terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

“Revolução no ensino superior a partir dum relatório da OCDE?”


Nos primeiros dias do mês de fevereiro um grupo de peritos da OCDE apresentou as conclusões dum relatório preliminar sobre o estado do ensino superior em Portugal que o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tinha solicitado. No ato de apresentação das conclusões desse relatório elaborado ao longo dos últimos meses sobre o ensino superior, a investigação e a inovação, intervieram os aludidos peritos em conjunto com o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e com o Ministro da Economia.
O documento aponta para a necessidade de mais investimento na Ciência e no Ensino Superior; para a existência de poucos doutores no país (apesar de o número ter aumentado, a taxa de doutorados continua baixa quando comparada com a da Alemanha, da Suíça ou do Reino Unido); para a falta de estratégia concertada para ciência, inovação e ensino superior e apoio à transferência do conhecimento para as empresas; e para a necessidade de haver maior mobilidade do corpo docente.
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Em relação à verificação dos peritos da OCDE de que o país continua a ter poucos doutorados, segundo o que refere o JPN, Elvira Fortunato, investigadora na Faculdade de Ciências e Tecnologia na Universidade Nova de Lisboa (FCT-UNL), sublinha não ser uma questão de número, mas sobretudo que “há doutorados nos sítios errados”. E defende que “tem de haver uma passagem [dos doutorados para o mercado de trabalho]”, ou seja, é necessário “doutorar mais pessoas para irem para as empresas e para o setor público”, pois, de acordo com a investigadora, “mais de 80% dos doutorados formados continua a ficar nas universidades e nos centros de investigação”, sendo que, assim, “não são produtivos para o tecido económico”. A reputada académica conclui que o país “está a formar pessoas em ciclo fechado”.
Já para Joaquim Mourato, antigo presidente do CCISP (Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos), o relatório mostra que “a autonomia das instituições tem de ser aprofundada”.
O antigo presidente do CCISP sublinha a importância da radiografia feita ao ensino superior português ao nível da geografia das instituições universitárias e adianta:
É necessária uma atenção especial para que as instituições no interior do país mereçam um apoio suplementar, para que sejam âncoras e possam gerar um maior dinamismo em termos económicos, sociais e culturais”.
Para além do apoio adicional às instituições do ensino superior na região Centro, Mourato defende o alargamento da oferta formativa que “vai permitir que todas as instituições tenham competências para desenvolver” e que haja “uma ligação cada vez maior à economia real”.
Por seu turno, João Redondo, presidente da APESP (Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado) e do Conselho de Administração da Fundação Minerva (que gere as Universidades Lusíadas – Lisboa, Porto e Vila Nova de Famalicão), considera que o relatório mostra “a necessidade de uma estratégia nacional que envolva todos os agentes do sistema de ensino superior e os ‘stakeholders’ externos”, mas frisa que fica por definir “quais os mecanismos reais que vão ser utilizados” para Portugal atingir as metas definidas pela OCDE até 2030.
Estes académicos portugueses consideram “estratégia” como a palavra que designa o fio condutor do ensino superior em Portugal. Mourato afirma que “o relatório por si só não é a peça final” e que urge uma estratégia “em articulação com os ministérios da Economia, Educação e da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior”. Por outro lado, entende que é necessário “rever as carreiras dos docentes e investigadores” e permitir que possa existir “uma maior mobilidade entre instituições que permita um desenvolvimento de carreira de acordo com o perfil de cada um”. Para o presidente da APESP, a estratégia deve “ir além dos ciclos governativos, para que fique entranhada na sociedade portuguesa”. E Elvira Fortunato sublinha que nenhuma estratégia para melhorar o ensino superior pode ser colocada em prática enquanto houver “excesso de burocracia”. Com efeito, segundo a investigadora, “a administração pública é asfixiante em termos de aquisição de material para a investigação”, pelo que é necessário proceder a mudanças estruturais, dado que, por muitos relatórios que se façam, se este problema não se resolver, não vale a pena andarmos a fazer estudos, porque, na base, o sistema não funciona”.
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Em artigo de opinião no Dinheiro Vivo, Jorge Conde, Presidente do Politécnico de Coimbra, preconiza que “o foco do ensino superior tem de mudar”. Segundo este eminente académico, as conclusões do predito relatório podem sintetizar-se em ensinar diferente, investigar diferente e fazer verdadeira inovação.
