Quem de entre
os contemporâneos da revolução do “25 de Abril” não se lembra das ações
revolucionárias de alfabetização e dinamização cultural concretizadas sobretudo
em ambientes rurais e suburbanos por equipas militares em regime de
multidisciplinaridade?
Tais ações
que incluíam atividades de apoio às populações mais deprimidas e mais afastadas
dos benefícios da civilização e envolvidas na ancestralidade cultural, eram
desenvolvidas sob a égide da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças
Armadas, o departamento responsável pela alimentação ideológica da chama
revolucionária e em que pontificava como chefe João Varela Gomes, coronel de
artilharia – que, diga-se, deu lugar a alguns abusos locais.
A 5.ª
Divisão, que fora criada para organizar a informação e propaganda do MFA (Movimento das Forças Armadas) durante o PREC, era responsável
pelos programas de rádio e de televisão do MFA, além da publicação dum boletim
e da organização de sessões de esclarecimento sobre o programa revolucionário
por todo o país – encontros que ficaram conhecidos sobretudo como de
“Dinamização Cultural”. Contudo, foram tidos, pelos setores da sociedade
portuguesa de então mais conservadores e de outros que defendiam preferencialmente
um sistema de democracia representativa de inspiração ocidental, como uma
interferência dos militares na vida política do país. Este departamento
político-militar – em razão da figura do chefe, visto por muitos como próximo
do Partido Comunista Português – ficou historicamente encostado aos setores
radicais da esquerda que, durante o PREC, mostraram opor-se, na linha sustentada
pela figura do general Vasco Gonçalves, à implementação dum sistema político
assente no parlamentarismo e na escolha dos representantes do povo com base em
eleições por voto secreto e universal.
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Ora, segundo
anunciou em primeira mão a RTP, morreu esta segunda-feira, aos 93 anos, em sua
casa, Varela Gomes, importante figura, não só do 25 de Abril, mas também da
resistência contra a ditadura de Salazar, que esteve no Golpe de Beja com
Humberto Delgado, em 1961. Porém, a memória mais recente reconhece-o como uma das
principais figuras do PREC (Período Revolucionário em Curso) em chefe da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das
Forças Armadas que
incomodou muitos, sobretudo o então embaixador dos EUA em Portugal, Frank
Carlucci.
João Maria Paulo Varela Gomes nasceu em 24 de maio, em
Lisboa, e entrou para a Escola do Exército, em 1943, cursando em Artilharia.
A nota biográfica que acompanha a notícia da RTP detalha que este, que foi um
dos militares mais ativos politicamente antes e depois do 25 de Abril, entrou
na clandestinidade depois do 25 de Novembro de 1975, para escapar ao mandado de
captura emitido em seu nome, tendo saído do país para Cuba via Espanha e,
depois, para Angola, tendo regressado a Portugal só em 1979.
Em reação à notícia, o coronel Vasco Lourenço, Presidente da Associação 25
de Abril, em declarações à agência Lusa,
considerou-o uma figura “muito importante na história do século XX em Portugal”
e “um grande lutador contra a ditadura e contra o fascismo”. Depois do 25 de Abril,
acrescentou, “também se envolveu apaixonadamente, como fazia sempre, em coisas
positivas e outras menos positivas”. “Prefiro recordar as positivas”, enfatizou
Vasco Lourenço.
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Durante o Estado Novo, ditadura travestida de
democracia unitária, orgânica e corporativa, sucessora da Ditadura Militar
iniciada por Gomes da Costa e transformada em Ditadura Nacional por Salazar no
exercício de Ministro das Finanças e sob a égide do Marechal Carmona, Varela
Gomes teve notória participação ativa contra o regime, tendo sido um dos
participantes ativos do chamado Golpe de
Beja, na noite de passagem de ano de 1961 para 1962, onde foi ferido com gravidade, juntamente com, entre
outros, Manuel Serra e Eugénio Oliveira, vindo este a ser, mais tarde,
grão-mestre da loja maçónica do Grande Oriente Lusitano (GOL).
Naquela
madrugada, um grupo de militares, encabeçado por Humberto Delgado, tentou tomar o quartel do
Regimento de Infantaria 3, em Beja. A revolta acabou por ser
travada pelas tropas de Salazar, com duas mortes pelo meio, incluindo a do Subsecretário
da Defesa, Jaime Fonseca.
Em entrevista
à RTP em 1975, Varela recordou que não foi o autor daquele golpe, atribuindo o
mérito a Manuel Serra e assumindo-se apenas como dirigente operacional do
golpe.
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Além de toda
a luta contra a ditadura, Varela Gomes foi ainda uma das figuras da
Revolução dos Cravos e chegou a ser designado como “o primeiro capitão de
abril”. Militar, antifascista e revolucionário até ao fim, foi um militar
de abril e um dos últimos a depor armas no 25 de Novembro, no fim da revolução.
Aquando do golpe de Beja, como disse em entrevista à RTP, em
1975, acreditava que “o fascismo tinha os dias contados”, mas teve de esperar
mais 12 anos. Em 1964, foi julgado pelo tribunal plenário e fez um discurso
contra a ditadura, com ecos na imprensa estrangeira, devido ao brado “Outros triunfem onde nós fomos vencidos”
para salvação da “Pátria bem-amada”.
Após o 25 de Abril, o golpe que se transformou em Revolução dos Cravos, foi reintegrado no
Exército e tornou-se uma das figuras centrais da 5.ª Divisão, dependente do
Estado-Maior General das Forças Armadas e encarregada de organizar as campanhas
de dinamização cultural, associadas à chamada “esquerda militar”. Varela Gomes
e a 5.ª Divisão tiveram papel ativo na derrota do golpe do 11 de Março de 1975,
ligado à direita e a Spínola, que foi o primeiro Presidente da República após o
25 de Abril. Depois do ataque de paraquedistas de Tancos contra o Ralis, em
Lisboa, e de pedir ação da Presidência da República, Varela Gomes decidiu
enviar uma mensagem a todas as unidades, apelando à resistência – atitude que
lhe valeu a acusação de “usurpação de funções”, que o próprio, em entrevista à
RTP, em 2015, explicou como uma “usurpação revolucionária”. Em 1975, esteve
duas semanas em visita a Cuba, encontrando-se, por duas vezes, com o líder
cubano, Fidel Castro, e o seu irmão Raul. Nesse ano, dá-se o 25 de Novembro, o
movimento militar de 1975 que significou o princípio do fim da revolução e que
a “esquerda militar” e o PCP consideram a “contrarrevolução”.
Varela Gomes foi dos últimos a abandonar a defesa dos
“revolucionários” no terreno, o que levou o jornal norte-americano The New York Times a associá-lo à
revolta dos paraquedistas, como recordou António Louçã, autor da biografia “Varela Gomes: que outros triunfem onde nós
fomos vencidos”. Do Copcon (Comando Operacional do Continente), dirigido pelo estratega do 25 de Abril Otelo Saraiva de
Carvalho, contactou várias unidades militares para saber se iam resistir. No
entanto, ganha o grupo dos nove, os “moderados”, e Varela Gomes passou a viver
na clandestinidade até janeiro de 1976, sendo 4 anos no exílio. Fugiu para Espanha,
Cuba e, depois, viveu em Angola, tendo regressado em 1979, antes da promulgação
duma lei de amnistia, e sendo, nos anos 80, associado à tentativa duma candidatura
da esquerda a eleições europeias e autárquicas. Manteve, até final, opiniões
polémicas, sobre a nossa democracia, que apelidou de “democracia filofascista”,
filha do “25 de Novembro” que, durante anos, quis “descomemorar”. E escreveu
vários livros, entre eles: “A Contrarrevolução
de fachada socialista” e “Tempo de
Resistência” (1980) e “Esta democracia filofascista” (1999).
