É a grande referência que o Presidente da República fez
ao Padre Dâmaso Lambers, sacerdote luso-holandês que se distinguiu pela pastoral
das prisões e pela comunicação através da Rádio Renascença e que faleceu no
Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, no passado dia 22 de fevereiro, com 87
anos de idade. Escreveu Marcelo Rebelo de Sousa em nota publicada na página Web da Presidência da República:
“Morreu um Homem Bom, que fez da Santidade o
seu caminho, sempre ao lado dos mais necessitados; o Padre Dâmaso Lambers,
nascido na Holanda mas que morreu, como era seu desejo, em Portugal, país que
fez seu há mais de seis décadas”.
O Chefe de Estado prestou, assim, homenagem ao homem
que viveu “uma vida feita de constante dádiva, mas também de combate pela
Liberdade” e que, a 10 de junho de 2009, o então Presidente da República,
Cavaco Silva, agraciou com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Mérito. Marcelo
conclui, na mensagem divulgada através da Presidência da República:
“O Padre Dâmaso deixa, na Rádio Renascença e
nos seus ouvintes, nos ex-reclusos que quis reintegrar através d’O Companheiro, em cada um dos que foram
tocados pela sua Alegria, um testemunho vibrante de Fé e de amor pelo próximo”.
Era inconfundível o sotaque arranhado e o entusiasmo com
que falava da vida. “Jesus é fantástico!”, não se cansava de repetir. Dâmaso
Lambers nasceu na Holanda, sofreu a II Guerra Mundial e, aos 27 anos, passou a
dedicar a vida a Portugal. Conhecido como o padre das prisões, nunca aceitou a
normalização da pobreza, fez da Renascença a segunda paróquia e a sua cátedra.
Morreu deixando por onde passou um rasto de amor paciente, não interesseiro.
***
Hermano
Nicolau Maria Lambers – de seu nome de nascimento e de Batismo – nasceu a 9 de
junho de 1930 na Holanda, ainda na ressaca na I Guerra Mundial. Sendo o mais novo de seis irmãos,
adoecera aos poucos meses de idade; e os pais consagraram-no a Deus e
entregaram-no aos cuidados de Santa Teresinha. Salvou-se. Aos 7 anos, fez a
Primeira Comunhão e desde aí recebeu o Senhor todos os dias da sua vida.
Tinha 10
anos quando as tropas nazis de Adolf Hitler invadiram o país. Cruzava-se com os
soldados alemães na missa de domingo e passava os dias a procurar lenha para
aquecer os idosos e doentes, porque os invasores roubavam todo o carvão. No
meio da guerra, da destruição e da morte de vizinhos, amigos e conhecidos, Hermano
começou a refugiar-se na fé, desaparecendo, muitas vezes, de perto dos irmãos
para ser encontrado pouco depois, de joelhos, a rezar no quarto. Ainda Hitler
não se tinha rendido quando manifestou a intenção de ser padre. Porém, ao
atingir a idade de preparação para concretizar tal desígnio (18 anos), os seminários holandeses estavam totalmente
destruídos pelos bombardeamentos. Foi, pois, orientado pelos padres da
Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria – à qual se juntou mais
tarde – e foi ordenado em 1955, aos 25 anos. Foi nessa altura que adotou o nome
Dâmaso.
A 7 de maio de 1945, em Reims, os alemães assinaram a
rendição. Era a capitulação do regime nazi e o fim da II Guerra Mundial. Dâmaso
passou os anos da guerra na Holanda ocupada pelos alemães. Tinha 15 anos quando
o conflito acabou, mas foi no último dia de combates, junto à sua cidade,
Breda, que viveu os verdadeiros horrores da guerra.
O jovem queria
ser missionário em terras exóticas: segundo alguns, na América Latina, segundo
outros, na Polinésia, e ainda, segundo outros, nas ilhas Cook e na Nova
Zelândia. Porém, o
superior provincial disse-lhe que o Cardeal-patriarca de Lisboa precisava de
três padres para as missões populares na Província. E, embora tendo visto a
mudança de planos com um natural desagrado, tal como fez sempre, obedeceu.
