quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Muito se mudou com Francisco, mas a Igreja é a mesma, a de Cristo


Já lá vão 5 anos. A 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI saudava os fiéis reunidos em Castel Gandolfo, como Papa, pela última vez. Às 20 horas, consumava-se formalmente a sua renúncia, anunciada a 11 de fevereiro, e Joseph Ratzinger passava a ser o Papa Emérito Bento XVI. Mas, antes, da varanda da casa de verão dos Pontífices, aquele que havia sido o Sumo Pontífice durante quase 8 anos, dirigiu-se aos peregrinos reunidos na praça para lhes dizer:
Eu sou simplesmente um peregrino que iniciou a última etapa da sua peregrinação nesta terra”.
Logo depois, fecharam-se as portas da casa e começou o regime de Sede Vacante.
Bento viveu em Castel Gandolfo durante dois meses, enquanto se realizavam as apropriadas adaptações na sua nova residência, o mosteiro “Mater Eclesiae”, nos jardins do Vaticano, distante uns 750 metros da residência de Santa Marta, onde Francisco optou por viver com o pessoal que trabalha na Santa Sé, do lado oposto ao apartamento papal em que viveram os antecessores. Mas não estava sozinho: nas primeiras imagens “roubadas” do Pontífice, ele aparecia a caminhar pelos jardins com Dom Georg Gänswein, seu secretário. Além disso, recebeu algumas visitas, como a do seu sucessor, que visitou Castel Gandolfo a 23 de março.
Naquele dia, deram a volta ao mundo as primeiras imagens de ambos a abraçar-se frente ao helicóptero e a rezar na capela, ajoelhados no mesmo banco.
Entretanto, Ratzinger voltou ao Vaticano, onde Francisco o esperava para lhe dar as boas-vindas. E Bento começou nova vida no mosteiro ‘Mater Ecclesiae’ junto das 4 ‘memores Domini’ – Rossella, Loredana, Carmela e Cristina, leigas consagradas do “Movimento Comunhão e Libertação”, que o ajudam, e com Dom Georg Gänswein, o Prefeito da Casa Pontifícia e secretário particular do Papa Emérito.
Embora as primeiras imagens divulgadas após a renúncia mostrem Bento XVI a servir-se da bengala e a mover-se com dificuldade, ele mesmo disse, nos meses seguintes, que pretendia deixar claro que está “muito bem” – como afiançou o ator italiano Lino Banfi quando se encontrou com ele no mosteiro ‘Mater Ecclesiae’, onde constatou que o Pontífice emérito “toca piano, lê, estuda e reza”. E, em outubro de 2017, Dom Gänswein desmentiu os rumores publicados no Facebook que garantiam que Bento XVI estava à beira da morte. Isto é, não sofre de qualquer doença, sendo a idade provecta o único fator que o aproxima do fim da vida terrena.
Também é verdade que Francisco e Bento se consideram e estimam mutuamente. Como é do conhecimento público, o Papa em exercício tem-se referido ao predecessor com elevada estima, (chamou-lhe avô e conselheiro) telefona-lhe, visita-o com frequência, convida-o para atos públicos mais significativos, tendo Bento XVI correspondido nalguns casos, e, como revelou Dom Georg Gaenswein em meados de 2014, o Prefeito da Casa Pontifícia, antes de qualquer viagem internacional, Francisco visita Bento XVI, gesto que mostra a boa relação que existe entre ambos e como o atual Pontífice continua, em termos essenciais, a visão do seu antecessor.
Em 14 de fevereiro de 2015, Bento XVI participou na criação de 20 novos cardeais pelo Papa Francisco e, no dia 8 de dezembro daquele ano, foi o primeiro peregrino a cruzar a Porta Santa da Basílica de São Pedro, durante a inauguração do Ano Santo da Misericórdia. Do mesmo modo, em 28 de junho de 2016, Bento XVI pronunciou algumas palavras junto do seu sucessor. Durante os 65 anos de ordenação sacerdotal do Papa Francisco, o Papa Emérito afirmou:
A sua bondade, desde o primeiro momento da eleição, em cada momento da minha vida aqui, me toca, me leva, realmente, interiormente […] Mais do que nos Jardins do Vaticano, com a sua beleza, a Sua bondade é o lugar onde eu moro: Sinto-me protegido.”.
Quatro anos após a renúncia de Bento XVI, a 11 de fevereiro de 2017, Federico Lombardi, antigo porta-voz do Vaticano, afirmou que Ratzinger vivia em oração e com muita discrição o serviço de acompanhamento à Igreja e solidariedade com o sucessor. O sacerdote jesuíta, que foi Diretor da Sala de Imprensa durante o pontificado de Bento, frisou que, embora a força física de Ratzinger esteja debilitada pela idade, as forças mentais e espirituais estão perfeitas. E disse:
Realmente é muito bonito ter o Papa Emérito que reza pela Igreja, pelo seu Sucessor. É uma presença que sentimos. Sabemos que ele está presente e, embora não o vejamos com frequência, quando o vemos, todos nós ficamos muito contentes, porque o amamos. Portanto, sentimo-lo como uma presença que nos acompanha, nos consola e nos tranquiliza.”.
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A este respeito, Dom Carlos Azevedo, Bispo Titular de Belali, Delegado do Conselho Pontifício da Cultura e membro da Comissão Pontifícia de Arqueologia Sacra, refere (vd Radio Vaticana, 18.11.2105) que o que se passa, neste ponto, em relação à diocese de Roma, “é já a realidade de muitas dioceses do mundo: terem simultaneamente o bispo emérito e o bispo residencial, por vezes até dois eméritos, como poderá vir a suceder em Roma”. E sublinha “a lucidez corajosa de Bento XVI, a livre e ‘profunda serenidade de espírito’, ao decidir renunciar e pôr fim ao seu ministério de sucessor de São Pedro (28-02-2013), no serviço da Igreja de Roma e da Igreja Universal”, que marcará a história do catolicismo. E assegura que Bento “tinha consciência de quanta ‘gravidade e inovação’ carregava”. É “a normalidade humana”, que “não retira o sentido sacro a figuras da Igreja”. E vai mais longe ao dizer:
O sacro em cristianismo é muito relativo e o fundamental é o conceito de santidade, isto é, o modo de responder como Cristo à salvação e redenção, à dignidade humana, ao bem comum da humanidade e do cosmos. Trata-se de acolher, na hora presente, com todas as capacidades e talentos, o que o Espírito inspira. Portanto, é desejável e normal que quem vem de novo traga diferentes prioridades e respostas adequadas a novos problemas.”.
Considera que Francisco vive uma experiência existencial que lhe dá uma aura de popularidade dentro e fora das comunidades cristãs. Já em Bento pretende-se ver, no silêncio e aparente distância, um suposto conservadorismo um pretexto para um ilegítimo saudosismo de “uma Igreja muralhada na liturgia antiga, nos rituais” – o que é “um flagrante aproveitamento, do qual o Papa Ratzinger não é minimamente culpado”. Ao invés, “o seu discurso teológico, patente nos livros Jesus de Nazaré [3 volumes], aproximou muitas pessoas da fé cristã” e “a sua sensibilidade privilegiou a beleza e a verdade”. Se “com Francisco se acentuou a bondade, a frontalidade insistente de aplicar a doutrina ao realismo concreto da vida dos cristãos” e se “a situação económica e política foi iluminada de modo profético”, não será “justo diabolizar Bento XVI, castigado por má imprensa, e beatificar Francisco, ainda protegido por boa imprensa”. E frisa:
Grave será que alguns transformem a obediência ao Papa, defendida na sua lógica, em um concordismo autocentrado e seletivo de opões a seu gosto e não em autêntico acatamento do único Bispo de Roma que existe e se chama Francisco. Confundem sensibilidades de pequenos grupos com o bem da Igreja. Não entenderam a fé cristã como peregrinação, disponível ao confronto com novas questões. Para ser fiel à sua missão, a Igreja deve renovar-se continuamente, em diálogo com outras religiões, confissões cristãs e com a cultura contemporânea. Assim, pode contribuir para uma abertura aos valores perenes da Transcendência.”.
