trabalha na Santa Sé, do lado oposto ao apartamento papal em que viveram os antecessores. Mas não estava sozinho: nas primeiras imagens “roubadas” do Pontífice, ele aparecia a caminhar pelos jardins com Dom Georg Gänswein, seu secretário. Além disso, recebeu algumas visitas, como a do seu sucessor, que visitou Castel Gandolfo a 23 de março.
Naquele dia, deram a volta ao mundo as primeiras imagens de ambos a abraçar-se frente ao helicóptero e a rezar na capela, ajoelhados no mesmo banco.
Entretanto, Ratzinger voltou ao Vaticano, onde Francisco o esperava para lhe dar as boas-vindas. E Bento começou nova vida no mosteiro ‘Mater Ecclesiae’ junto das 4 ‘memores Domini’ – Rossella, Loredana, Carmela e Cristina, leigas consagradas do “Movimento Comunhão e Libertação”, que o ajudam, e com Dom Georg Gänswein, o Prefeito da Casa Pontifícia e secretário particular do Papa Emérito.
Embora as primeiras imagens divulgadas após a renúncia mostrem Bento XVI a servir-se da bengala e a mover-se com dificuldade, ele mesmo disse, nos meses seguintes, que pretendia deixar claro que está “muito bem” – como afiançou o ator italiano Lino Banfi quando se encontrou com ele no mosteiro ‘Mater Ecclesiae’, onde constatou que o Pontífice emérito “toca piano, lê, estuda e reza”. E, em outubro de 2017, Dom Gänswein desmentiu os rumores publicados no Facebook que garantiam que Bento XVI estava à beira da morte. Isto é, não sofre de qualquer doença, sendo a idade provecta o único fator que o aproxima do fim da vida terrena.
Também é verdade que Francisco e Bento se consideram e estimam mutuamente. Como é do conhecimento público, o Papa em exercício tem-se referido ao predecessor com elevada estima, (chamou-lhe avô e conselheiro) telefona-lhe, visita-o com frequência, convida-o para atos públicos mais significativos, tendo Bento XVI correspondido nalguns casos, e, como revelou Dom Georg Gaenswein em meados de 2014, o Prefeito da Casa Pontifícia, antes de qualquer viagem internacional, Francisco visita Bento XVI, gesto que mostra a boa relação que existe entre ambos e como o atual Pontífice continua, em termos essenciais, a visão do seu antecessor.
Em 14 de fevereiro de 2015, Bento XVI participou na criação de 20 novos cardeais pelo Papa Francisco e, no dia 8 de dezembro daquele ano, foi o primeiro peregrino a cruzar a Porta Santa da Basílica de São Pedro, durante a inauguração do Ano Santo da Misericórdia. Do mesmo modo, em 28 de junho de 2016, Bento XVI pronunciou algumas palavras junto do seu sucessor. Durante os 65 anos de ordenação sacerdotal do Papa Francisco, o Papa Emérito afirmou:
A sua bondade, desde o primeiro momento da eleição, em cada momento da minha vida aqui, me toca, me leva, realmente, interiormente […] Mais do que nos Jardins do Vaticano, com a sua beleza, a Sua bondade é o lugar onde eu moro: Sinto-me protegido.”.
Quatro anos após a renúncia de Bento XVI, a 11 de fevereiro de 2017, Federico Lombardi, antigo porta-voz do Vaticano, afirmou que Ratzinger vivia em oração e com muita discrição o serviço de acompanhamento à Igreja e solidariedade com o sucessor. O sacerdote jesuíta, que foi Diretor da Sala de Imprensa durante o pontificado de Bento, frisou que, embora a força física de Ratzinger esteja debilitada pela idade, as forças mentais e espirituais estão perfeitas. E disse:
Realmente é muito bonito ter o Papa Emérito que reza pela Igreja, pelo seu Sucessor. É uma presença que sentimos. Sabemos que ele está presente e, embora não o vejamos com frequência, quando o vemos, todos nós ficamos muito contentes, porque o amamos. Portanto, sentimo-lo como uma presença que nos acompanha, nos consola e nos tranquiliza.”.
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A este respeito, Dom Carlos Azevedo, Bispo Titular de Belali, Delegado do Conselho Pontifício da Cultura e membro da Comissão Pontifícia de Arqueologia Sacra, refere (vd Radio Vaticana, 18.11.2105) que o que se passa, neste ponto, em relação à diocese de Roma, “é já a realidade de muitas dioceses do mundo: terem simultaneamente o bispo emérito e o bispo residencial, por vezes até dois eméritos, como poderá vir a suceder em Roma”. E sublinha “a lucidez corajosa de Bento XVI, a livre e ‘profunda serenidade de espírito’, ao decidir renunciar e pôr fim ao seu ministério de sucessor de São Pedro (28-02-2013), no serviço da Igreja de Roma e da Igreja Universal”, que marcará a história do catolicismo. E assegura que Bento “tinha consciência de quanta ‘gravidade e inovação’ carregava”. É “a normalidade humana”, que “não retira o sentido sacro a figuras da Igreja”. E vai mais longe ao dizer:
O sacro em cristianismo é muito relativo e o fundamental é o conceito de santidade, isto é, o modo de responder como Cristo à salvação e redenção, à dignidade humana, ao bem comum da humanidade e do cosmos. Trata-se de acolher, na hora presente, com todas as capacidades e talentos, o que o Espírito inspira. Portanto, é desejável e normal que quem vem de novo traga diferentes prioridades e respostas adequadas a novos problemas.”.
Considera que Francisco vive uma experiência existencial que lhe dá uma aura de popularidade dentro e fora das comunidades cristãs. Já em Bento pretende-se ver, no silêncio e aparente distância, um suposto conservadorismo um pretexto para um ilegítimo saudosismo de “uma Igreja muralhada na liturgia antiga, nos rituais” – o que é “um flagrante aproveitamento, do qual o Papa Ratzinger não é minimamente culpado”. Ao invés, “o seu discurso teológico, patente nos livros Jesus de Nazaré [3 volumes], aproximou muitas pessoas da fé cristã” e “a sua sensibilidade privilegiou a beleza e a verdade”. Se “com Francisco se acentuou a bondade, a frontalidade insistente de aplicar a doutrina ao realismo concreto da vida dos cristãos” e se “a situação económica e política foi iluminada de modo profético”, não será “justo diabolizar Bento XVI, castigado por má imprensa, e beatificar Francisco, ainda protegido por boa imprensa”. E frisa:
Grave será que alguns transformem a obediência ao Papa, defendida na sua lógica, em um concordismo autocentrado e seletivo de opões a seu gosto e não em autêntico acatamento do único Bispo de Roma que existe e se chama Francisco. Confundem sensibilidades de pequenos grupos com o bem da Igreja. Não entenderam a fé cristã como peregrinação, disponível ao confronto com novas questões. Para ser fiel à sua missão, a Igreja deve renovar-se continuamente, em diálogo com outras religiões, confissões cristãs e com a cultura contemporânea. Assim, pode contribuir para uma abertura aos valores perenes da Transcendência.”.
