terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Morreu o militar das revolucionárias alfabetização e dinamização cultural


Quem de entre os contemporâneos da revolução do “25 de Abril” não se lembra das ações revolucionárias de alfabetização e dinamização cultural concretizadas sobretudo em ambientes rurais e suburbanos por equipas militares em regime de multidisciplinaridade?
Tais ações que incluíam atividades de apoio às populações mais deprimidas e mais afastadas dos benefícios da civilização e envolvidas na ancestralidade cultural, eram desenvolvidas sob a égide da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, o departamento responsável pela alimentação ideológica da chama revolucionária e em que pontificava como chefe João Varela Gomes, coronel de artilharia – que, diga-se, deu lugar a alguns abusos locais.
A 5.ª Divisão, que fora criada para organizar a informação e propaganda do MFA (Movimento das Forças Armadas) durante o PREC, era responsável pelos programas de rádio e de televisão do MFA, além da publicação dum boletim e da organização de sessões de esclarecimento sobre o programa revolucionário por todo o país – encontros que ficaram conhecidos sobretudo como de “Dinamização Cultural”. Contudo, foram tidos, pelos setores da sociedade portuguesa de então mais conservadores e de outros que defendiam preferencialmente um sistema de democracia representativa de inspiração ocidental, como uma interferência dos militares na vida política do país. Este departamento político-militar – em razão da figura do chefe, visto por muitos como próximo do Partido Comunista Português – ficou historicamente encostado aos setores radicais da esquerda que, durante o PREC, mostraram opor-se, na linha sustentada pela figura do general Vasco Gonçalves, à implementação dum sistema político assente no parlamentarismo e na escolha dos representantes do povo com base em eleições por voto secreto e universal.
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Ora, segundo anunciou em primeira mão a RTP, morreu esta segunda-feira, aos 93 anos, em sua casa, Varela Gomes, importante figura, não só do 25 de Abril, mas também da resistência contra a ditadura de Salazar, que esteve no Golpe de Beja com Humberto Delgado, em 1961. Porém, a memória mais recente reconhece-o como uma das principais figuras do PREC (Período Revolucionário em Curso) em chefe da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas que incomodou muitos, sobretudo o então embaixador dos EUA em Portugal, Frank Carlucci.
João Maria Paulo Varela Gomes nasceu em 24 de maio, em Lisboa, e entrou para a Escola do Exército, em 1943, cursando em Artilharia.
A nota biográfica que acompanha a notícia da RTP detalha que este, que foi um dos militares mais ativos politicamente antes e depois do 25 de Abril, entrou na clandestinidade depois do 25 de Novembro de 1975, para escapar ao mandado de captura emitido em seu nome, tendo saído do país para Cuba via Espanha e, depois, para Angola, tendo regressado a Portugal só em 1979.
Em reação à notícia, o coronel Vasco Lourenço, Presidente da Associação 25 de Abril, em declarações à agência Lusa, considerou-o uma figura “muito importante na história do século XX em Portugal” e “um grande lutador contra a ditadura e contra o fascismo”. Depois do 25 de Abril, acrescentou, “também se envolveu apaixonadamente, como fazia sempre, em coisas positivas e outras menos positivas”. “Prefiro recordar as positivas”, enfatizou Vasco Lourenço.
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Durante o Estado Novo, ditadura travestida de democracia unitária, orgânica e corporativa, sucessora da Ditadura Militar iniciada por Gomes da Costa e transformada em Ditadura Nacional por Salazar no exercício de Ministro das Finanças e sob a égide do Marechal Carmona, Varela Gomes teve notória participação ativa contra o regime, tendo sido um dos participantes ativos do chamado Golpe de Beja, na noite de passagem de ano de 1961 para 1962, onde foi ferido com gravidade, juntamente com, entre outros, Manuel Serra e Eugénio Oliveira, vindo este a ser, mais tarde, grão-mestre da loja maçónica do Grande Oriente Lusitano (GOL).
Naquela madrugada, um grupo de militares, encabeçado por Humberto Delgado, tentou tomar o quartel do Regimento de Infantaria 3, em Beja. A revolta acabou por ser travada pelas tropas de Salazar, com duas mortes pelo meio, incluindo a do Subsecretário da Defesa, Jaime Fonseca.
Em entrevista à RTP em 1975, Varela recordou que não foi o autor daquele golpe, atribuindo o mérito a Manuel Serra e assumindo-se apenas como dirigente operacional do golpe.
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Além de toda a luta contra a ditadura, Varela Gomes foi ainda uma das figuras da Revolução dos Cravos e chegou a ser designado como “o primeiro capitão de abril”.  Militar, antifascista e revolucionário até ao fim, foi um militar de abril e um dos últimos a depor armas no 25 de Novembro, no fim da revolução.
Aquando do golpe de Beja, como disse em entrevista à RTP, em 1975, acreditava que “o fascismo tinha os dias contados”, mas teve de esperar mais 12 anos. Em 1964, foi julgado pelo tribunal plenário e fez um discurso contra a ditadura, com ecos na imprensa estrangeira, devido ao brado “Outros triunfem onde nós fomos vencidos” para salvação da “Pátria bem-amada”.
Após o 25 de Abril, o golpe que se transformou em Revolução dos Cravos, foi reintegrado no Exército e tornou-se uma das figuras centrais da 5.ª Divisão, dependente do Estado-Maior General das Forças Armadas e encarregada de organizar as campanhas de dinamização cultural, associadas à chamada “esquerda militar”. Varela Gomes e a 5.ª Divisão tiveram papel ativo na derrota do golpe do 11 de Março de 1975, ligado à direita e a Spínola, que foi o primeiro Presidente da República após o 25 de Abril. Depois do ataque de paraquedistas de Tancos contra o Ralis, em Lisboa, e de pedir ação da Presidência da República, Varela Gomes decidiu enviar uma mensagem a todas as unidades, apelando à resistência – atitude que lhe valeu a acusação de “usurpação de funções”, que o próprio, em entrevista à RTP, em 2015, explicou como uma “usurpação revolucionária”. Em 1975, esteve duas semanas em visita a Cuba, encontrando-se, por duas vezes, com o líder cubano, Fidel Castro, e o seu irmão Raul. Nesse ano, dá-se o 25 de Novembro, o movimento militar de 1975 que significou o princípio do fim da revolução e que a “esquerda militar” e o PCP consideram a “contrarrevolução”.
Varela Gomes foi dos últimos a abandonar a defesa dos “revolucionários” no terreno, o que levou o jornal norte-americano The New York Times a associá-lo à revolta dos paraquedistas, como recordou António Louçã, autor da biografia “Varela Gomes: que outros triunfem onde nós fomos vencidos”. Do Copcon (Comando Operacional do Continente), dirigido pelo estratega do 25 de Abril Otelo Saraiva de Carvalho, contactou várias unidades militares para saber se iam resistir. No entanto, ganha o grupo dos nove, os “moderados”, e Varela Gomes passou a viver na clandestinidade até janeiro de 1976, sendo 4 anos no exílio. Fugiu para Espanha, Cuba e, depois, viveu em Angola, tendo regressado em 1979, antes da promulgação duma lei de amnistia, e sendo, nos anos 80, associado à tentativa duma candidatura da esquerda a eleições europeias e autárquicas. Manteve, até final, opiniões polémicas, sobre a nossa democracia, que apelidou de “democracia filofascista”, filha do “25 de Novembro” que, durante anos, quis “descomemorar”. E escreveu vários livros, entre eles: “A Contrarrevolução de fachada socialista” e “Tempo de Resistência” (1980) e “Esta democracia filofascista” (1999).
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O “golpe de Beja”, organizado com os cuidados conspirativos possíveis, não era o produto de laboratório duma decisão voluntarista; era, antes, a expressão militar do sobressalto que vivia o país – a campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958, e o início da guerra colonial, em 4 de fevereiro de 1961. Varela assumiu o ceticismo intelectual existente até à campanha de Delgado, frisando que tal cepticismo foi estilhaçado pelo entusiasmo popular em torno de Delgado que passara pela experiência de pôr na rua centenas de milhares de pessoas ao visitar o Porto com a sua enorme popularidade e apostava que, com um quartel, sublevaria o país inteiro.
O ano de 1961 é visto como o annus horribilis para Salazar: a tomada do paquete Santa Maria (janeiro), a revolta independentista em Angola (fevereiro), a rebelião de generais incluindo o Ministro da Defesa Nacional (abril), a condenação de Portugal na ONU, as eleições (novembro), a anexação de Goa pela União Indiana (dezembro) – uma “cascata de acontecimentos”.
Varela Gomes assumiu-se apenas como dirigente operacional do golpe. E, nessa qualidade, não devia ter sido ele a prender o 2.º comandante do quartel, major Calapez Martins. Daí resultou ferido com gravidade e foi jugulada a revolta na fase inicial. Recordando o médico Ludgero Pinto Basto, Varela Gomes disse que ficou a dever-lhe a vida, a ele e a Carlos George, depois de ser ferido na Revolta de Beja. Uma equipa médica fora enviada de Lisboa para tratar os feridos do lado governamental – apenas o Subsecretário da Defesa, abatido por “fogo amigo” da GNR. Verificado o óbito, a equipa médica iria despachada para Lisboa pela PIDE, mas o chefe, Sabido Ferreira, fez valer as instruções que trazia de Carlos George e de Ludgero Pinto Basto: só deixar Beja quando tivesse tratado também os feridos do lado dos insurretos.
Maria Eugénia Varela Gomes recordou em entrevista à RTP, em 1975, que, à notícia do fracasso da revolta e dos ferimentos do marido, partiu para Beja com o irmão e o pai, atravessando um Alentejo que parecia um país ocupado. Mas recorda também, nesse ambiente opressivo, como foi sempre amparada por gestos de solidariedade e simpatia da população. À porta do hospital, a polícia recusava dizer-lhe se o marido estava vivo ou morto; e Maria Eugénia insistiu até obter resposta. Só em finais de janeiro, recebia a 1.ª carta do seu João, que, ainda a fazer uma convalescença difícil, tardara vários dias a escrever – a lápis.
