sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

A dignidade e grandeza da consciência moral e da liberdade


É usual, a propósito de situações problemáticas com que as pessoas são confrontadas, virem ao de cima exclamações do género: “ai, eu estou de consciência tranquila” ou “nada me pesa na consciência”. Isso, mais do que desculpa ou verdadeira confissão de inocência, sabe a hipocrisia, sobranceria, inconsciência ou irresponsabilidade
O n.º 16 da “Gaudium et Spes” (GS), a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, constitui um texto que aparentemente dá legitimidade para cada um pensar e agir como quiser, mas que é intensamente sério e de caráter imperioso. Diz o texto:
No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a reta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objetivas da moralidade. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado.”.
É verdade que a consciência é o santuário em que o homem se encontra solitariamente consigo sem a interferência de ninguém. Isto significa que ninguém pode violar a consciência de ninguém, tentar comprá-la ou domesticá-la; e ninguém pode deixar-se acorrentar a outrem em questões de consciência – sem autossuficiência e sem carneirismo. Todavia, nessa intimidade da consciência, tem que se abrir a porta a Deus, que ilumina e dá força para decidir, já que ali se faz ouvir de modo peculiar.
Por outro lado, é preciso ter em conta – ao invés dos disparates que estão a difundir-se nalguma comunicação social e nas redes sociais a propósito duma nota do cardeal patriarca de Lisboa, mal lida e distorcida, para orientação dos sacerdotes em torno da aplicação do capítulo VIII da “Amoris Laetitia – é preciso ter em conta a lei que Deus inscreveu nas consciências de todos e que não foi cada um que a impôs a si próprio, muito embora se deva saber que, neste caminho, por vezes, penoso de procura do bem e de fugir do mal, consciência que erre sem culpa própria não perde a dignidade e a grandeza que lhe são inerentes.
Sucede que, muitas vezes, por conveniência do instinto ou por cegueira resultante do pecado de cada um ou ainda por ignorância própria e pela facilidade com que o exterior provoca o embotamento das sensibilidades, não se vislumbra com clareza a luminosidade da lei divina.
Assim, o texto citado da GS remete para a Carta aos Romanos, que dispõe:
Quando há gentios que, não tendo a Lei, praticam, por inclinação natural, o que está na Lei, embora não tenham a Lei, para si próprios são lei. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, tendo ainda o testemunho da sua consciência tal como dos pensamentos que, conforme o caso, os acusem ou defendam – isto no dia em que Deus, segundo o meu Evangelho, há de julgar por Jesus Cristo o que de oculto houver nos homens.” (Rm 2, 14-16).
Faz-nos, ainda, recordar a resposta que Jesus deu ao fariseu legista que lhe perguntara qual era o maior mandamento da Lei:
Jesus disse-lhe: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mt 22,37-40).
E a carta aos Gálatas, pressupondo que o amor ao próximo comporta em si o amor a Deus, frisa:
É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo.” (Gl 5,14).
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Mas não basta o encanto da consciência: é preciso considerar as suas exigências. O próprio texto da GS postula a fidelidade de cada um à voz da sua consciência e apela ao cumprimento do dever de buscar a verdade e o bem e “de nela (na consciência) resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social”. E, por outro lado, exige a formação da consciência e a conformação com as normas da moralidade.
Em relação com a dignidade da consciência está a grandeza da liberdade. A este respeito, o n.º 17 do documento conciliar em referência diz que é só na liberdade – hoje apreciada grandemente e, com toda a razão, procurada com ardor – “que o homem se pode converter ao bem”. Porém, fomentando-a, por vezes, dum modo condenável, “como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for”, esquecem que “a liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem”, de modo que “busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele”. Neste percurso existencial, a dignidade do homem exige que “ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coação externa”. Mais: “o homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes”.
Já Pio XII – o Concílio não surgiu por geração espontânea, mas foi preparado de muitos modos – abordava na sua radiomensagem sobre a consciência moral no âmbito da família, a 23 de março de 1952, a questão da consciência como “o que há de mais profundo e intrínseco no homem”. E, quando algumas correntes de pensamento pretendiam alterar o conceito e impugnar o valor da consciência, o Papa Pacelli tratava dela como objeto da educação. 
Considerando a consciência como “o núcleo mais íntimo e secreto do homem”, dizia ser ela “o lugar onde ele se refugia com as suas faculdades espirituais, em solidão absoluta: sozinho consigo mesmo, ou melhor, só com Deus – de cuja voz a consciência é um eco – e consigo mesmo”. É frente à sua consciência – espera-se que retamente formada – que o homem se decide pelo bem ou pelo mal e sente o juízo dela: aqui e agora, fez bem ou fez mal.
Não podendo sobrepor-se a ela, que é sua orientadora e sua “verdadeira e incorruptível” testemunha de vida, com ela se apresenta ao juízo de Deus. Dizia o Papa que ela é um santuário em cujo limiar todos devem deter-se, mesmo os pais tratando-se de um filho, com exceção do sacerdote enquanto médico de almas, mas chamando sem forçar. 
Depois, são enunciados alguns critérios de formação da consciência.