Assim, em 1957, veio para Portugal, donde nunca mais se foi embora. Instalou-se
num convento na Penha de França, onde estava a congregação dos “Sagrados do Coração de Jesus e Maria” de
que era membro. Aquela zona da cidade era pobre. Eram muitas as barracas, que se
espalhavam pelas encostas dos arredores. Começou na JOC com o trabalho social
de acolhimento aos pobres e acabou a construir uma pequena capela para celebrar
missa para eles e no meio deles. Um pouco mais tarde, viveu o seu período mais
feliz como pregador dos Cursilhos de Cristandade cujo movimento ajudou a
introduzir em Portugal. Dois ou três anos depois de chegar a Lisboa já era um
pregador conhecido e o Padre João Gonçalves, que participara no movimento em
Espanha, pediu-lhe ajuda para trazer o movimento para Portugal. Fê-lo durante
muitos anos e experimentou com isso uma felicidade crescente, mas sem porquê a
hierarquia afastou-o desse trabalho.
Sentiu-se injustiçado a ponto de nem
o sentido de perdão e o apurado senso de obediência terem permitido que tal
ferida sarasse totalmente, pois, sempre que falava do assunto, parecia que se
lhe turvava o olhar – parecendo esta a única coisa “imperdoável” para este
padre luso-holandês.
Entretanto,
dois anos depois de estar a viver em Portugal, foi convidado para dar uma
conferência na prisão feminina de Tires: correu tão bem que o convidaram para
repetir a exposição noutras cadeias, um pouco por todo o país. Embora, a
princípio, nem achasse grande ideia o ser-lhe confiado, como se de paróquia
itinerante se tratasse, o serviço nas prisões, a sua índole pragmática de
nórdico fez-lhe perceber que tinha ali encontrado a sua principal vocação, pelo
que acolheu obedientemente o pedido do Prelado.
Primeiro
como visitador, depois como capelão, ajudou inúmeros homens e mulheres a
encontrar Jesus dentro de quatro paredes. Ficou conhecido como o “padre das prisões”.
Porém, a
dada altura, reconheceu que pregar a Boa Nova e ajudar com bens ou com o
próprio dinheiro deixou de ser suficiente. Decidiu, por isso, fundar, em 1987, “O Companheiro”, uma organização que
ainda existe e que se dedica a ajudar ex-reclusos a reintegrar-se na sociedade.
Entretanto, conheceu o Monsenhor Lopes da Cruz, fundador da Rádio Renascença, e
tornou-se colaborador da Emissora Católica até ao fim da vida. Foi presença
diária com o programa “Caminhos da Vida”
e mentor para muitos que por lá passaram. Nas novas instalações da Rádio
Renascença, na Quinta do Bom Pastor, na Buraca, existe uma sala com o seu nome.
Na verdade, além da obra relacionada com a Pastoral penitenciária, de que foi
pioneiro, que incrementou e a que deu pernas para andar – trabalho que, marcou
profundamente a sua vida, segundo confessou à agência Ecclesia, por ocasião dos 60 anos da sua ordenação sacerdotal, em
2015, quando foi lançado
o livro Uma vida de Doação –, tornou-se
conhecido como “Voz da Rádio
Renascença”.
Esta voz finou-se
aos 87 anos. O corpo esteve em câmara
ardente na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica a partir das 16 horas
do dia 23. O Cardeal-patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente, presidiu
ali à celebração das exéquias solenes às 10,30 horas
do passado dia 24 – celebração que juntou diversas personalidades, entre elas o
anterior e o atual presidente do Conselho de Gerência da Rádio Renascença, os cónegos
João Aguiar e Américo Aguiar.
O corpo do Padre Dâmaso Lambers passou às
16,30 horas pelo estabelecimento prisional do Linhó, onde acompanhou vários
reclusos e seguiu, depois, para o cemitério de Alcabideche onde foi cremado.