A 11 de março de 1975, aviões da Força Aérea e uma força de paraquedistas de Tancos atacaram o Ralis, em Lisboa, causando um morto e vários feridos. Mas o Ralis não se rendeu, ganhou tempo e era preciso usar esse tempo para enfrentar o golpe. Na 5.ª Divisão do EMGFA, Varela Gomes ligou para a Presidência da República e para o Copcon, a pressioná-los para tomarem medidas e foi recebendo respostas evasivas. Decidiu então tomar medidas por sua conta: mandar uma mensagem para todas as unidades apelando à resistência e emitir pela rádio e pela televisão um apelo à mobilização popular – vindo a ser acusado de usurpação de funções por ter tomado essas medidas perante a iminência duma guerra civil. Em entrevista de 2015 à RTP – uma das últimas que concedeu – assumiu ter cometido usurpação revolucionária. E contou o que passou aos relatores do 25 de Novembro: ainda no dia 26, enviou uma delegação a Tancos para se inteirar da disposição que pudessem ter os paraquedistas para resistir ao estado de sítio decretado na Região Militar de Lisboa.
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Outro dos temas que serviram de arma de arremesso contra a sua atuação no 11 de Março foi a participação na assembleia de mais de 200 militares, reunida na noite de 11 para 12.
A 25 de abril de 1975, dia das eleições constituintes, Varela Gomes encontrava-se em Cuba, no âmbito da missão que aí fora enviado e cujos objectivos explicou no regresso.
Jorge Golias, hoje coronel e, à data, um dos mais destacados capitães de Abril, integrava a delegação. Em outubro de 2017 relatou, em entrevista à RTP, os aspetos fundamentais da visita, bem como a composição do grupo enviado e o papel de Varela Gomes à cabeça da delegação.
Juntamente com o embaixador português, José Fernandes Fafe, Varela organizou na Embaixada uma comemoração do 1.º aniversário do 25 de Abril. Aí estiveram como convidados Fidel e Raul Castro. Foi nessa circunstância que ocorreu uma das duas reuniões que tiveram lugar com o líder cubano. Nas mais de duas semanas que ela durou, Raul Castro, a 2.ª figura da hierarquia do Estado, acompanhou a visita pari passu. À delegação atribuía-se importância considerável, refletindo o significado que em Cuba se reconhecia ao nosso processo revolucionário. Golias refere esse acompanhamento e um outro, da parte de agentes da segurança cubana, que a delegação considerara excessivo e desnecessário, sendo Varela Gomes, entre todos, quem teve reações mais veementes contra a irritante presença policial.
Dois temas do intercâmbio com Cuba, que Varela referiu, foram objeto de preocupação da Embaixada norte-americana: “a formação ideológica nas Forças Armadas cubanas e a organização da população para tarefas de defesa da revolução”. A seguir, a Embaixada fez diligências junto da 5.ª Divisão para esclarecer se não estaria a realizar-se a doutrinação de caráter comunista nas Forças Armadas. Além dessa inquirição direta e frontal, realizavam-se diligências de bastidores para enfrentar o alegado perigo de se criar em Portugal uma “Cuba da Europa”. E, paralelamente às diligências citadas, Frank Carlucci enviava telegrama ao chefe em Washington, Henry Kissinger, dizendo da preocupação pela eventualidade de a 5.ª Divisão pôr em prática as ideias que Varela trouxe de Cuba, com a possível criação de Comités de Defesa da Revolução de modelo cubano.
Em Portugal, Varela Gomes era, entretanto, alvo da política de ostracização, que tentou negar-lhe lugar entre os 200 membros da Assembleia do MFA. Com efeito, o Centro de Sociologia Militar da 5.ª Divisão levava a cabo um esforço considerável para desenvolver uma rede de contactos com comissões de trabalhadores e com unidades coletivas de produção na zona de intervenção da reforma agrária, dando um passo em frente em relação às campanhas de Dinamização Cultural da CODICE (integrada na 5.ª Divisão): onde dantes se procurava combater o atraso e o caciquismo sobre as populações pobres do Interior, agora passava a haver da parte do MFA também a atividade dirigida aos setores mais dinâmicos da revolução – trabalhadores industriais em fábricas nacionalizadas e assalariados rurais em herdades ocupadas. Mas, contra o que receava a Embaixada dos EUA, Varela opunha-se a um projeto de “Poder Popular” que obliterasse a importância dos partidos. Golias, que elaborou o rascunho do Documento-Guia para a Aliança Povo-MFA, diz que Varela valorizava a importância dos partidos, mas viu o seu escopo desvirtuado pela pressão antipartidária. Também Diniz de Almeida confirmou a oposição de Varela às veleidades de dissolução dos partidos nos órgãos de “Poder Popular”.
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A História fará o seu juízo sobre a índole revolucionária deste combatente e o Futuro também!
2018.02.27 – Louro de Carvalho

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