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Há 5 anos, o gesto inesperado de Bento XVI apanhou a Igreja Católica de surpresa – é preciso recuar 6 séculos (a 1415) para encontrar idêntica atitude em Gregório XII. Os cardeais que escutavam (11 de fevereiro de 2013) o seu discurso em Latim não acreditavam no que ouviam – e só uma jornalista da agência italiana Ansa percebeu o texto original. Cansado da Cúria Romana, frágil para forçar alterações necessárias à governação do Vaticano, Bento XVI retirou-se, oficializando a abdicação a 28 de fevereiro. E o sucessor, ao assomar à varanda de São Pedro, anunciou-se como bispo de Roma (e não como Papa), marcando um estilo diferente. De vestes brancas, despojado da murça vermelha com estola de vinho e bordada a dourado, tomou o nome de Francisco, significativo para quem faz das periferias campo de ação. E abdicou do anel do pescador de ouro dos antecessores (é de prata como a cruz que usa). Anselmo Borges comenta:
Não há dúvida absolutamente nenhuma de que houve uma mudança fundamental, que é bem apercebida pela opinião pública […] Raramente na História terá havido um Papa tão amado como o Papa Francisco e, diria, tão influente como referência político-moral global. […] Mesmo se esse amor seja talvez mais notório fora da Igreja do que dentro da Igreja, concretamente na Igreja oficial.”.
Na comparação entre os pontificados, para o teólogo Anselmo Borges, “cada um tem a sua história, o seu temperamento”. E a deputada Ana Rita Bessa, que tem um percurso próximo dos jesuítas, socorre-se das palavras do evangelista João, “Na casa do Pai, há muitas moradas” (Jo 14,2), para frisar que, na mesma Igreja, “num espaço tão curto de tempo, sejam possíveis exemplos muito diferentes, mas em que todos falam de Deus”. E, “mais do que contraste”, a deputada sublinha o facto de um papa “mais cerebral” ter aberto “caminho a que outro faça de outro modo”.
Anselmo Borges recua até João Paulo II (antecessor de Bento XVI) para notar como o Papa polaco vindo de “uma igreja perseguida” se recolheu numa “ortodoxia estabelecida e nem sempre compreendeu a necessidade de avançar com outras atitudes dentro da Igreja”, remetendo-se ao “quadro de uma igreja monolítica”. Porém, “enquanto João Paulo II contribuiu decisivamente para a queda do muro de Berlim e com isso reconfigurou o mundo”, Francisco é filho de imigrantes italianos e foi arcebispo duma grande cidade, onde se envolve com as periferias, vivendo num pequeno apartamento e deslocando-se de metro.
Bento XVI crê “em Jesus e no Deus de Jesus, mas é uma pessoa frágil, um homem tímido e vive dentro dele próprio um conflito” – conflitualidade típica de quem, enquanto jovem teólogo participa como perito do Concílio Vaticano II e escreve, em 1972, “com uma abertura não esperada à comunhão dos recasados”, mas, depois, participa, ao lado de João Paulo II, “na condenação de dezenas de teólogos”. E é esta conflitualidade que o leva a resignar.
Põe a fé viva no Deus de Jesus, mas não teve forças para operar mudanças. Todavia, preparou para o sucessor um relatório (cujo conteúdo nunca foi completamente revelado) sobre a gestão do Vaticano, suficiente iluminado para Francisco atuar como tem atuado junto da Cúria.
Para Dom Januário Torgal Ferreira, Bispo emérito das Forças Armadas e Forças de Segurança, “mudou quase tudo” entre o tempo de Bento XVI e o de Francisco. Segundo este prelado emérito, “mudou o primado dos anseios e dos objetivos da Igreja” e “houve uma visibilidade daqueles a quem os homens da Igreja nunca consideraram ou nunca tiveram na devida conta”, os mais oprimidos e mais pobres. Com “uma preparação teológica de grande gabarito”, como diz Januário de Ratzinger, Bento XVI foi o “vigilante da doutrina e da ortodoxia que provocou o distanciamento de muitos teólogos”, como aduz Anselmo Borges. E Torgal explana:
Bento XVI foi à popa relativamente a algumas pessoas que tinham gosto pela intelectualidade. Mas havia problemas do homem da rua que ficaram esquecidos. O fundamental é que as pessoas mais carentes não foram atingidas pelo pontificado dele. Já com Francisco há uma nova centralidade com o problema das periferias, com a solidão, os refugiados e as minorias étnicas a entrarem no discurso diário do bispo de Roma. Aqui há um salto na doutrina e no serviço pontifical.”.
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Uma carta foi entregue em mão na redação do Corriere della Sera, com data de 5 de fevereiro em folha dactilografada, provinda do Mosteiro Mater Ecclesiae, V-120 Città del Vaticano, e foi, a 6, revelada ao mundo pela pena do diretor daquele diário italiano.
Nela se dá conta de que Bento XVI, retirado naquele mosteiro dentro dos muros do Vaticano, vive hoje (quase a fazer 91 anos) a quietude do “lento declínio” da sua “força física”, respondendo às preocupações dos muitos leitores que queriam saber como estava o Papa que resignou há 5 anos. Diz ele: “Estou numa peregrinação interior para a Casa”. “Casa”, grafada com maiúscula refere-se a Deus, à casa do Senhor.
Quando resignou, cansado e sem forças para mudar as coisas numa Igreja dilacerada pela corrupção e escândalos sexuais, o Papa Ratzinger prometeu-se a si mesmo um tempo de oração e escrita. E assim permaneceu, surgindo em público apenas algumas vezes, sobretudo nas visitas do seu sucessor, abrindo assim porta à inquietação dos leitores do Corriere della Sera.
Também nas fotografias que a Fundação Ratzinger-Bento XVI vem disponibilizando na sua página do Facebook é possível ver o “declínio da força física” que o próprio admite na carta. Muitas vezes de boina branca, amparado por quem o visita ou com um andarilho que o ajuda a caminhar, essa fragilidade física contrasta com a sua boa cabeça, como sugeriu Monsenhor Angelo Becciu, responsável da Secretaria de Estado do Vaticano, que recentemente esteve com Ratzinger e que diz, desmentindo boatos de paralisia cerebral, aliás como fez o Vaticano:
Fisicamente tem alguns problemas, mas faz as suas caminhadas diárias, e mentalmente continua muito fresco”.
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Nas páginas iniciais de “Conclave”, como refere o Sol (28.02.2018), o romancista britânico Robert Harris descreve a destruição do anel do Papa que marca o fim de um pontificado:
Mas por fim [o anel] soltou-se e ele levou-o na palma da mão estendida a Tremblay [o camerlengo], que tirou uma tesoura da caixa de prata – o tipo de instrumento que poderia usar-se para podar roseiras […] – e inseriu o selo do anel entre as lâminas dela. Premiu com força, fazendo uma careta com o esforço. Houve um súbito estalido e o disco metálico que representa São Pedro a puxar a rede de pesca foi cortado.
Sede vacante – anunciou Tremblay. – O trono da Santa Sé está vago.”.
Em circunstâncias normais, o ritual de destruição do anel do pescador é desencadeado após a morte do Pontífice. Mas há 5 anos foi diferente. Bento XVI decidiu autorretirar-se de cena ao fim de menos de 8 anos. A decisão fora comunicada numa reunião de cardeais no Vaticano, a 11 de fevereiro daquele ano de 2013, pela leitura da Declaratio”, datada de 10 de fevereiro.
O seu dia começa invariavelmente com a participação numa missa às 8 da manhã. Só depois toma o pequeno-almoço. Além da oração, ocupa os seus tempos livres em passeios pelos jardins do mosteiro ou a ouvir música clássica (Mozart é o seu compositor favorito e já em jovem a sua música lhe “penetrava profundamente na alma”). De tempos a tempos, também recebe amigos, como a comitiva da Baviera (região da Alemanha da qual é natural) que o visita por ocasião do seu aniversário.
O conclave subsequente à renúncia de Bento elegeu um Papa que parece estar nos antípodas do anterior. Mas, se Ratzinger era o intelectual respeitado e reservado, Francisco é próximo e afetuoso, o que não impede a relação de respeito recíproco. Bento continua um mestre e um interlocutor amigo para os que exercem “o dom da razão para responder à vocação humana de procura da verdade”, elogiou Francisco. Já o emérito terá dito ao seu sucessor: “Sua Santidade, deste momento em diante, prometo a minha total obediência e as minhas preces”.
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A mesma Igreja expressa e servida na complementaridade das diversidades rumo à Unidade!
2018.02.28 – Louro de Carvalho

Dom Manuel Linda distinguido com a medalha da Cruz de São Jorge


Foi hoje, dia 28, divulgada pela agência Ecclesia a informação que o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) de Portugal atribuiu ao bispo Dom Manuel da Silva Rodrigues Linda a “ Medalha Cruz de São Jorge”, 1.ª Classe, numa cerimónia privada.
A “Medalha Cruz de São Jorge” é uma medalha militar portuguesa, privativa do Estado-Maior-General das Forças Armadas, criada pelo Decreto-lei n.º 325/2000, de 22 de dezembro, que se destina a galardoar os militares e civis, nacionais ou estrangeiros, que, no âmbito técnico-profissional, revelem elevada competência, extraordinário desempenho e relevantes qualidades pessoais, contribuindo significativamente para a eficiência, prestígio e cumprimento da missão do EMGFA (Estado-Maior-General das Forças Armadas).
Foi a penúltima das cinco medalhas privativas a ser criadas, para premiar serviços em prol do Estado Maior General das Forças Armadas. Veio após as 3 medalhas privativas dos ramos, criadas em 1985, e antes da medalha privativa do Ministério da Defesa Nacional, criada 2 anos depois, em 2002.
Aplica-se à concessão da medalha o seguinte critério de atribuição: a oficial general e capitão-de-mar-e-guerra ou coronel, 1.ª Classe; a capitão-de-fragata ou a tenente-coronel e capitão-tenente ou major, 2.ª Classe; a outros oficiais e a sargento-mor, 3.ª Classe; e a outros sargentos e a praças, 4.ª Classe (vd art.º 27.º do Regulamento da Medalha Militar e das Medalhas Comemorativas das Forças Armadas, aprovado na sua redação atual pelo Decreto-Lei n.º 316/2002, de 27 de dezembro).
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Prestes a deixar o cargo de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general Artur Pina Monteiro, por seu despacho de 16 de fevereiro de 2018, concedeu ao Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança, Dom Manuel da Silva Rodrigues Linda, a “Medalha Cruz de São Jorge”, nos termos dos artigos 25.º, 26.º, 27.º e 34.º do Regulamento da Medalha Militar e das Medalhas Comemorativas das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 316/2002, de 27 de dezembro. Mais faz saber, segundo o teor do respetivo diploma, também datado de 16 de fevereiro, que, “como tal, poderá o mesmo usar as respetivas insígnias e usufruir as honras e regalias inerentes à distinção conferida”; e determina aos oficiais generais e demais chefes “que assim o reconheçam e observem devidamente”.
O diploma foi entregue em cerimónia apropriada nas instalações do Estado-Maior-General das Forças Armadas, no dia 23 de fevereiro, perante os Generais, Oficiais Superiores e Sargento-Mor que trabalham no EMGFA.
Em nota pessoal do Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança, publicada online no sítio do Ordinariato Castrense, lê-se que “a atribuição desta Condecoração possui tanto de agradável surpresa como de imprescindível gratidão”. E o prelado refere que aceitou a distinção com muita honra e invoca três razões:
Pela proveniência. Se todas as autoridades legitimamente constituídas merecem “elevado respeito”, o General Pina Monteiro é digno de “consideração acrescida” porque nele se vê “o Comandante competente, o ‘Soldado’ determinado e o Amigo fidelíssimo”.
Pelo significado de interligação com as Forças Armadas. O Bispo sabe “da consideração” que lhe “dedicam os homens e as mulheres que servem e constituem as nossas Forças Armadas” e garante que “essa estima é mútua”, não sendo, da sua parte, “de grau menor”.
Pelo reconhecimento à função da assistência religiosa. Entende o prelado castrense que, “nesta condecoração não está em causa tanto a pessoa do Bispo quanto o que se vai tentando fazer para o moral, bem-estar e dignificação das pessoas concretas e suas famílias” – “trabalho jamais realizado a título individual, mas pelo conjunto dos que constituem a assistência religiosa, mormente os Capelães”.
Por isso, Dom Manuel Linda reafirma o seu agradecimento, “mas, fundamentalmente, a imensa honra que esta condecoração representa” para si pessoalmente e para o serviço que coordena.
Tanto assim é que o Bispo vive a lógica sinodal do serviço eclesial que o sítio do seu Ordinariato sob a epígrafe “Nem só de Capelães vive a Assistência Religiosa”, noticia o público louvor “a quem a serviu exemplarmente”. Com efeito, por nota de 21 de fevereiro, foi comunicado que, “em virtude de o 1CAB  Carlos Tavares iniciar a formação na GNR, a partir de 26/02/2018, o CAR da FA (Chefe da Assistência Religiosa das Forças Armadas) louvou-o e entregou-lhe a grande ‘condecoração’: a imagem de Nossa Senhora do Ar”.
O despacho de louvor destaca, no militar, entre outros aspetos: as “excelentes qualidades profissionais e pessoais para o exercício das funções que lhe são confiadas, superando os objetivos com qualidade técnica superior e demonstrando exceder claramente o modelo de comportamento e o nível de competências descritas para a sua categoria, sendo a qualidade do seu trabalho reconhecida pelos seus pares e superiores hierárquicos”; o “elevado sentido de serviço, isenção, zelo e dedicação, os quais contribuem de forma inquestionável para o cabal cumprimento das missões atribuídas e para o prestígio do CAR”; o “notável espírito de equipa, com permanente vontade de atualização e melhoramento”; e as “excelentes relações interpessoais com os seus pares e com os seus superiores hierárquicos contribuindo deste modo, para fomentar de forma ativa o esforço da equipa a que pertence”.