Em primeiro lugar, importa acolher, na debilidade humana, a verdade e a graça de Cristo, que nos apontam o caminho que leva à meta e dão força para a alcançar. Na prática, significa aceitar os mandamentos emoldurados pela palavra e vontade do Mestre. Estes mandamentos que enformam a consciência reta estão impressos no coração de cada pessoa (cf Rm 2,14-16), como lei natural – que muitas escolas de Direito se recusam a aceitar como fonte de direito –, e na revelação sobrenatural, ou seja, no conjunto das verdades e preceitos enunciados por Cristo e antecipados por Moisés e pelos Profetas.
E este prodigioso tesouro, entendido no quadro do dinamismo da Oração do Senhor (Pai Nosso), que Ele ensinou aos discípulos como verdadeiro programa de vida, e na profundidade da doçura das Bem-aventuranças, tem de ser pregado aos quatro ventos e transmitido de geração em geração pela Igreja – todos os membros do povo de Deus, com especial responsabilidade para os bispos e os presbíteros, mas sem deixar de ter como pertinente o ensino dos teólogos e dos catequistas e o múnus dos diáconos e dos leitores. 
Este confronto assíduo com a palavra de Deus, pregada e meditada na comunidade como repasto da espiritualidade e formação do ser e sentir da Igreja, impedirá o avanço do individualismo exacerbado, que se torna o maior inimigo da reta consciência.
Por outro lado, a formação da consciência exige que não se pare de estudar e aprofundar os fundamentos da fé e regá-los com muita oração pessoal e comunitária. O cristão tem de sentir e exibir o cheiro a comunidade, a biblioteca e a oratório, bem como saber estar em assembleia.
Depois, o crente que pretenda formar retamente a sua consciência tem de cultivar a humildade de aprender com todos, abstendo-se de se julgar superior e de menosprezar a simplicidade da fé dos outros, devendo, no entanto, dispor-se a partilhar com os outros os seus saberes e experiências vitais e a receber deles os contributos que lhe sejam salutares.
Outra ajuda para a formação da consciência é o exame da vida de perfeição espelhada no percurso discursivo e atitudinal dos santos e santas que a autoridade da Igreja expõe à consideração e ao culto dos crentes.
É de ter na devida conta que o Redentor entregou a Revelação, que inclui as obrigações morais, não a cada um, mas a toda a Igreja, à qual prometeu toda a assistência do Alto para que não caia na deformação ou no erro.
Por outro lado, a Igreja, sabendo ler o depósito da fé e os sinais dos tempos, encontrará forma de iluminar as novas realidades e circunstâncias de modo que as consciências possam progredir no caminho da retidão, sem medo e sem temeridade. E Pio XII dá o exemplo da “doutrina social da Igreja, que, nascida para responder a novas necessidades, é no fundo a aplicação da perene moral cristã às presentes circunstâncias económicas e sociais”.
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Assim, hoje a moral, em vez de insistir na apreciação meramente casuística dos atos ou de persistir na intransigência dos preceitos, na pregação das ilicitudes ou na imposição das pesadas obrigações, pretende a conformação coerente da vida com a lei da liberdade e do amor.
Para tanto, há que penetrar profundamente nas profundezas da fé, sendo daí que decorrerão as obrigações morais que vinculam a consciência ao nível das atitudes e comportamentos, mais do que ao nível das palavras – sempre na retidão, na confiança e na perseverança. 
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A consideração da consciência como santuário em que o homem se encontra a sós com Deus impõe que tal santuário não se torne um casulo donde não se sai, ou um bunker à prova de bala, bomba, míssil ou sismo. Ao invés, a força que o santuário fornece à dignidade do homem há de levá-lo às periferias existenciais. Da produção misteriosa no quadro da consciência espera-se a irrupção do santo e santificante pelo meio do mundo, com respeito, mas com convicção.
Por isso, as normas da moralidade que vinculam a consciência de cada um têm de se afirmar frente à coletividade. É, pois, contraindicado exigir ou aceitar que a autoridade da lei moral seja excluída da vida pública, económica, social e política, como se nestes setores, “verdadeiramente autónomos” em relação às religiões, Deus não tivesse uma palavra a dizer. Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, ao contrário do que alguns pensam, não implica eclipsar Deus ou eclipsar César.
Na verdade, a emancipação das atividades humanas externas, como as ciências, a política e as artes, em relação à moral, não quer dizer que elas, além de se regerem pelas suas próprias leis, não tenham que ter em conta os valores axiais, princípios e normas que a ética enquanto quadro fundamental humano inspira a todos.
Por vezes, a subtração das consciências e das atividades às leis morais é muito subtil e faz-se em nome da pretensa autonomia que, por vezes se quer absoluta, dando lugar à autossuficiência e largas a todo o tipo de desordenamento, por vezes, assumido como elemento próprio das ciências e das artes e essencial a elas. Ora, é conveniente que a autonomia teórica em relação à moral não se converta em rebelião prática, como é conveniente que não se rompa a harmonia inerente às ciências e às artes, tal como a harmonia de relação que há entre o homem e Deus, que é seu Criador e Providência.
Em conformidade com o exposto, se compreende quão importante é a educação das pessoas, desde a infância à adultez com vista à formação das consciências e ao verdadeiro desenvolvimento pessoal e social na linha da humanidade, integralidade e harmonia, sempre num crescendo sadio ao longo de toda a vida. Tal é a responsabilidade dos educadores!
E, de uma vez por todas, se torne claro que não é decente, em nome da consciência e da modernidade, “excomungar” as opiniões dos outros, nomeadamente as orientações de figuras públicas da Igreja como se fossem pessoas ou dizeres descartáveis ou de deitar ao lixo.
É mau distorcer ou truncar o pensamento de outrem, como é mau invocar abusivamente a consciência sem perceber o que é a consciência moral e a sua dignidade, grandeza e exigências.
2018.02.09 – Louro de Carvalho
 

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