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Há 5 anos, o gesto inesperado de Bento XVI apanhou a Igreja Católica de surpresa – é preciso recuar 6 séculos (a 1415) para encontrar idêntica atitude em Gregório XII. Os cardeais que escutavam (11 de fevereiro de 2013) o seu discurso em Latim não acreditavam no que ouviam – e só uma jornalista da agência italiana Ansa percebeu o texto original. Cansado da Cúria Romana, frágil para forçar alterações necessárias à governação do Vaticano, Bento XVI retirou-se, oficializando a abdicação a 28 de fevereiro. E o sucessor, ao assomar à varanda de São Pedro, anunciou-se como bispo de Roma (e não como Papa), marcando um estilo diferente. De vestes brancas, despojado da murça vermelha com estola de vinho e bordada a dourado, tomou o nome de Francisco, significativo para quem faz das periferias campo de ação. E abdicou do anel do pescador de ouro dos antecessores (é de prata como a cruz que usa). Anselmo Borges comenta:
Não há dúvida absolutamente nenhuma de que houve uma mudança fundamental, que é bem apercebida pela opinião pública […] Raramente na História terá havido um Papa tão amado como o Papa Francisco e, diria, tão influente como referência político-moral global. […] Mesmo se esse amor seja talvez mais notório fora da Igreja do que dentro da Igreja, concretamente na Igreja oficial.”.
Na comparação entre os pontificados, para o teólogo Anselmo Borges, “cada um tem a sua história, o seu temperamento”. E a deputada Ana Rita Bessa, que tem um percurso próximo dos jesuítas, socorre-se das palavras do evangelista João, “Na casa do Pai, há muitas moradas” (Jo 14,2), para frisar que, na mesma Igreja, “num espaço tão curto de tempo, sejam possíveis exemplos muito diferentes, mas em que todos falam de Deus”. E, “mais do que contraste”, a deputada sublinha o facto de um papa “mais cerebral” ter aberto “caminho a que outro faça de outro modo”.
Anselmo Borges recua até João Paulo II (antecessor de Bento XVI) para notar como o Papa polaco vindo de “uma igreja perseguida” se recolheu numa “ortodoxia estabelecida e nem sempre compreendeu a necessidade de avançar com outras atitudes dentro da Igreja”, remetendo-se ao “quadro de uma igreja monolítica”. Porém, “enquanto João Paulo II contribuiu decisivamente para a queda do muro de Berlim e com isso reconfigurou o mundo”, Francisco é filho de imigrantes italianos e foi arcebispo duma grande cidade, onde se envolve com as periferias, vivendo num pequeno apartamento e deslocando-se de metro.
Bento XVI crê “em Jesus e no Deus de Jesus, mas é uma pessoa frágil, um homem tímido e vive dentro dele próprio um conflito” – conflitualidade típica de quem, enquanto jovem teólogo participa como perito do Concílio Vaticano II e escreve, em 1972, “com uma abertura não esperada à comunhão dos recasados”, mas, depois, participa, ao lado de João Paulo II, “na condenação de dezenas de teólogos”. E é esta conflitualidade que o leva a resignar.
Põe a fé viva no Deus de Jesus, mas não teve forças para operar mudanças. Todavia, preparou para o sucessor um relatório (cujo conteúdo nunca foi completamente revelado) sobre a gestão do Vaticano, suficiente iluminado para Francisco atuar como tem atuado junto da Cúria.
Para Dom Januário Torgal Ferreira, Bispo emérito das Forças Armadas e Forças de Segurança, “mudou quase tudo” entre o tempo de Bento XVI e o de Francisco. Segundo este prelado emérito, “mudou o primado dos anseios e dos objetivos da Igreja” e “houve uma visibilidade daqueles a quem os homens da Igreja nunca consideraram ou nunca tiveram na devida conta”, os mais oprimidos e mais pobres. Com “uma preparação teológica de grande gabarito”, como diz Januário de Ratzinger, Bento XVI foi o “vigilante da doutrina e da ortodoxia que provocou o distanciamento de muitos teólogos”, como aduz Anselmo Borges. E Torgal explana:
Bento XVI foi à popa relativamente a algumas pessoas que tinham gosto pela intelectualidade. Mas havia problemas do homem da rua que ficaram esquecidos. O fundamental é que as pessoas mais carentes não foram atingidas pelo pontificado dele. Já com Francisco há uma nova centralidade com o problema das periferias, com a solidão, os refugiados e as minorias étnicas a entrarem no discurso diário do bispo de Roma. Aqui há um salto na doutrina e no serviço pontifical.”.