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Ordinariato Militar para Portugal, conhecido como Ordinariato Castrense de Portugal ou Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança, é uma instituição canónica que organiza e acompanha, segundo critérios semelhantes aos das dioceses territoriais, os fiéis católicos presentes no setor militar e policial. Foi erigido canonicamente em 29 de maio de 1966, pelo Papa Paulo VI, pelo Decreto da Sagrada Congregação Consistorial “De Spirituali Militibus”, para assistir espiritualmente as Forças Armadas Portuguesas (Exército, Armada e Força Aérea) e as Forças de Segurança (Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança Pública).
Pela Constituição Apostólica “Spirituali Militum Curae”, de 21 de abril de 1986, o então Vicariato Castrense de Portugal, passou a designar-se Ordinariato Militar para Portugal.
Desde 1966 até maio de 2000, o Cardeal Patriarca de Lisboa acumulou as suas funções com as de Ordinário Castrense de Portugal, nomeando para este um vigário geral (
bispo ou sacerdote). Muitos ainda se lembram da ação desenvolvida por Dom António dos Reis Rodrigues, Bispo de Madarsuma e Auxiliar do Patriarcado; e eu trabalhei com o coronel capelão Joaquim Luís Cupertino, hoje Monsenhor e Cónego Capitular Jubilado do Cabido da Sé de Faro.
A 17 de março de 2001, o Papa João Paulo II anuiu ao pedido formulado pela Conferência Episcopal Portuguesa, separando o múnus do Ordinário Militar para Portugal do de Patriarca de Lisboa. Através de Bula da Santa Sé, de 3 de maio de 2001, o então Vigário Geral Castrense, Dom Januário Torgal Mendes Ferreira, foi nomeado Ordinário Militar para Portugal. Neste sentido, Dom Januário foi o primeiro bispo a governar exclusivamente o Ordinariato Militar, já que os seus antecessores (Dom Manuel Gonçalves Cerejeira e Dom António Ribeiro) acumulavam as funções de Patriarca com a de Ordinário Militar. Dom Januário passou a Emérito em 10 de outubro de 2013, pelo que, nessa data foi nomeado o novo Ordinário Militar para Portugal Dom Manuel da Silva Rodrigues Linda, até então Bispo Titular de Case Mediane e Auxiliar da Arquidiocese de Braga.
Tomou posse canónica em Fátima a 24 de janeiro de 2014 perante os sacerdotes seus diocesanos e foi nomeado Capelão Chefe por despacho conjunto dos Ministros da Defesa Nacional e da Administração Interna, a 8 de abril do mesmo ano.
O Ordinariato Castrense rege-se canonicamente pelos estatutos aprovados pela Congregação dos Bispos, em 3 de Setembro de 1988 e, militarmente, pelo Decreto-Lei n.º 251/2009, de 23 de setembro.
Pertencem ao Ordinariato e estão sob a sua jurisdição: todos os fiéis militares e aqueles que, por vínculo da lei civil, se encontram ao serviço das Forças Armadas, os membros das suas famílias (cônjuge, filhos, parentes e pessoas de serviço) que habitem na mesma casa; os que frequentam escolas militares e os que estão internados ou prestam serviço nos hospitais militares, nas casas para anciãos militares ou noutros institutos semelhantes; os fiéis que, de modo estável, desempenham funções no Ordinariato Castrense, confiadas ou consentidas pelo Ordinário Castrense. A ação do Ordinariato Castrense exerce-se através da Chefia dos Serviços de Assistência Religiosa das Forças Armadas, a qual depende, no aspeto militar, do Ministro da Defesa Nacional e, no aspecto canónico, do Ordinário Castrense, do qual é a respectiva Cúria.
São também setores integrantes do Ordinariato, com iguais direitos e deveres, as Forças de Segurança, ou seja, a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública.
O Serviço de Assistência Religiosa das Forças Armadas e das Forças de Segurança tem como órgão de cúpula, de natureza inter-religiosa, a Capelania Mor.
Dom Manuel Linda foi nomeado pelo Papa Francisco como ordinário castrense em Portugal a 10 de outubro de 2013, sucedendo então, como se disse, a Dom Januário Torgal Ferreira, que resignou por limite de idade.
O prelado era bispo auxiliar da Diocese de Braga, desde junho de 2009; nascido a 15 de abril de 1956 na Freguesia de Paus (Concelho de Resende, Diocese de Lamego), frequentou os Seminário Menor (Resende) e Maior (Lamego), e o Instituto de Ciências Humanas e Teológicas (Porto) tendo sido ordenado sacerdote, a 10 de junho de 1981, para a Diocese de Vila Real.
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Pela minha parte, devo dirigir ao antigo colega de estudos no Seminário Maior de Lamego, mais novo do que eu, as maiores felicitações e os melhores votos pelo êxito do trabalho pastoral que inspira, anima e coordena, na certeza de que a uns a dado semear para que outros de futuro possam colher os melhores frutos do trabalho persistente, doloroso, mas causador de alegria, sobretudo da alegria do Evangelho que é a missão da Igreja.
2018.02.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Morreu o militar das revolucionárias alfabetização e dinamização cultural


Quem de entre os contemporâneos da revolução do “25 de Abril” não se lembra das ações revolucionárias de alfabetização e dinamização cultural concretizadas sobretudo em ambientes rurais e suburbanos por equipas militares em regime de multidisciplinaridade?
Tais ações que incluíam atividades de apoio às populações mais deprimidas e mais afastadas dos benefícios da civilização e envolvidas na ancestralidade cultural, eram desenvolvidas sob a égide da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, o departamento responsável pela alimentação ideológica da chama revolucionária e em que pontificava como chefe João Varela Gomes, coronel de artilharia – que, diga-se, deu lugar a alguns abusos locais.
A 5.ª Divisão, que fora criada para organizar a informação e propaganda do MFA (Movimento das Forças Armadas) durante o PREC, era responsável pelos programas de rádio e de televisão do MFA, além da publicação dum boletim e da organização de sessões de esclarecimento sobre o programa revolucionário por todo o país – encontros que ficaram conhecidos sobretudo como de “Dinamização Cultural”. Contudo, foram tidos, pelos setores da sociedade portuguesa de então mais conservadores e de outros que defendiam preferencialmente um sistema de democracia representativa de inspiração ocidental, como uma interferência dos militares na vida política do país. Este departamento político-militar – em razão da figura do chefe, visto por muitos como próximo do Partido Comunista Português – ficou historicamente encostado aos setores radicais da esquerda que, durante o PREC, mostraram opor-se, na linha sustentada pela figura do general Vasco Gonçalves, à implementação dum sistema político assente no parlamentarismo e na escolha dos representantes do povo com base em eleições por voto secreto e universal.
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Ora, segundo anunciou em primeira mão a RTP, morreu esta segunda-feira, aos 93 anos, em sua casa, Varela Gomes, importante figura, não só do 25 de Abril, mas também da resistência contra a ditadura de Salazar, que esteve no Golpe de Beja com Humberto Delgado, em 1961. Porém, a memória mais recente reconhece-o como uma das principais figuras do PREC (Período Revolucionário em Curso) em chefe da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas que incomodou muitos, sobretudo o então embaixador dos EUA em Portugal, Frank Carlucci.