Considera relevante pôr o foco no facto de os Politécnicos virem a ministrar doutoramentos, o “que levará ainda tempo para se concretizar, mas que mudará o panorama do ensino e da investigação em Portugal”. Tendo por base o aumento da exigência das condições para lecionar doutoramentos, poderão acabar alguns dos existentes e aparecer outros. Por outro lado, as instituições terão que se juntar para cumprirem as regras e chegarem às condições necessárias de ministração do doutoramento. E, ao pretender doutoramentos “mais em processo de trabalho e de investigação e menos em sala de aulas”, coloca-se em causa “a recente adoção dos programas doutorais em sala de aula, com a lecionação de conteúdos, muitas vezes de irrelevante utilidade para a obtenção de um doutoramento”. Segundo este académico, “um doutoramento deve ser um exercício de investigação de grande envergadura, que não tem necessariamente de passar pela sala de aulas”. Nestes termos, os Politécnicos estão no mesmo patamar das universidades e “a distinção deixa de ser política para ser de competência”.
Jorge Conde situa as razões da contestação a esta possibilidade na ignorância de muitos sobre os Politécnicos e na generalização da incapacidade de alguns destes institutos, bem como na baixa produtividade científica dos Politécnicos. Segundo o académico, “nem todos os Politécnicos são incapazes, nem todas as Universidades são capazes”. E a competência dos Politécnicos sobre os produtos e o conhecimento que advém da sua proximidade e inserção territorial, pode ser e será “uma mais-valia para doutoramentos práticos, aplicados e geradores de valor”. Quanto à baixa produtividade científica dos Politécnicos, aduz que ela advém do facto de neles não haver doutoramentos, pois sãos estes (os bolseiros de doutoramento e de pós-doutoramento) os grandes responsáveis pela investigação e publicação, nas instituições de ensino”.
Ademais, ressalta a importância de as empresas perceberem a necessidade da sua colaboração financeira e logística, para “de forma empenhada” terem melhores quadros, que as ajudarão a melhorar processos, gerar melhores produtos e serviços e aligeirar custos. A investigação nas instituições de ensino superior aumentará o valor acrescentado dos produtos e serviços das empresas. E os Politécnico têm conhecimento, competência e massa crítica para fazerem mais, diferente e o que é preciso para desenvolver o país no seu todo e cada região especificamente pela sua proximidade à economia local”. A par desta, outra importante mudança é a redução dos Mestrados Integrados, “libertando os estudantes para poderem fazer licenciatura numa instituição e mestrado noutra” – medida que põe em causa a capacidade das instituições para “segurarem” os seus licenciados, para a prossecução de estudos e abre a concorrência nos segundos ciclos, “permitindo que os estudantes possam procurar formações mais adaptadas, eventualmente mais especializadas aos seus objetivos profissionais”. Assim, as instituições têm de ensinar aquilo de que “os estudantes e as empresas precisam e não cursos estandardizados, muitas vezes afastados das necessidades de inovação de quem garante o emprego dos diplomados”. Esta medida pretende cursos de licenciatura que, configuram um patamar profissional como já acontece nos Politécnicos e Mestrados que não serão feitos por obrigação, mas para melhorar conhecimentos, especializar ações e desenvolver competências.
Outra das medidas é a adaptação do ensino à educação de adultos, à formação de trabalhadores. De facto, importa sermos capazes de organizar o ensino de modo que os trabalhadores que têm horários para cumprir possam estudar ou voltar a estudar, “qualificando-se, qualificando o País e adquirindo competências que para isso contribuirão”.
Porém, tudo isto só é possível “se as instituições de ensino modernizarem o seu pensamento, se colocarem do lado da solução”, não se limitando a contestar a mudança e a adotar comportamentos de proteção e conservadorismo, que deixarão tudo na mesma.
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Entretanto, a 15 deste mês, o Conselho de Ministros passou a discutir um conjunto alargado de medidas que pretendem captar a população ativa e aumentar a exigência. É a prometida “resposta política” ao predito relatório da OCDE. Desde logo, vem à tona a modernização do sistema de graus e diplomas do superior, simplificando algumas ofertas para captar a população ativa e aumentar a exigência nos patamares de formação mais altos. Depois, a abertura de novos cursos ficará, por exemplo, dependente da existência e qualidade da investigação. E serão lançados novos cursos curtos para adultos no ativo e os mestrados integrados serão limitados.
Assim, o ensino superior será alvo duma pequena revolução, a começar pela criação de novos ciclos curtos de estudos que, tal como os TeSP (cursos técnicos superiores profissionais), não conferem grau e permitem prosseguir estudos, mas que, ao contrário destes, são orientados para uma população mais madura, acima dos 30 anos, e com pelo menos 5 anos no mercado de trabalho.
