quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

“Aprender a despedir-se”


É a designação da mais recente Carta Pastoral em forma de Motu Proprio do Papa Francisco, datada de 12 de fevereiro e divulgada hoje, dia 15 – normativo com o qual se regula a renúncia, por motivo de idade, dos titulares de alguns ofícios de nomeação pontifícia.   
Antes de enunciar os normativos que o documento pretende clarificar e ao articulado que constitui o conteúdo deste pequeno conjunto de prescrições, o Pontífice faz o enquadramento bíblico e espiritual que leva a estas determinações e que tem um alcance que deve ser meditado.  
Ao comentar, na homilia de 30 de maio de 2017, em Santa Marta, uma passagem do livro dos Atos dos Apostolo (Ap 20,17-27), que dá conta do ambiente que envolveu a despedida de Paulo da Igreja de Éfeso, que o apóstolo tinha estabelecido, o Papa exortava a que se rezasse “pelos pastores, pelos nossos pastores: pelos párocos, pelos bispos e pelo Papa”. E agora vem dizer-nos que já na altura pedia que as pessoas aprendessem a despedir-se ou a deixar oportunamente os cargos que lhes foram confiados. Não podem, com efeito, ser em tempo algum ocasião de estorvo ou empecilho a que a missão prossiga de forma eficaz. Ademais, “ a conclusão de um ofício eclesial deve ser considerada parte integrante do próprio serviço, enquanto postula uma nova disponibilidade”.
Por outro lado, Francisco traz à mesa da reflexão a consideração da necessidade de assumir interiormente a disponibilidade e a preparação, se o motivo for a idade, para a renúncia ao cargo ou para continuar nele durante mais algum tempo.
Mais diz que aquele que vai apresentar a renúncia tem necessidade de se preparar diante de Deus, despojando-se dos poderes que tenha e da presunção de que é indispensável – o que permitirá atravessar com paz e confiança tal momento, que de outro modo poderia ser doloroso e conflitual. Ao mesmo tempo, quem se prepara para a aposentação (reforma, jubilação) deve, na oração humilde e confiante, formular um projeto de vida para a etapa a iniciar, disponibilizando-se, na humildade e austeridade, para prestar serviços pastorais compatíveis com a sua condição.
E adverte que, se excecionalmente for pedido que o titular do cargo continue ao serviço por um período de tempo mais longo, isso implicará abandonar generosamente “o próprio novo projeto pessoal”. Porém, tal circunstância não será nem um privilégio, nem um triunfo pessoal, nem um favor devido a presumíveis obrigações decorrentes da amizade ou da vizinhança, nem um como que ato de gratidão pela eficácia dos serviços prestados. Somente motivos conexos com o bem comum eclesial postularão tal excecionalidade.
Esclarece o Pontífice que a decisão pontifícia de aceitação de renúncia ou de pedido de continuação no cargo para lá da idade prescrita nunca é um ato automático, mas um ato de governo, que implica a virtude da prudência que levará, por meio de um adequado discernimento, a tomar a decisão mais acertada.  
A decisão de prolongamento de permanência num cargo acontecerá, por exemplo, se for considerada importante para completar adequadamente um projeto muito profícuo para a Igreja; se for conveniente assegurar a continuidade de obras importantes; se houver alguma dificuldade conexa com a composição do dicastério respetivo num período de transição; se for reconhecida a importância do contributo pessoal do titular em exercício para a aplicação de diretivas recentemente emitidas pela Santa Sé ou para a receção de novas orientações do Magistério.
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O Papa aprecia “o generoso empenho e a preciosa experiência acumulada de quem exerceu, durante diversos anos, alguns cargos de particular responsabilidade quer nas Igrejas particulares quer na Cúria Romana ou nas Representações Pontifícias”. Todavia, percebeu a necessidade duma atualização das normas acerca dos tempos e das modalidades de renúncia ao ofício por motivos do limite de idade. Por isso, depois das necessárias consultas, houve por bem:
- Estabelecer algumas clarificações ao artigo 2.º do Rescriptum ex audientia, de 3 de novembro de 2014, concedida ao Cardeal Secretário de Estado e ora confirmado (que refere que o Presidente e os membros do Colégio especial de sete cardeais ou bispos formado na Congregação para a Doutrina da Fé são nomeados pelo Papa), relativo aos Bispos diocesanos, Bispos coadjutores e Bispos auxiliares.
Com efeito, os cânones 401 e 402 do CIC (Codex Iuris Canonici – Código de Direito Canónico) estabelecem que o Bispo diocesano que tenha completado os 75 anos de idade e o que, em virtude da sua precária saúde ou outra causa grave, se torne menos apto para o desempenho do ofício, apresentem a renúncia ao Sumo Pontífice, que providenciará depois de examinar todas as circunstâncias. O bispo cuja renúncia seja aceite, mantém o título de resignatário (emérito) da sua diocese e o direito de nela residir, a menos que a Sé Apostólica, medidas as circunstâncias providencie de outro modo, devendo a Conferência Episcopal procurar prover à condigna sustentação do Bispo, mas sem deixar de considerar a obrigação primária que impende sobre a diocese que o emérito serviu. E o cânone 411 aplica aos Bispos coadjutores e aos Bispos auxiliares estas disposições no atinente à renúncia e à sustentação. E disposições análogas contêm os cânones 210-211, 218 e 213 do CCEO (Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium – Código dos Cânones para as Igrejas Orientais) em relação aos Bispos eparcas e exarcas, Bispos coadjutores e Bispos auxiliares para com o Patriarca, devendo o Sínodo dos Bispos da Igreja patriarcal ou o Conselho dos Hierarcas providenciar à côngrua sustentação dos eméritos.