João Maria Paulo Varela Gomes nasceu em 24 de maio, em Lisboa, e entrou para a Escola do Exército, em 1943, cursando em Artilharia.
A nota biográfica que acompanha a notícia da RTP detalha que este, que foi um dos militares mais ativos politicamente antes e depois do 25 de Abril, entrou na clandestinidade depois do 25 de Novembro de 1975, para escapar ao mandado de captura emitido em seu nome, tendo saído do país para Cuba via Espanha e, depois, para Angola, tendo regressado a Portugal só em 1979.
Em reação à notícia, o coronel Vasco Lourenço, Presidente da Associação 25 de Abril, em declarações à agência Lusa, considerou-o uma figura “muito importante na história do século XX em Portugal” e “um grande lutador contra a ditadura e contra o fascismo”. Depois do 25 de Abril, acrescentou, “também se envolveu apaixonadamente, como fazia sempre, em coisas positivas e outras menos positivas”. “Prefiro recordar as positivas”, enfatizou Vasco Lourenço.
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Durante o Estado Novo, ditadura travestida de democracia unitária, orgânica e corporativa, sucessora da Ditadura Militar iniciada por Gomes da Costa e transformada em Ditadura Nacional por Salazar no exercício de Ministro das Finanças e sob a égide do Marechal Carmona, Varela Gomes teve notória participação ativa contra o regime, tendo sido um dos participantes ativos do chamado Golpe de Beja, na noite de passagem de ano de 1961 para 1962, onde foi ferido com gravidade, juntamente com, entre outros, Manuel Serra e Eugénio Oliveira, vindo este a ser, mais tarde, grão-mestre da loja maçónica do Grande Oriente Lusitano (GOL).
Naquela madrugada, um grupo de militares, encabeçado por Humberto Delgado, tentou tomar o quartel do Regimento de Infantaria 3, em Beja. A revolta acabou por ser travada pelas tropas de Salazar, com duas mortes pelo meio, incluindo a do Subsecretário da Defesa, Jaime Fonseca.
Em entrevista à RTP em 1975, Varela recordou que não foi o autor daquele golpe, atribuindo o mérito a Manuel Serra e assumindo-se apenas como dirigente operacional do golpe.
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Além de toda a luta contra a ditadura, Varela Gomes foi ainda uma das figuras da Revolução dos Cravos e chegou a ser designado como “o primeiro capitão de abril”.  Militar, antifascista e revolucionário até ao fim, foi um militar de abril e um dos últimos a depor armas no 25 de Novembro, no fim da revolução.
Aquando do golpe de Beja, como disse em entrevista à RTP, em 1975, acreditava que “o fascismo tinha os dias contados”, mas teve de esperar mais 12 anos. Em 1964, foi julgado pelo tribunal plenário e fez um discurso contra a ditadura, com ecos na imprensa estrangeira, devido ao brado “Outros triunfem onde nós fomos vencidos” para salvação da “Pátria bem-amada”.
Após o 25 de Abril, o golpe que se transformou em Revolução dos Cravos, foi reintegrado no Exército e tornou-se uma das figuras centrais da 5.ª Divisão, dependente do Estado-Maior General das Forças Armadas e encarregada de organizar as campanhas de dinamização cultural, associadas à chamada “esquerda militar”. Varela Gomes e a 5.ª Divisão tiveram papel ativo na derrota do golpe do 11 de Março de 1975, ligado à direita e a Spínola, que foi o primeiro Presidente da República após o 25 de Abril. Depois do ataque de paraquedistas de Tancos contra o Ralis, em Lisboa, e de pedir ação da Presidência da República, Varela Gomes decidiu enviar uma mensagem a todas as unidades, apelando à resistência – atitude que lhe valeu a acusação de “usurpação de funções”, que o próprio, em entrevista à RTP, em 2015, explicou como uma “usurpação revolucionária”. Em 1975, esteve duas semanas em visita a Cuba, encontrando-se, por duas vezes, com o líder cubano, Fidel Castro, e o seu irmão Raul. Nesse ano, dá-se o 25 de Novembro, o movimento militar de 1975 que significou o princípio do fim da revolução e que a “esquerda militar” e o PCP consideram a “contrarrevolução”.
Varela Gomes foi dos últimos a abandonar a defesa dos “revolucionários” no terreno, o que levou o jornal norte-americano The New York Times a associá-lo à revolta dos paraquedistas, como recordou António Louçã, autor da biografia “Varela Gomes: que outros triunfem onde nós fomos vencidos”. Do Copcon (Comando Operacional do Continente), dirigido pelo estratega do 25 de Abril Otelo Saraiva de Carvalho, contactou várias unidades militares para saber se iam resistir. No entanto, ganha o grupo dos nove, os “moderados”, e Varela Gomes passou a viver na clandestinidade até janeiro de 1976, sendo 4 anos no exílio. Fugiu para Espanha, Cuba e, depois, viveu em Angola, tendo regressado em 1979, antes da promulgação duma lei de amnistia, e sendo, nos anos 80, associado à tentativa duma candidatura da esquerda a eleições europeias e autárquicas. Manteve, até final, opiniões polémicas, sobre a nossa democracia, que apelidou de “democracia filofascista”, filha do “25 de Novembro” que, durante anos, quis “descomemorar”. E escreveu vários livros, entre eles: “A Contrarrevolução de fachada socialista” e “Tempo de Resistência” (1980) e “Esta democracia filofascista” (1999).
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O “golpe de Beja”, organizado com os cuidados conspirativos possíveis, não era o produto de laboratório duma decisão voluntarista; era, antes, a expressão militar do sobressalto que vivia o país – a campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958, e o início da guerra colonial, em 4 de fevereiro de 1961. Varela assumiu o ceticismo intelectual existente até à campanha de Delgado, frisando que tal cepticismo foi estilhaçado pelo entusiasmo popular em torno de Delgado que passara pela experiência de pôr na rua centenas de milhares de pessoas ao visitar o Porto com a sua enorme popularidade e apostava que, com um quartel, sublevaria o país inteiro.
O ano de 1961 é visto como o annus horribilis para Salazar: a tomada do paquete Santa Maria (janeiro), a revolta independentista em Angola (fevereiro), a rebelião de generais incluindo o Ministro da Defesa Nacional (abril), a condenação de Portugal na ONU, as eleições (novembro), a anexação de Goa pela União Indiana (dezembro) – uma “cascata de acontecimentos”.
Varela Gomes assumiu-se apenas como dirigente operacional do golpe. E, nessa qualidade, não devia ter sido ele a prender o 2.º comandante do quartel, major Calapez Martins. Daí resultou ferido com gravidade e foi jugulada a revolta na fase inicial. Recordando o médico Ludgero Pinto Basto, Varela Gomes disse que ficou a dever-lhe a vida, a ele e a Carlos George, depois de ser ferido na Revolta de Beja. Uma equipa médica fora enviada de Lisboa para tratar os feridos do lado governamental – apenas o Subsecretário da Defesa, abatido por “fogo amigo” da GNR. Verificado o óbito, a equipa médica iria despachada para Lisboa pela PIDE, mas o chefe, Sabido Ferreira, fez valer as instruções que trazia de Carlos George e de Ludgero Pinto Basto: só deixar Beja quando tivesse tratado também os feridos do lado dos insurretos.
Maria Eugénia Varela Gomes recordou em entrevista à RTP, em 1975, que, à notícia do fracasso da revolta e dos ferimentos do marido, partiu para Beja com o irmão e o pai, atravessando um Alentejo que parecia um país ocupado. Mas recorda também, nesse ambiente opressivo, como foi sempre amparada por gestos de solidariedade e simpatia da população. À porta do hospital, a polícia recusava dizer-lhe se o marido estava vivo ou morto; e Maria Eugénia insistiu até obter resposta. Só em finais de janeiro, recebia a 1.ª carta do seu João, que, ainda a fazer uma convalescença difícil, tardara vários dias a escrever – a lápis.
A 11 de março de 1975, aviões da Força Aérea e uma força de paraquedistas de Tancos atacaram o Ralis, em Lisboa, causando um morto e vários feridos. Mas o Ralis não se rendeu, ganhou tempo e era preciso usar esse tempo para enfrentar o golpe. Na 5.ª Divisão do EMGFA, Varela Gomes ligou para a Presidência da República e para o Copcon, a pressioná-los para tomarem medidas e foi recebendo respostas evasivas. Decidiu então tomar medidas por sua conta: mandar uma mensagem para todas as unidades apelando à resistência e emitir pela rádio e pela televisão um apelo à mobilização popular – vindo a ser acusado de usurpação de funções por ter tomado essas medidas perante a iminência duma guerra civil. Em entrevista de 2015 à RTP – uma das últimas que concedeu – assumiu ter cometido usurpação revolucionária. E contou o que passou aos relatores do 25 de Novembro: ainda no dia 26, enviou uma delegação a Tancos para se inteirar da disposição que pudessem ter os paraquedistas para resistir ao estado de sítio decretado na Região Militar de Lisboa.
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Outro dos temas que serviram de arma de arremesso contra a sua atuação no 11 de Março foi a participação na assembleia de mais de 200 militares, reunida na noite de 11 para 12.
A 25 de abril de 1975, dia das eleições constituintes, Varela Gomes encontrava-se em Cuba, no âmbito da missão que aí fora enviado e cujos objectivos explicou no regresso.
Jorge Golias, hoje coronel e, à data, um dos mais destacados capitães de Abril, integrava a delegação. Em outubro de 2017 relatou, em entrevista à RTP, os aspetos fundamentais da visita, bem como a composição do grupo enviado e o papel de Varela Gomes à cabeça da delegação.
Juntamente com o embaixador português, José Fernandes Fafe, Varela organizou na Embaixada uma comemoração do 1.º aniversário do 25 de Abril. Aí estiveram como convidados Fidel e Raul Castro. Foi nessa circunstância que ocorreu uma das duas reuniões que tiveram lugar com o líder cubano. Nas mais de duas semanas que ela durou, Raul Castro, a 2.ª figura da hierarquia do Estado, acompanhou a visita pari passu. À delegação atribuía-se importância considerável, refletindo o significado que em Cuba se reconhecia ao nosso processo revolucionário. Golias refere esse acompanhamento e um outro, da parte de agentes da segurança cubana, que a delegação considerara excessivo e desnecessário, sendo Varela Gomes, entre todos, quem teve reações mais veementes contra a irritante presença policial.
Dois temas do intercâmbio com Cuba, que Varela referiu, foram objeto de preocupação da Embaixada norte-americana: “a formação ideológica nas Forças Armadas cubanas e a organização da população para tarefas de defesa da revolução”. A seguir, a Embaixada fez diligências junto da 5.ª Divisão para esclarecer se não estaria a realizar-se a doutrinação de caráter comunista nas Forças Armadas. Além dessa inquirição direta e frontal, realizavam-se diligências de bastidores para enfrentar o alegado perigo de se criar em Portugal uma “Cuba da Europa”. E, paralelamente às diligências citadas, Frank Carlucci enviava telegrama ao chefe em Washington, Henry Kissinger, dizendo da preocupação pela eventualidade de a 5.ª Divisão pôr em prática as ideias que Varela trouxe de Cuba, com a possível criação de Comités de Defesa da Revolução de modelo cubano.
Em Portugal, Varela Gomes era, entretanto, alvo da política de ostracização, que tentou negar-lhe lugar entre os 200 membros da Assembleia do MFA. Com efeito, o Centro de Sociologia Militar da 5.ª Divisão levava a cabo um esforço considerável para desenvolver uma rede de contactos com comissões de trabalhadores e com unidades coletivas de produção na zona de intervenção da reforma agrária, dando um passo em frente em relação às campanhas de Dinamização Cultural da CODICE (integrada na 5.ª Divisão): onde dantes se procurava combater o atraso e o caciquismo sobre as populações pobres do Interior, agora passava a haver da parte do MFA também a atividade dirigida aos setores mais dinâmicos da revolução – trabalhadores industriais em fábricas nacionalizadas e assalariados rurais em herdades ocupadas. Mas, contra o que receava a Embaixada dos EUA, Varela opunha-se a um projeto de “Poder Popular” que obliterasse a importância dos partidos. Golias, que elaborou o rascunho do Documento-Guia para a Aliança Povo-MFA, diz que Varela valorizava a importância dos partidos, mas viu o seu escopo desvirtuado pela pressão antipartidária. Também Diniz de Almeida confirmou a oposição de Varela às veleidades de dissolução dos partidos nos órgãos de “Poder Popular”.
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A História fará o seu juízo sobre a índole revolucionária deste combatente e o Futuro também!
2018.02.27 – Louro de Carvalho

Fazer Caminho: Das Pedras ao Fogo da Páscoa


É o título da brochura que dá corpo à reflexão quaresmal da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), organismo da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que insere no caminho da Páscoa o terrorismo, a pobreza, a privatização dos CTT e a poluição no Tejo.
No seu documento, datado de 21 de fevereiro de 2018 e ontem (dia 26) divulgado, a CNJP “afirma, contextualiza e expande” a Mensagem do Papa para a Quaresma, redigida em torno do tema “Porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos!. Ante a verificação de que a humanidade vive “tempos difíceis”, que são “ameaças” à sobrevivência, a CNJP denuncia situações de desigualdade social e indica propostas para “transcender as situações de violência e injustiça”. E, declarando que “impressiona a clareza do Papa em nomear as duas causas tão concretas do ‘resfriar do amor’, a nível pessoal e ‘também nas nossas comunidades’ – a ganância e a recusa de Deus” – no documento, denunciam-se o não acesso “pleno e tempestivo” de todos os portugueses à saúde” (apesar dos “bons resultados” do Serviço Nacional de Saúde), a “poluição criminosa” dos rios, como documentam as “imagens dramáticas” do Rio Tejo, e a “marginalização dos idosos”.
Parece não ter remédio “a triste marginalização dos idosos”, bem como “o ‘esquecimento’ das populações do interior”, sendo paradigmático o exemplo recente dos CTT, “porque a tomada de decisão teve como base um maior lucro e não a reorganização de  um serviço de atendimento aos cidadãos, nomeadamente os mais isolados”.
