terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

“Sinal sacramental da nossa conversão”

É o inefável predicativo que o Papa Francisco atribui, na sua mensagem quaresmal deste ano, à Quaresma como oferta da providência divina com o objetivo de nos preparar para a Páscoa do Senhor, que nos regenera e introduz no mistério do gáudio do Reino.
A Quaresma, que se inicia com a celebração de Cinzas, é um período marcado por apelos ao jejum, partilha e penitência, que serve de preparação para a Páscoa, a principal solenidade do calendário cristão. E Francisco parte destas práticas tradicionalmente associadas ao tempo quaresmal para apelar à solidariedade e à partilha, recordando que muitos organismos recolhem, nesta ocasião, donativos “em favor das Igrejas e populações em dificuldade”.
O texto da mensagem papal, datado do passado dia 1 de novembro, Solenidade da santidade de Deus replicada em todos os sues Santos e Santas, e hoje publicado, inspira-se no Evangelho de Mateus “Porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos” (Mt 24,12).
O versículo transcrito situa-se no discurso que trata do fim dos tempos, pronunciado em Jerusalém, no Monte das Oliveiras, precisamente onde iria ter início a Paixão do Senhor. Respondendo a uma pergunta dos discípulos, Jesus anuncia uma grande tribulação e descreve a situação em que poderia encontrar-se a comunidade dos fiéis: perante fenómenos espaventosos, alguns falsos profetas aproveitarão a oportunidade para enganar a muitos, a ponto de parecer ficar prestes a apagar-se, nos corações, o amor que é o centro de todo o Evangelho e que tem a capacidade de mover os corações e impulsionar a maior e melhor das revoluções.
Contrariando essa tendência do profetismo da desgraça e movido pela alegria do Evangelho, o Papa vem anunciar a boa nova da graça da possibilidade de “voltar ao Senhor de todo o coração e com toda a nossa vida”. Pretende, como deixa explícito, “ajudar toda a Igreja a viver, neste tempo de graça, com alegria e verdade”.
***
Não obstante, o Pontífice adverte para as inúmeras formas que os falsos profetas podem assumir. Podem ser “encantadores de serpentes”, ou seja, podem aproveitar-se das emoções humanas para escravizar as pessoas e levá-las para onde querem. E muitos “homens e mulheres vivem fascinados pela ilusão do dinheiro, quando este, na realidade, os torna escravos do lucro ou de interesses mesquinhos” e muitos vivem a pensar “que se bastam a si mesmos e caem vítimas da solidão”.
Outros falsos profetas são os “charlatães” que oferecem soluções simples e imediatas para todas as aflições, mas que, afinal, são remédios que se mostram completamente ineficazes: droga, relações passageiras e virtuais, lucros fáceis mas desonestos. Tais impostores, que “oferecem coisas sem valor, tiram aquilo que é mais precioso como a dignidade, a liberdade e a capacidade de amar” e as pessoas ficam sepultadas numa condição inumana.
Por isso, como escreve Francisco, cada um de nós é chamado a discernir e a verificar se está ameaçado pelas mentiras dos falsos profetas, mentiras que acabam por apagar o amor. Até a própria criação testemunha silenciosamente este resfriamento: “a terra está envenenada por resíduos lançados por negligência e por interesses; os mares, também eles poluídos, devem infelizmente guardar os despojos de tantos náufragos das migrações forçadas; os céus – que, nos desígnios de Deus, cantam a sua glória – são sulcados por máquinas que fazem chover instrumentos de morte”.
***
No quadro do profetismo das desgraças e do resfriamento do amor de Deus, o Papa arrisca falar das caraterísticas do “coração frio”. E parte da descrição do Inferno por Dante Alighieri, na “Divina Comédia”: o diabo, sentado num trono de gelo, habita no gelo do amor sufocado. E Francisco responde a questões existenciais que nós, cá no íntimo, formulamos, tais como: “Como se resfria o amor em nós? Quais são os sinais indicadores de que o amor corre o risco de se apagar em nós?”. E diz:
O que apaga o amor é, antes de mais nada, a ganância do dinheiro, ‘raiz de todos os males’ (1Tm 6,10); depois dela, vem a recusa de Deus e, consequentemente, de encontrar consolação n’Ele, preferindo a nossa desolação ao conforto da sua Palavra e dos Sacramentos. Tudo isto se permuta em violência que se abate sobre quantos são considerados uma ameaça para as nossas ‘certezas’: o bebé nascituro, o idoso doente, o hóspede de passagem, o estrangeiro, mas também o próximo que não corresponde às nossas expectativas.”.
Depois, explicita como é que a criação é testemunha silenciosa deste resfriamento do amor: pelo envenenamento, saturação e povoamento de instrumentos de destruição e de morte nos diversos habitats, em resultado da supina negligência ou do agudo e obstinado interesse desordenado ao arrepio dos ditames do bem comum.