- Modificar as normas canónicas respeitantes à renúncia ao ofício por motivo de idade, por parte dos Chefes de Dicastério não cardeais e dos Prelados Superiores da Cúria Romana e das Representações Pontifícias.
Ficam assim modificados: o art.º 5.º § 2 do Constituição Apostólica Pastor Bonus; o art.º 3.º do Regulamento Geral da Cúria Romana; o art.º 2.º do Rescriptum ex audientia, de 3 de novembro de 2014, referente aos Bispos que desempenham outros ofícios de nomeação pontifícia e aos Representantes Pontifícios; e o art.º 20.º §1 do Regulamento para as Representações Pontifícias.
Nestes termos, o Papa, estabelece:
Ao completarem 75 anos de idade, os bispos diocesanos e eparquiais e quantos a eles são equiparados pelos cânones 381 § 2 CIC e 313 CCEO, como o bispos coadjutores e auxiliares ou titulares com especial cargo pastoral, são convidados a apresentar ao Sumo Pontífice a renúncia ao seu ofício pastoral (vd art.º 1.º).
Completados os 75 anos, os Chefes de Dicastério da Cúria Romana não Cardeais, os Prelados Superiores da Cúria Romana e os Bispos que desempenham outros ofícios na dependência da Santa Sé não cessam ipso facto as funções do seu ofício, mas devem apresentar a renúncia ao Sumo Pontífice (vd art.º 2.º).
Do mesmo modo, completados os 75 anos de idade, os Representantes Pontifícios não cessam ipso facto as funções do seu ofício, mas, em tal circunstância, devem apresentar a renúncia ao Sumo Pontífice (vd art.º 3.º). 
Para se tornar eficaz, a renúncia deve ser aceite pelo Sumo Pontífice, que decidirá avaliando as circunstâncias concretas (vd art.º 4.º).
Apresentada a renuncia, o ofício é considerado prorrogado enquanto não for comunicada a aceitação da renúncia ou a sua prorrogação por tempo determinado ou indeterminado, contrariamente ao estabelecido, em termos gerais, nos cânones 189 § 3 do CIC e 970 do § 1 do CCEO (vd art.º 5.º) – que preveem o prazo de três meses para a aceitação por parte da autoridade competente para aceitar a renúncia que careça de aceitação, após o que ela se tornava automática, ou o ato de apresentação da renúncia que a torna automática, no caso de ela não carecer de aceitação. É o que não se aplica aos titulares dos cargos mencionados no presente Motu Proprio.  
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Obviamente, o predito enquadramento bíblico e espiritual constitui uma pérola desta Carta Pastoral e põe nos devidos termos a atitude psicológica que deve assumir o verdadeiro servidor. Não agarrado ao lugar nem dele dependente, está disponível para exercer a missão que lhe foi destinada ou as funções que lhe são confiadas. E deve fazê-lo enquanto for necessário, não devendo sair do cargo nem antes nem depois de ser dele dispensado ou sem que seja aceite a sua renúncia e mantendo a disponibilidade para continuar se tal lhe for solicitado.  
É claro que nunca deve sobrepor-se às circunstâncias uma posição pessoal, uma ambição, uma recompensa, um ato de gratidão, mas o bem comum da Igreja e a pertinência do contributo pessoal à causa, pertinência que deve ser avaliada não pelo próprio, mas por quem de direito.
O limite de idade estabelecido resulta duma norma, mas que nunca deve ser automaticamente aplicada, já que as pessoas são diferentes e podem estar capacitadas para lá do limite de idade como podem ficar menos capazes antes de atingir esse limite. E, no caso de doença ou de outro impedimento grave, é de ter em conta que ninguém é obrigado ao impossível, embora seja solicitado muitas vezes um sacrifício adicional. Por outro lado, há pessoas que tendem a julgar-se incapazes antes do tempo. Assim, também aqui o juízo definitivo sobre a dispensa deve provir da competente autoridade. Porém, nunca se pode esperar que seja a morte ou a doença a solução para os problemas. E, se é verdade que não é lícito descartar as pessoas quando já não parecem úteis à vitalidade das instituições, também é certo que a manutenção de pessoas nos ofícios além das suas capacidades prejudica inevitavelmente os mesmos ofícios.  
Há, em todo o caso, algo que parece estranho. Não consta, ao menos publicamente, que tenha havido um bater com a porta, de forma automática e precipitada, por parte das entidades nomeadas pelo Papa. Parece, antes, que alguns, levados por carreirismo supino, se sentem vítimas da não recondução em cargos em que se julgavam os mais competentes ou que deles estavam a servir-se para veicular as suas posições e interpretações, por vezes, contrárias às do Papa. Será que Francisco, com o atual Motu Proprio, quererá prevenir possíveis situações futuras ou remediar situações presentes, não conhecidas da opinião pública, mas que tenham a ver com o alegado desconforto gerado pela nova orientação que o Pontífice quer dar à Cúria Romana e às Representações Pontifícias e pelo ímpeto reformista que pretende imprimir à Igreja? Pretenderá evitar cenários de demissões em bloco? Se assim for, o enquadramento espiritual que antecede este normativo é deveras insuficiente! Tem de ser mais veemente, claro e audaz.
2018.02.15 – Louro de Carvalho

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