Este organismo da CEP realça, por outro lado “algumas iniciativas muito belas”, como a aplicação informática “SOS idosos” feita por um grupo de jovens na sua escola”.
Mas a CNJP não pode esquecer a guerra “em lume brando”, com expressão nos “conflitos locais” em curso, os “extremismos nacionalistas renascendo na Europa” e a instalação de “novos fundamentalismos”. E tem de ficar patente que “o terrorismo não tem fronteiras”, pelo que todos “experimentamos no nosso quotidiano a insegurança e o medo, a desesperança”. Mais: o ambiente geral é o da globalização económico-financeira que, em vez de nos dar maior solidariedade, “nos atrofia e abafa com tentáculos invisíveis”. Com efeito, “o ultraliberalismo do ‘salve-se quem puder’ é, no mundo, uma realidade”: instalou-se na educação, saúde, justiça, apoio e segurança social, trabalho, emprego e uso da terra. E, a par disto, institucionalizou-se o uso e abuso da informática e internet a ponto de o “excesso de relações online”, sobretudo nos adolescentes que “ainda não têm a mínima capacidade de autocontrolo no uso das redes sociais e afins”, poder atingir um estado de “rotura comunicacional”.
A reflexão quaresmal da CNJP lembra ainda, por causa dos incêndios, os “problemas mais profundos quanto à distribuição geográfica da população e à concentração das pessoas em megacidades”, onde o crime e a violência se instalam de par com “um outro tipo de pobreza que retira qualquer dignidade ao quotidiano das pessoas” e reduz tudo à “luta pela sobrevivência”. Assim, “anunciam-nos que a taxa de desemprego baixou” (boa notícia), mas são baixos os salários e é precária a situação contratual, grassa o desemprego juvenil, a corrupção no desporto (e mais setores da atividade económica, social e política) e não diminui a violência doméstica. E, além da violência domestica – ficando evidenciada “a incapacidade das forças de segurança, e mesmo da justiça, de atenderem a este flagelo que tem ceifado muitas vidas, nomeadamente de mulheres” –, denuncia-se uma “nova praga”: a “violência no namoro”. Por todas estas razões, “temos um dever para com o futuro” e desejamos que “a fé no futuro nos mantenha os olhos abertos”.
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Para lá de seguir de perto o Evangelho, a Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma e a encíclica Laudato Si’, o documento da CNJP estrutura-se glosando o seguinte segmento poético de António Ramos Rosa:
Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não ervas. (...) Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos, nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.” (António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra).
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- Sem dizer o fogo – vou para ele
O Papa, com a vista no encontro pascal, convida à conversão na linha da qual “a caridade pressupõe a justiça, a justiça deve ser completada com a caridade”. E diz de modo contundente:
O que apaga o amor é, antes de mais nada, a ganância do dinheiro, ‘raiz de todos os males’ (1 Tm 6,10); depois dela, vem a recusa de Deus e, consequentemente, de encontrar consolação n’Ele, preferindo a nossa desolação ao conforto da sua Palavra e dos Sacramentos. Tudo isto se transforma em violência que se abate sobre quantos são considerados uma ameaça para as nossas ‘certezas’: o bebé nascituro, o idoso doente, o hóspede de passagem, o estrangeiro, mas também o próximo que não corresponde às nossas expectativas.”
São as tentações da quarentena de dias no deserto: o dinheiro, cobiça e riqueza – que tentaram acossar Cristo. E nós, se não discernirmos e combatermos essas tentações, viveremos de coração empedernido, “ficaremos sentados num trono de gelo”, correndo o risco de apagar o Amor.
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- Sem enunciar as pedras, sei que as piso
Enunciando algumas das “pedras” que ameaçam nossa sobrevivência, o Papa faz denuncia:
“A própria criação é testemunha silenciosa deste resfriamento do amor: a terra está envenenada por resíduos lançados por negligência e por interesses; os mares, também eles poluídos, devem infelizmente guardar os despojos de tantos náufragos das migrações forçadas; os céus – que, nos desígnios de Deus, cantam a sua glória – são rasgados por máquinas que fazem chover instrumentos de morte.”
Neste contexto, deparamo-nos com extremismos nacionalistas a renascer na Europa e a gerar novos fundamentalismos, a par da globalização e intensificação da crise económico-financeira e do enredamento na vida completamente virtual.
E, enquanto “mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 foi parar às mãos dos mais ricos que representam 1% da população mundial”, crescendo o fosso entre os poucos ricos e torna-se cada vez mais evidente a enorme massa de pobres, “o mundo transformou-se no parque de diversões das empresas”.
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- Duramente, são pedras e não ervas
Tropeçamos nos falsos profetas que abundam e “se aproveitam das emoções humanas para escravizar as pessoas”. E, a este propósito, a CNJP questiona:
Que dizemos da televisão e dos media que temos? Como intervimos face à panóplia de programas televisivos e afins que puxam “por tudo o que é emoção e nos prendem por aí”? Que fazemos contra dispositivos de entretenimento viciantes?”.
E é aqui que se enquadra a denúncia da corrupção, violência doméstica e no namoro, poluição criminosa, precariedade de emprego, salários miseráveis, difícil acesso a saúde, abandono de idosos e do interior do país, intoxicação das consciências e manipulação de toda a ordem.
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- Tudo o que sei, já lá está...
Pegando do Evangelho, vemos que Jesus não excluiu ninguém e acolheu a todos, mesmo os leprosos, que a tradição judaica considerava impuros. Cristo devolveu a dignidade aos que são excluídos em função das suas ideias, condição social, opções de vida ou cultura. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar a incluir a todos. Já o sabemos, mas não sabemos com o corpo, o espírito, a carne. Meditemos então na Palavra:
Estando Jesus sentado no Monte das Oliveiras, os discípulos aproximaram-se e perguntaram-lhe em particular: ‘Diz-nos quando acontecerá tudo isto e qual o sinal da tua vinda e do fim do mundo’. Jesus respondeu-lhes: ‘Tende cuidado para que ninguém vos desencaminhe. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: Sou eu o Messias. E hão de enganar muita gente. Ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras, mas não vos assusteis’. […] Então, se vierem dizer-vos: ‘Aqui está o Messias’, ou ‘Ali está Ele’, não acrediteis; porque hão de surgir falsos messias e falsos profetas, que farão grandes milagres e prodígios, a ponto de desencaminharem, se possível, até os eleitos. Olhai que já vos preveni. Por isso, se vos disserem: ‘Ele está no deserto’, não saiais; ‘Ei-lo no interior da casa’, não acrediteis. Porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e brilha até ao Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem…”.
Séculos após séculos, Cristo continua a relembrar o caminho que temos de fazer em comum. E alerta e interpela os discípulos a que não se iludam com falsas palavras.
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- ... Mas [ainda] não estão os meus passos, nem os meus braços.
Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do Homem há de vir” (Mt 25,13).