***
O Cardeal-patriarca de Lisboa agradeceu hoje ao padre
Dâmaso Lambers o seu “testemunho” do que é uma vida “verdadeiramente apanhada
por Jesus Cristo”. Dom Manuel Clemente, que visitou o sacerdote hospitalizado,
recordou, na homilia, os “sinais e incentivos” de uma “alma cheia de Jesus
Cristo”. E especificou:
“Não só na sua cama, mas na cama ao lado, eu
via livros, Evangelho e orações… tudo cheio de sinais e incentivos para esta
vida fantástica de Jesus Cristo, que lhe enchia a alma e, por isso, lhe
preencheu a vida”.
A vida do sacerdote “iniciada há muitos anos na
Holanda, desde cedo marcada por uma forte vocação” foi relembrada durante a
celebração que juntou diversas pessoas que acompanharam “na terra uma vida que
já se completa no céu”.
Dom Manuel Clemente recordou as vezes em que, “já noite
muito andada, tínhamos o Padre Dâmaso, sacerdote holandês que se tornou cidadão
português com a alvorada evangélica”, aos microfones da Renascença, ou no
acompanhamento “aos seus reclusos, como dizia”. E frisou:
“A consciência de que estivesse onde
estivesse, nas prisões, nas pregações, também nesta igreja onde ele tantas
vezes pregou a Paixão e Via-Sacra, esta convicção de que não estava por ele,
mas por aquele que lhe enchia a vida”. […] Que magnifico exemplo e testemunho forte do que é a vida de Jesus
Cristo quando é verdadeiramente apanhada.”.
Na celebração, que “ele quis que fosse já de
ressurreição”, aliás como quer a Igreja, as leituras foram antecipadamente
escolhidas. E o presidente da celebração declarou e explicou:
“Damos graças a Deus. Ele também quis que
esta celebração fosse de ação de graças, disse-o e escreveu-o. Que não fosse
uma celebração de pesar, mas que fosse já de ressurreição.”.
E Dom Manuel Clemente finalizou com um “Muito obrigado ao Padre Dâmaso”.
***
Do
Padre Dâmaso Graça Franco, da Renascença diz que “só é difícil explicar o que é
um Santo aos que nunca tiveram a sorte de, muitas vezes e ao longo de vários
anos, tomar o pequeno-almoço ao lado do padre Dâmaso Lambers”. Com efeito, “quem o conheceu ficou a saber que
‘Jesus é fantástico!’ e que a sua presença real na Eucaristia, ‘ainda é mais
fantástica’!”. Era um padre “muito feliz”! Era o que ele repetia vezes sem
conta. De facto, “nas suas mãos via a maravilha de trazer ‘um pouco do céu para
oferecer a cada um e a cada uma na terra’ e essa maravilha era a causa da sua
imensa felicidade”.
Depois, “a cada um e a cada uma
repetia ‘sejam felizes’, como se fosse a nossa primeira obrigação nesta
passagem pela Terra”. E, tal como o Papa se despediu do povo, logo na sua
entrada no papado com um simples “adeus e bom almoço”, ele despedia os fiéis da
missa não se limitando ao litúrgico “Ide em paz…” mas adicionando-lhe um “E
sejam felizes!”. Assim, “não admira que os seus melhores amigos fossem os que
ainda estavam ou já tinham saído da prisão: “gente fantástica” pelo simples
facto de ser gente, fosse o que fosse que tivessem feito.
Graça Franco chama “nosso” ao Padre
Dâmaso e diz que, “se houve prova encarnada do Amor infinito e misericordioso
de Deus, foi o nosso padre Dâmaso”. Na verdade, esteve na Rádio Renascença
desde 1976. “Primeiro numa série semanal de três programas (dirigidos aos doentes, aos reclusos e
ao cidadão comum) depois
nos mais diversos programas incluindo madrugada dentro numa conversa de tu a tu
com os ouvintes”.
Diz Graça Franco que Dâmaso “não
queria ir depressa”, que gostava muitíssimo de “estar vivo” e que gostava de que
“a sua vida fosse o mais longa possível, porque aqui dava ideia de já estar
plenamente com o Pai” – “essa pessoa ‘fantástica’ com a qual parecia ter-se
encontrado num exato momento como se fosse desde sempre”.