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Uma carta foi entregue em mão na redação do Corriere della Sera, com data de 5 de fevereiro em folha dactilografada, provinda do Mosteiro Mater Ecclesiae, V-120 Città del Vaticano, e foi, a 6, revelada ao mundo pela pena do diretor daquele diário italiano.
Nela se dá conta de que Bento XVI, retirado naquele mosteiro dentro dos muros do Vaticano, vive hoje (quase a fazer 91 anos) a quietude do “lento declínio” da sua “força física”, respondendo às preocupações dos muitos leitores que queriam saber como estava o Papa que resignou há 5 anos. Diz ele: “Estou numa peregrinação interior para a Casa”. “Casa”, grafada com maiúscula refere-se a Deus, à casa do Senhor.
Quando resignou, cansado e sem forças para mudar as coisas numa Igreja dilacerada pela corrupção e escândalos sexuais, o Papa Ratzinger prometeu-se a si mesmo um tempo de oração e escrita. E assim permaneceu, surgindo em público apenas algumas vezes, sobretudo nas visitas do seu sucessor, abrindo assim porta à inquietação dos leitores do Corriere della Sera.
Também nas fotografias que a Fundação Ratzinger-Bento XVI vem disponibilizando na sua página do Facebook é possível ver o “declínio da força física” que o próprio admite na carta. Muitas vezes de boina branca, amparado por quem o visita ou com um andarilho que o ajuda a caminhar, essa fragilidade física contrasta com a sua boa cabeça, como sugeriu Monsenhor Angelo Becciu, responsável da Secretaria de Estado do Vaticano, que recentemente esteve com Ratzinger e que diz, desmentindo boatos de paralisia cerebral, aliás como fez o Vaticano:
Fisicamente tem alguns problemas, mas faz as suas caminhadas diárias, e mentalmente continua muito fresco”.
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Nas páginas iniciais de “Conclave”, como refere o Sol (28.02.2018), o romancista britânico Robert Harris descreve a destruição do anel do Papa que marca o fim de um pontificado:
Mas por fim [o anel] soltou-se e ele levou-o na palma da mão estendida a Tremblay [o camerlengo], que tirou uma tesoura da caixa de prata – o tipo de instrumento que poderia usar-se para podar roseiras […] – e inseriu o selo do anel entre as lâminas dela. Premiu com força, fazendo uma careta com o esforço. Houve um súbito estalido e o disco metálico que representa São Pedro a puxar a rede de pesca foi cortado.
Sede vacante – anunciou Tremblay. – O trono da Santa Sé está vago.”.
Em circunstâncias normais, o ritual de destruição do anel do pescador é desencadeado após a morte do Pontífice. Mas há 5 anos foi diferente. Bento XVI decidiu autorretirar-se de cena ao fim de menos de 8 anos. A decisão fora comunicada numa reunião de cardeais no Vaticano, a 11 de fevereiro daquele ano de 2013, pela leitura da Declaratio”, datada de 10 de fevereiro.
O seu dia começa invariavelmente com a participação numa missa às 8 da manhã. Só depois toma o pequeno-almoço. Além da oração, ocupa os seus tempos livres em passeios pelos jardins do mosteiro ou a ouvir música clássica (Mozart é o seu compositor favorito e já em jovem a sua música lhe “penetrava profundamente na alma”). De tempos a tempos, também recebe amigos, como a comitiva da Baviera (região da Alemanha da qual é natural) que o visita por ocasião do seu aniversário.
O conclave subsequente à renúncia de Bento elegeu um Papa que parece estar nos antípodas do anterior. Mas, se Ratzinger era o intelectual respeitado e reservado, Francisco é próximo e afetuoso, o que não impede a relação de respeito recíproco. Bento continua um mestre e um interlocutor amigo para os que exercem “o dom da razão para responder à vocação humana de procura da verdade”, elogiou Francisco. Já o emérito terá dito ao seu sucessor: “Sua Santidade, deste momento em diante, prometo a minha total obediência e as minhas preces”.
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A mesma Igreja expressa e servida na complementaridade das diversidades rumo à Unidade!
2018.02.28 – Louro de Carvalho

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