O Evangelho convida-nos a ser/estar vigilantes não deixando de contemplar o belo, o bom, o justo. É na alegria e na esperança que queremos ser interpelados nesta Quaresma. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar o caminho da Ressurreição. E Francisco diz-nos:
Se porventura detetamos, no nosso íntimo e ao nosso redor, os sinais acabados de descrever, saibamos que, a par do remédio, por vezes amargo, da verdade, a Igreja, nossa mãe e mestra, nos oferece, neste tempo de Quaresma, o remédio doce da oração, da esmola e do jejum”.
E a CNJP sublinha que o apelo à oração, à esmola e ao jejum é universal”, ou seja, é dirigido a todos os homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus.
Assim, teremos de rezar a nossa indigência, descobrindo os padrões de vida que nos impedem de “estar” em Deus e predispondo o nosso corpo para que o silêncio possa fluir. Comecemos por rezar por nós para depois, ou simultaneamente, trazermos ao patamar de Deus tudo o que nos aflige e que foi anteriormente enunciado. E, se não o conseguirmos fazer, balbuciemos palavras repetidas em jaculatórias que bem conhecemos ou recitemos o Pai Nosso (a Oração que o Senhor nos ensinou) e alimentemo-nos do pão da Eucaristia, sinal da Cruz e sinal de Ressurreição.
A esmola liberta-nos da ganância e ajuda a descobrir que o outro é nosso irmão: “o que possuo, nunca é só meu”. Deveremos, pois, viver ao jeito dos primeiros cristãos, em que cada um recebia estritamente o que lhe era necessário. Para tanto, é preciso que o espírito de Quaresma se prolongue ao longo do ano, dos anos, da nossa vida inteira.
E como definimos o que nos é necessário em contraponto à necessidade dos outros? Vale a pena fazer uma análise crítica e séria (e um sério exame de consciência). Relatórios e estudos científicos afirmam possível a qualidade de vida para todos se alguns se predispuserem a viver com menos. E o Papa critica a ganância e desafia-nos a ser generosos com os bens que possuímos:
Por fim, o jejum tira força à nossa violência, desarma-nos, constituindo uma importante ocasião de crescimento. Por um lado, permite-nos experimentar o que sentem quantos não possuem sequer o mínimo necessário, provando dia a dia as mordeduras da fome. Por outro, expressa a condição do nosso espírito, faminto de bondade e sedento da vida de Deus. O jejum desperta-nos, torna-nos mais atentos a Deus e ao próximo, reanima a vontade de obedecer a Deus, o único que sacia a nossa fome.”.
Como pode ser o jejum para cada um? Por exemplo, pela escolha dum estilo de vida simples e frugal em que o pão pode ser partilhado em alternativa a uma “programação das nossas mentes” para a “satisfação imediata”. Se queremos formar os nossos filhos para uma sã disciplina na alimentação, começaremos por nós. Mas não deixaremos de usufruir do que comemos e bebemos porque tudo o que é bom é dom de Deus. E o melhor “jejum” será o de outras coisas: a maledicência, a pequena e a grande inveja, a autocomiseração, o pessimismo. E, ainda, evitar a obsessão por férias e “escapadelas”, já que o descanso é essencial, mas não pode tornar-se bem alienante e “consumidor” das almas. Procedamos ao exemplo de Deus que, no último dia da Criação, quis descansar para contemplar a Sua obra. Contemplemos, usufruamos, alegremo-nos, demos graças pelo que temos e sejamos generosos para os que não têm. Lá diz o Livro Santo:
O jejum que me agrada não será antes este: quebrar as cadeias injustas, desatar os laços da servidão, por em liberdade os oprimidos, destruir todos os jugos? Não será repartir... dar pousada... levar roupas... não voltar as costas ao seu semelhante?” (Is 58, 8-10).
Conclui o Papa Francisco:
Gostaria que a minha voz ultrapassasse as fronteiras da Igreja Católica, alcançando a todos vós, homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus. Se vos aflige, como a nós, a difusão da iniquidade no mundo, se vos preocupa o gelo que paralisa os corações e a ação, se vedes esmorecer o sentido da humanidade comum, uni-vos a nós para invocar juntos a Deus, jejuar juntos e, juntamente connosco, dar o que puderdes para ajudar os irmãos!”.
É a forte interpelação do Papa a todos (sem distinção de credos ou raças e culturas, localização geográfica ou fronteiras, escolhas e modos de vida... quer afirmemos Deus quer não O afirmemos). E é o convite à tolerância em contraponto à inflexibilidade, à transcendência em contraponto ao imediato, não deixando que a falta de misericórdia congele os corações. Cristo convida-nos a ir além da Lei e a instalarmos o Reino do Amor. Temos, pois, “um dever para com o futuro”.
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- Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu.
Segundo Maria de Lourdes Pintasilgo, “assim se conjuga esta interioridade e presença ao mundo”, “uma constante interpenetração da fome e da sede por um mundo diferente e por si mesmo diferente”. Há que agir com e em consciência, criticar e denunciar o que não está bem, mas, simultaneamente, refletir no coração e deixar que se instale a fome e sede de Deus. O caminho do “povo de Deus” está cheio de pontos de rutura, de interceções e violência, de infidelidades e recuos na Fé em Deus. Somos homens e mulheres pecadores que precisam, dia após dia, de limpar a alma aquecendo o seu coração de pedra. Precisamos da Quaresma: para prepararmos o coração para receber o Cristo Ressuscitado que “faz novas todas as coisas”.
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- ... E nesse intervalo, caminho e descubro o meu caminho.
Temos de rezar com e pelo Papa e comprometer-nos com ele a tomar em mãos o “ardor evangélico”, tal como Paulo fez: “Ai de vós se não evangelizardes!” Mas não podemos “evangelizar outros” se não nos despirmos das nossas distorções interiores, dos nossos fundamentalismos, da dicotomia “nós/eles”. Afirma Santo Agostinho:
Vamos ver quem bebe da torrente no caminho. E em primeiro lugar o que significa esta torrente? É a imagem da vida humana que corre. Assim como a torrente se forma das águas e da chuva abundante, e inunda, faz barulho, corre e, correndo, desliza até completar o seu curso, assim acontece com esta torrente de tudo o que é mortal [....] Nascimento e morte, eis a torrente. [...] E porque ele bebeu da água da torrente ‘ergueu a sua fronte’.”.
Assim, a CNJP exorta:
 Vamos erguer as nossas frontes em alegria e júbilo: tomemos o Amor como caminho para as nossas vidas, porque o Amor é também o caminho que nos oferece o Evangelho de Jesus. Rezemos ao Deus de Jacob que, nas palavras do Salmo 113, ‘transformou o rochedo em lago e a pedra em fonte de água’ (aliás Sl 114/113,8). Assumamos a nossa ‘condição anímica de caminhante’ (Edith Stein). Aproximemos o ouvido do coração, pois dele ‘brotam as fontes da vida’ e aprontemo-nos a acolher o ‘fogo’ de Deus, o fogo da Páscoa de Cristo Ressuscitado!”.
Quererão os cristãos portugueses deixar morrer o fogo da Páscoa ou enveredar por um caminho de frugalidade digna com vista à partilha solidária rumo a maior justiça social e à fraternidade?
2018.02.27 – Louro de Carvalho