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O “golpe de Beja”, organizado com os cuidados conspirativos possíveis, não
era o produto de laboratório duma decisão voluntarista; era, antes, a expressão
militar do sobressalto que vivia o país – a campanha eleitoral de Humberto
Delgado, em 1958, e o início da guerra colonial, em 4 de fevereiro de 1961.
Varela assumiu o ceticismo intelectual existente até à campanha de Delgado,
frisando que tal cepticismo foi estilhaçado pelo entusiasmo popular em torno de
Delgado que passara pela experiência de pôr na rua centenas de milhares de
pessoas ao visitar o Porto com a sua enorme popularidade e apostava que, com um
quartel, sublevaria o país inteiro.
O ano de 1961 é visto como o annus horribilis para Salazar:
a tomada do paquete Santa Maria (janeiro), a revolta independentista em
Angola (fevereiro), a rebelião de generais incluindo o Ministro da Defesa Nacional (abril), a condenação de
Portugal na ONU, as eleições (novembro), a anexação de Goa pela União
Indiana (dezembro) – uma “cascata de acontecimentos”.
Varela Gomes assumiu-se apenas como dirigente operacional do golpe. E,
nessa qualidade, não devia ter sido ele a prender o 2.º comandante do quartel,
major Calapez Martins. Daí resultou ferido com gravidade e foi jugulada a
revolta na fase inicial. Recordando o médico Ludgero Pinto Basto, Varela Gomes disse
que ficou a dever-lhe a vida, a ele e a Carlos George, depois de ser ferido na
Revolta de Beja. Uma equipa médica fora enviada de Lisboa para tratar os
feridos do lado governamental – apenas o Subsecretário da Defesa, abatido por
“fogo amigo” da GNR. Verificado o óbito, a equipa médica iria despachada para
Lisboa pela PIDE, mas o chefe, Sabido Ferreira, fez valer as instruções que
trazia de Carlos George e de Ludgero Pinto Basto: só deixar Beja quando tivesse tratado também os feridos do lado dos
insurretos.
Maria Eugénia Varela Gomes recordou em entrevista à RTP, em 1975, que, à
notícia do fracasso da revolta e dos ferimentos do marido, partiu para Beja com
o irmão e o pai, atravessando um Alentejo que parecia um país ocupado. Mas
recorda também, nesse ambiente opressivo, como foi sempre amparada por gestos
de solidariedade e simpatia da população. À porta do hospital, a polícia recusava
dizer-lhe se o marido estava vivo ou morto; e Maria Eugénia insistiu até obter
resposta. Só em finais de janeiro, recebia a 1.ª carta do seu João, que, ainda
a fazer uma convalescença difícil, tardara vários dias a escrever – a lápis.
A 11 de março de 1975, aviões da Força Aérea e uma força de paraquedistas
de Tancos atacaram o Ralis, em Lisboa, causando um morto e vários feridos. Mas
o Ralis não se rendeu, ganhou tempo e era preciso usar esse tempo para
enfrentar o golpe. Na 5.ª Divisão do EMGFA, Varela Gomes ligou para a
Presidência da República e para o Copcon, a pressioná-los para tomarem medidas
e foi recebendo respostas evasivas. Decidiu então tomar medidas por sua conta:
mandar uma mensagem para todas as unidades apelando à resistência e emitir pela
rádio e pela televisão um apelo à mobilização popular – vindo a ser acusado de
usurpação de funções por ter tomado essas medidas perante a iminência duma
guerra civil. Em entrevista de 2015 à RTP – uma das últimas que concedeu –
assumiu ter cometido usurpação revolucionária. E contou o que passou aos
relatores do 25 de Novembro: ainda no dia 26, enviou uma delegação a Tancos para se inteirar da
disposição que pudessem ter os paraquedistas para resistir ao estado de sítio
decretado na Região Militar de Lisboa.