E, para enfatizar o resfriamento do amor nas nossas comunidades, o Papa retoma os sintomas enunciados na Exortação apostólica Evangelii gaudium: “a acédia egoísta, o pessimismo estéril, a tentação de se isolar empenhando-se em contínuas guerras fratricidas, a mentalidade mundana que induz a ocupar-se apenas do que dá nas vistas, reduzindo assim o ardor missionário”.
***
Ante os dados enunciados e para reganharmos a alegria do Evangelho e o ardor da caridade na justiça, o Bispo de Roma, na sua solicitude pela totalidade da Igreja, aponta, “a par do remédio por vezes amargo da verdade”, a panóplia dos elementos que a Igreja, mãe e mestra, nos oferece, neste tempo de Quaresma, nos apresenta como constitutivos do “remédio doce” para os males da alma da pessoa e da comunidade: a oração, a esmola e o jejum – importando que todos e todas estejam abertos à aceitação desta preciosa receita.
Pela oração mais duradoura e intensa, levamos o coração à descoberta das “mentiras secretas com que nos enganamos a nós mesmos” para procurarmos eficazmente a consolação em Deus, nosso Pai, que pretende “para nós a vida”.
Pela prática da esmola, não como descarga de consciência ou como ato de despacho do outro ou até de desdém, mas como obra da caridade na justiça, libertamo-nos da ganância, cultivamos a moderação e a temperança e descobrimos que “o outro é nosso irmão” e que “aquilo que possuo nunca é só meu”. Assim, o Papa deseja que a esmola se torne “um verdadeiro estilo de vida para todos” e que todos, como cristãos, sigamos “o exemplo dos Apóstolos” e vejamos, “na possibilidade de partilhar com os outros os nossos bens, um testemunho concreto da comunhão que vivemos na Igreja”. Mais: o Pontífice pretende que este estilo e espírito de partilha – o que nos convém (cf 2Cor 8,10), segundo o apóstolo Paulo – nos inspirem “de modo especial na Quaresma, durante a qual muitos organismos recolhem coletas a favor das Igrejas e populações em dificuldade”. Mas diz-nos sobretudo que gostaria de que, “no nosso relacionamento diário, perante cada irmão que nos pede ajuda, pensássemos: aqui está um apelo da Providência divina”. Com efeito, “cada esmola é uma ocasião de tomar parte na Providência de Deus para com os seus filhos” e de ter em conta esta esperançosa questão: “Se hoje Ele Se serve de mim para ajudar um irmão, como deixará amanhã de prover também às minhas necessidades, Ele que nunca Se deixa vencer em generosidade?”.
E, no respeitante ao jejum e àquilo que lhe seja equivalente, diz Francisco que “tira força à nossa violência, desarma-nos, constituindo uma importante ocasião de crescimento”. Enquanto experimentamos “o que sentem quantos não possuem sequer o mínimo necessário, provando dia a dia as mordeduras da fome”, sentimos, pela via da frugalidade, “a condição do nosso espírito, faminto de bondade e sedento da vida de Deus”, ficamos “mais atentos a Deus e ao próximo” e reanimados na “vontade de obedecer a Deus, o único que sacia a nossa fome” e concretizamos na vida a comunicação cristã de bens, uma das modalidades da Comunicação dos Santos.
***
Neste campo da autoprivação com vista à partilha, o Papa exprime explicitamente o desejo de que a sua voz ultrapasse as fronteiras da Igreja Católica, alcançando a todos, “homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus”. Efetivamente, se deveras os aflige “a difusão da iniquidade no mundo”, se os “preocupa o gelo que paralisa os corações e a ação” e se veem “esmorecer o sentido da humanidade comum”, é salutar que todos se unam connosco para invocarmos juntos a Deus, jejuarmos juntos e darmos o que pudermos “para ajudar os irmãos”.
***
E para acolher, alimentar e avivar o fogo da Páscoa, o Bispo de Roma incita, sobretudo os membros da Igreja, “a empreender com ardor o caminho da Quaresma, apoiados na esmola, no jejum e na oração”, pois, se o amor parece, por vezes, apagar-se nos corações dos homens, nunca se apaga “no coração de Deus”, que “sempre nos dá novas ocasiões para recomeçar a amar” – porque Deus é amor e toma a iniciativa de amar.
Assim, fica enfatizada como boa oportunidade a iniciativa “24 horas para o Senhor”, que nos convida a celebrar o sacramento da Reconciliação num contexto de adoração eucarística e que, este ano, “será celebrada nos dias 9 e 10 de março”, inspirando-se nestas palavras do Salmo 130, “Em Ti, encontramos o perdão” e devendo, em cada diocese, pelo menos uma igreja ficar aberta durante 24 horas consecutivas, oferecendo a possibilidade de adoração e da confissão sacramental”.
E, na noite de Páscoa, reviveremos o rito do círio pascal: a luz, tirada do “lume novo”, expulsando progressivamente a escuridão, iluminará a assembleia litúrgica e todos reviveremos “a experiência dos discípulos de Emaús”, de modo que, ouvindo a palavra do Senhor e alimentando-nos do Pão Eucarístico, o nosso coração voltará “a inflamar-se de fé, esperança e amor” e termos a capacidade para sermos cada vez mais a Igreja em saída que Jesus mandou aos confins da Terra a anunciar a Boa Nova da alegria e da paz.

2018.02.06 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário