No 2.º Domingo da Quaresma, a liturgia da
Igreja faz ressoar nos nossos ouvidos dos cristãos aquela voz vinda do Céu, no
alto da montanha da Transfiguração, que dizia a Pedro, Tiago e João e a que os
primeiros discípulos de Jesus aderiram: “Escutai-O!”.
Porém,
escutar o Filho de Deus postula uma atitude de absoluta confiança na Palavra de
Deus. E a perícopa veterotestamentária assumida como 1.ª
leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18), neste domingo do Ano B, mostra-nos
como Abraão confiou inteiramente na Palavra de Deus e
seguiu sem hesitar todas as suas indicações; e Paulo (2Tm 1,8b-10),
que ensina como temos de tomar a sério o chamamento de Deus à santidade de
vida, deixando-nos transfigurar à imagem de Jesus, que revela a sua glória
divina no mistério da Transfiguração, garante que, se Deus está por nós,
ninguém poderá estar contra nós (cf Rm 8,31b-34). De facto, fazendo a vontade do Pai, Jesus morreu,
ressuscitou e está à direita de Deus a interceder por nós.
“O Senhor falou a Abraão” (Gn 12,1-4a) nas origens do
antigo povo de Deus, como preparação do caminho do Evangelho. Diz a Dei Verbum que, “no devido tempo, Deus chamou Abraão para fazer dele
um grande povo” (DV,3). E a aliança com Deus implicava grandes exigências:
deixar terra, família, casa e atirar-se ao desconhecido, “a terra que Eu te indicar”, fiando-se apenas na palavra de Deus. É assim
que Paulo há de insistir no exemplo de fé e de obediência ao Deus de Abraão (cf Rm 4; cf Heb 11,8-19).
Nesta dominga, a
Palavra de Deus define o caminho que o verdadeiro discípulo deve seguir para
chegar à vida nova: o caminho da escuta atenta de Deus e dos seus projetos, da
obediência total e radical aos planos do Pai.
Agora,
a
1.ª leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18) continua a apresentar
a figura do patriarca Abraão como paradigma da atitude do crente diante de
Deus. Abraão é o homem de fé, que vive numa constante escuta de Deus, que
aceita os apelos de Deus e que lhes responde com a obediência total (mesmo quando o plano de Deus parece ir contra os seus sonhos
e projetos pessoais). Nesta linha de rumo, Abraão é o modelo do crente que
percebe o projeto de Deus e o segue de todo o coração. E, na 2.ª leitura (Rm 8,31b-34), Paulo lembra aos crentes que Deus os ama com um amor
imenso e eterno. A melhor prova desse amor é Jesus Cristo, o Filho amado de
Deus que morreu para ensinar ao homem o caminho da verdadeira vida. Sendo
assim, o cristão nada tem a temer e deve enfrentar a vida com serenidade
fundada na esperança, mesmo que tenha de sofrer pela causa do Evangelho. Com efeito, Deus, por
desígnio gratuito, a todos chamou à salvação. É um chamamento santo, não só por
ser e vir de Deus, mas também por levar a Deus; daí o enunciado menos formal: “Deus chamou-nos
a todos à santidade”.
***
O Evangelho apresenta-nos a cena da
transfiguração do Senhor. E o facto de isto suceder todos os anos no 2.º
Domingo da Quaresma evidencia um sentido a ter em conta para a nossa vida.
Assim como para os discípulos daquele tempo a Transfiguração de
Jesus serviu de preparação para se confrontarem com a sua desfiguração na agonia do Getsémani e ganharem a
esperança da ressurreição, assim também nós temos de nos dispor com olhos de fé
para a celebração do tríduo pascal, em que se celebra a vitória de Cristo sobre
o pecado e a morte, reerguendo a Vida.
O texto (Mc 9,2-9) situa-se
no princípio da segunda parte do evangelho, em que Jesus começa lentamente a revelar-Se.
O momento de viragem está no diálogo entre Pedro e Jesus (Mc 8,27-30). A resposta de Pedro, amigo e
discípulo mais preparado e mais próximo dele, não satisfez Jesus (vd Mc 8,30). O próprio Jesus começa então uma
catequese que se desenvolverá através dos três anúncios da Paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), mas a encontrar acolhimento difícil.
No tríplice anúncio da Paixão o
tema do sofrimento e morte prevalece, mas não está só; todo o anúncio termina
com o aceno à ressurreição. A transfiguração é colocada pouco depois do
primeiro anúncio e seguida quase imediatamente do segundo. Nela prevalece o
tema da glória, mas também marca notória presença o tema da dor, sendo que o
pressentimento da morte serve de fundo a esta perícopa, que figura uma página
de catequese construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento
e destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projeto que Ele
propõe vem de Deus. Jesus, o Filho muito amado
de Deus, vai concretizar o seu projeto libertador em prol dos homens através do
dom da vida. E aos discípulos, desanimados e assustados, assegura que o caminho
do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena e definitiva. Por isso,
quer que os discípulos sigam também esse caminho.