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Outro dos temas que serviram de arma de arremesso contra a sua atuação no
11 de Março foi a participação na assembleia de mais de 200 militares, reunida
na noite de 11 para 12.
A 25 de abril de 1975, dia das eleições constituintes, Varela Gomes encontrava-se
em Cuba, no âmbito da missão que aí fora enviado e cujos objectivos explicou no
regresso.
Jorge Golias, hoje coronel e, à data, um dos mais destacados capitães de
Abril, integrava a delegação. Em outubro de 2017 relatou, em entrevista à RTP,
os aspetos fundamentais da visita, bem como a composição do grupo enviado e o
papel de Varela Gomes à cabeça da delegação.
Juntamente com o embaixador português, José Fernandes Fafe, Varela organizou
na Embaixada uma comemoração do 1.º aniversário do 25 de Abril. Aí estiveram
como convidados Fidel e Raul Castro. Foi nessa circunstância que ocorreu uma das
duas reuniões que tiveram lugar com o líder cubano. Nas mais de duas semanas
que ela durou, Raul Castro, a 2.ª figura da hierarquia do Estado, acompanhou a
visita pari passu. À delegação
atribuía-se importância considerável, refletindo o significado que em Cuba se
reconhecia ao nosso processo revolucionário. Golias refere esse acompanhamento
e um outro, da parte de agentes da segurança cubana, que a delegação considerara
excessivo e desnecessário, sendo Varela Gomes, entre todos, quem teve reações
mais veementes contra a irritante presença policial.
Dois temas do intercâmbio com Cuba, que Varela referiu, foram objeto de
preocupação da Embaixada norte-americana: “a
formação ideológica nas Forças Armadas cubanas e a organização da população
para tarefas de defesa da revolução”. A seguir, a Embaixada fez diligências
junto da 5.ª Divisão para esclarecer se não estaria a realizar-se a doutrinação
de caráter comunista nas Forças Armadas. Além dessa inquirição direta e
frontal, realizavam-se diligências de bastidores para enfrentar o alegado perigo
de se criar em Portugal uma “Cuba da
Europa”. E, paralelamente às diligências citadas, Frank Carlucci enviava
telegrama ao chefe em Washington, Henry Kissinger, dizendo da preocupação pela
eventualidade de a 5.ª Divisão pôr em prática as ideias que Varela trouxe de
Cuba, com a possível criação de Comités de Defesa da Revolução de modelo
cubano.
Em Portugal, Varela Gomes era, entretanto, alvo da política de ostracização,
que tentou negar-lhe lugar entre os 200 membros da Assembleia do MFA. Com
efeito, o Centro de Sociologia Militar da 5.ª Divisão levava a cabo um esforço
considerável para desenvolver uma rede de contactos com comissões de trabalhadores
e com unidades coletivas de produção na zona de intervenção da reforma agrária,
dando um passo em frente em relação às campanhas de Dinamização Cultural da CODICE (integrada na 5.ª
Divisão): onde dantes se procurava
combater o atraso e o caciquismo sobre as populações pobres do Interior, agora
passava a haver da parte do MFA também a atividade dirigida aos setores mais
dinâmicos da revolução – trabalhadores industriais em fábricas nacionalizadas e
assalariados rurais em herdades ocupadas. Mas, contra o que receava a Embaixada
dos EUA, Varela opunha-se a um projeto de “Poder Popular” que obliterasse a
importância dos partidos. Golias, que elaborou o rascunho do Documento-Guia para a Aliança Povo-MFA,
diz que Varela valorizava a importância dos partidos, mas viu o seu escopo desvirtuado
pela pressão antipartidária. Também Diniz de Almeida confirmou a oposição de
Varela às veleidades de dissolução dos partidos nos órgãos de “Poder Popular”.
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A História fará o seu juízo sobre a índole revolucionária deste combatente
e o Futuro também!
2018.02.27 – Louro
de Carvalho
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