***
Educado em país protestante, muitas
coisas lhe faziam “confusão” no catolicismo “folclórico” português. Pré-conciliar
por formação e pós-conciliar por temperamento, não havia carimbo que se lhe
pespegasse (esquerda/direita,
conservadorismo/progressismo): “era simplesmente ele”. Indignado com os gastos supérfluos enquanto os
pobres precisavam de ajuda, não foi à inauguração do Cristo Rei em Almada. A
vivência e sobrevivência na II Guerra Mundial marcaram-lhe a vida: recebia mal “um
certo aparato ostensivo tido por natural na década de 50/60”. O Rei que ele
servia dispensava colunatas de milhares que poderiam ser utilizados para ajuda aos
pobres.
Grande devoto de Maria, para ele era quase
incompreensível a excessiva religiosidade popular em torno de Nossa Senhora de
Fátima. Escandalizava-o, ao levar anos a fio aos pobres a Imagem peregrina, que
se reduzisse a Mãe de Deus a uma ‘santinha’ a quem se pedem graças, quando ela
viera implorar orações pelos outros, pela paz, pela conversão dos pecadores. Recorde-se
o que disse o Papa Francisco em Fátima sobre o culto de Nossa Senhora e veja-se
como Dâmaso Lambers tinha razão no seu desconforto e no incómodo que suscitava.
“Tinha um amor a toda a prova pela Mãe de Deus, mas no centro da sua fé estava
o filho Salvador. É o acento cristológico do culto mariano do “Per Mariam ad Iesum”.
Se ele “mandasse”, deviam ser
proibidas as festas e romarias, pois, na sua ótica, eram “um disparate” que
“fazia muito mal ao povo”, dando-lhe a falsa ideia de um Deus caricatural. E era-lhe
muito difícil de aceitar os Santos Populares, pois, das marchas às sardinhas, ficavam
esquecidas, apagadas, a verdadeira figura de Pedro, o primeiro Papa, a de João
Batista, o grande precursor de Jesus Cristo, e a de Santo António, o primeiro
santo da ordem franciscana e Doutor da Igreja - três homens que nada têm a ver
com bailaricos e bebedeiras ou festanças fúteis.
Homens como Dâmaso, em testemunho de
humildade, e fé, arrastando pelo exemplo e pela palavra e capazes de nos mover,
aproximando o nosso coração de Cristo, são mesmo ‘Santos’ no verdadeiro sentido
– “mesmo sem processo de beatificação ou de canonização, mesmo sem nenhum
milagre relatado ou provado, e mesmo que tais processos nunca venham a ocorrer”.
O Padre Lambers que não gostava de
pedir nada para não incomodar ninguém, nem a Deus porque só via razões para lhe
dar graças, partiu com uma série de pedidos de todos nós para apresentar ao Pai
do Céu. Fá-lo-á por puro Amor – paciente,
prestável, sem inveja ou orgulho, sem inconveniências, não interesseiro, sem
ressentimento, justo, alegre com a verdade e tudo desculpando, crendo,
esperando e suportando (cf 1Cor 13,4-7) – que foi o
segredo e o motor da sua vida. (cf Graça Franco, Rádio Renascença, 22 fev, 2018 - 20:23).
***
Da minha parte, devo-lhe especial
preito de homenagem. Para lá do que foi referido, orientou, de forma agradável,
em setembro de 1979, o retiro do clero de Lamego, em que participámos os que
iríamos ser ordenados de sacerdotes a 29 de setembro. Por isso, daqui a minha
saudação aos Padres Adriano Alberto Pereira, António Lemos de Almeida e Armindo
da Costa Almeida.
E as ideias que ele na ocasião deixou
sobre a devoção Maria, o desconforto com o aparato eclesiástico e a crítica ao
excesso de despesas com bens materiais em detrimento dos necessitados coincidem
com o que diz Graça Franco. Todavia, no atinente às romarias e aos santos
populares, embora advertisse para o grave perigo do resvalo para a caricatura
de Deus e para o esquecimento do fundamental, pugnava então, contra o que
pensávamos nós, pela purificação destes eventos. Seja como for, trata-se dum
lutador, dum apóstolo, dum santo!
2018.02.25 – Louro de Carvalho
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