Segundo o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, “os TeSP são hoje um sucesso para a formação inicial”. Porém, Manuel Heitor defende:
Temos de reforçar a formação de adultos, de pessoas que têm mais de cinco anos de experiência e nunca foram ao ensino superior. Não temos conseguido penetrar os TeSP pelos adultos. […] O que se lança é a possibilidade de termos ciclos curtos pensados especificamente para adultos, eventualmente em articulação com os empregadores.”.
Na linha da formação orientada para a população ativa, segundo o Ministro, o Governo “tem vindo a trabalhar” com a A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior), responsável pela análise das ofertas existentes e certificação prévia das novas formações, para agilizar a introdução de mestrados profissionais (a componente curricular pode durar um ano), com articulação forte ao mercado de trabalho. É uma resposta às recomendações da OCDE. Diz o governante:
A ideia é especializar a acreditação seguindo práticas internacionais. Acreditar um mestrado feito com as empresas exige abordagens diferentes. Exige mestrados com mais horas de trabalho junto dos empregadores. Esta alteração flexibiliza os mestrados profissionais, que hoje são críticos para as empresas.”.
Segundo o Ministro, também “em linha com as recomendações da OCDE”, será reforçada a exigência de “capacidade científica” por parte das universidades e institutos politécnicos. A oferta de doutoramentos, por exemplo, ficará associada à obtenção de avaliações de ‘Muito bom’ e de ‘Excelente’ pelos centros de investigação das universidades e, nos politécnicos, a aprovação de novas licenciaturas dependerá da existência de atividade de investigação. Agora, “qualquer instituição do setor politécnico será avaliada [nos pedidos de novas licenciaturas] ao nível da investigação”. E, independentemente de se tratar de universidade ou de politécnico, as condições de ministração de doutoramento passam pela capacidade de a instituição desenvolver atividades de I&D (Investigação e Desenvolvimento) e ter pelo menos 75% dos recursos humanos integrados em unidades de investigação. Exige-se também uma avaliação mínima de ‘Muito Bom’ pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia). Aumentam-se os níveis de exigência e retira-se a limitação institucional.
Outra novidade será a introdução de restrições às ofertas de mestrados integrados por parte das instituições, ou seja, a pacotes de formação em que os alunos têm obrigatoriamente de concluir o primeiro ciclo, correspondente à licenciatura, e o segundo, equivalente ao mestrado, para obterem o diploma. Na verdade, a OCDE constatou que, pela tradição que se implementou na sequência do Processo de Bolonha – muito pelo receio de que o mercado de trabalho não reconhecesse licenciados com três anos de formação –, o país está na invulgar situação de, entre os jovens, continuar a ter taxas de acesso e conclusão dos primeiros ciclos bastante inferiores aos dos outros países da organização, mas estar já acima da média – na faixa etária em causa – entre os que possuem o grau de mestre. No futuro, esta frequência obrigatória de mestrados integrados será restrita às áreas em que existem recomendações internacionais nesse sentido, “nomeadamente na Medicina”. O objetivo continua a ser que os estudantes completem os dois ciclos, mas não terão de o fazer na mesma instituição. Esta medida, como afirmou o Ministro, além de dar mais margem de decisão aos estudantes na definição dos seus percursos, “promove a concorrência” no setor.
As parcerias com universidades internacionais de referência já não são uma novidade. Mas a renovação dos acordos com a Carnegie Mellon University (CMU), o Massachusetts Institute of Technology (MIT), a Universidade do Texas em Austin (UT Austin) e a Sociedade Fraunhofer (FhG), da Alemanha, deverá passar pelo reforço das áreas e das instituições abrangidas.
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Até agora só as universidades podiam dar o doutoramento; agora, “todas as instituições universitárias ou politécnicas, desde que tenham capacidade científica”, o poderão dar. Como diz o Ministro, “as unidades têm é de ser muito boas ou excelentes”. O governante esclareceu que, neste momento, em termos médios, só 50% dos docentes do Ensino Superior estão integrados nas universidades. No ensino universitário esta percentagem é superior, mas no politécnico ainda há poucos docentes (menos de 20%) integrados em instituições de investigação.
Assim, o Ministro afirmou que se está a “tentar sobretudo estimular o ensino politécnico a desenvolver a capacidade científica e de investigação”.
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Porém, como avisa o SNES (Sindicato Nacional do Ensino Superior), que aceita que os politécnicos passem a dar doutoramentos, tal implica mudanças legislativas a fazer por um Parlamento em que não há maioria para garantir a aprovação definitiva duma lei orgânica. Está neste caso a revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) e a alteração à LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo). E deve alterar-se o modelo de acesso ao Ensino Superior (A OCDE o diz).
Mas que avance a revolução!
2018.02.20 – Louro de Carvalho

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