O monte remete para o contexto de revelação: é no monte que
Deus Se revela; e, em especial, é no cimo do monte que Ele estabelece a aliança
com o seu Povo (Sinai,
Tabor, Calvário).
A mudança do rosto e as vestes brilhantes, muitíssimo
brancas, recordam o resplendor de Moisés ao descer do Sinai (cf Ex 34,29) depois do encontro com Deus e de
ter as tábuas da Lei. A brancura, tal como a luz, faz parte do simbolismo da
época. Brancura resplandecente é própria das personagens do céu. O anjo que
anuncia a ressurreição aparece vestido de branco; e vestidos de branco estão os
dois homens que aparecem na ascensão de Jesus a interpelar os discípulos.
A nuvem indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus
manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto.
O Antigo Testamento (Elias representaria os profetas; Moisés a Lei) insere-se na vida de Jesus,
participando, em certa medida, no cumprimento das profecias e na inauguração da
nova era; e, além disso, aquelas duas personagens, segundo a catequese judaica,
deviam aparecer no “Dia do Senhor”, aquando
da manifestação da salvação definitiva.
Por seu turno, o temor e perturbação dos discípulos (tão naturais) são a reação lógica de qualquer
homem ou mulher ante a manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade
de Deus.
As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se
celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no
deserto.
A mensagem fundamental, amalgamada com todos estes elementos,
visa dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias veterotestamentárias, o autor
sagrado frisa que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória
do Pai. Ele é o Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado por
Moisés (a Lei) e por Elias (a Profecia). Ele é o novo Moisés, Aquele
através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e propõe aos homens
uma nova Aliança. A partir de agora, é a Ele que devemos escutar.
A cena da transfiguração une-se ao episódio do Batismo de
Jesus: a mesma voz sobre-humana (do céu – da nuvem), a mesma declaração do Pai (Tu és – este é). Porém, a presença dos três discípulos e o fundo das
predições sobre a Paixão remetem para o episódio da Agonia de Jesus no
Getsémani, onde Se dirige a Deus com o nome de Abba, Pai. Esta é a única vez, em
Marcos, em que Jesus invoca Deus com o nome de Abba (vd 14,36). No termo da sua vida pública e no início da Paixão,
aquela súplica a Deus parece ser a resposta de Jesus à dupla voz do céu, no
Jordão e no Monte da transfiguração, que O tinha proclamado “o meu filho amado”.
É a correspondente à expressão “Filho de
Deus”, colocada no início do Evangelho de Marcos (Mc 1,1) e que o evangelista põe na boca do centurião no
momento em que Jesus expirou (Mc 15,39).
***
Se a segunda parte do Evangelho de Marcos, em que se insere
a narrativa da transfiguração, começa com um anúncio da Paixão, posto na boca
de Jesus (cf Mc 8,31-32), é para
desfazer o conceito que os discípulos tinham do messianismo de Jesus. Com
efeito, eles já tinham percebido que Ele era o Messias libertador que Israel
esperava (cf Mc 8,29), como
ficou bem evidenciado na confissão de fé de Pedro. Todavia, ainda acreditavam
que a missão messiânica de Jesus se concretizaria num triunfo militar sobre o
opressor romano. Por isso, Marcos explica aos crentes a quem o seu Evangelho se
destina que este projeto messiânico não se concretizará em triunfo humano, mas
na cruz – no amor e no dom da vida. E, por isso, o relato da transfiguração é
antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf Mc 8,31-33) e duma instrução sobre as atitudes próprias do
discípulo (instado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu
caminho de amor e de entrega da vida – cf Mc 8,34-38). Após terem ouvido falar do “caminho da cruz” e
terem constatado o que Jesus pede aos que O querem seguir, os discípulos estão
desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se
para o fracasso: veem esfumar-se, na cruz a plantar numa colina de Jerusalém, o
sonho de glória, honra e triunfo e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre
que apenas oferece a morte na cruz (Não veem tudo; não veem a luz ao
fundo do túnel). É neste
contexto que Marcos coloca o episódio da transfiguração. A cena constitui uma
palavra de ânimo para os discípulos (e para a generalidade dos crentes), pois nela se manifesta a glória de Jesus e se atesta
que Ele, apesar da cruz que se aproxima, é o Filho amado de Deus. Os discípulos
recebem, pois, a garantia de que o projeto de Jesus vem de Deus; e, apesar das
suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite
“embarcar” e apostar nesse projeto. E esta esperança radica-se na escuta do
Filho de Deus.
Do ponto de visa literário, esta narração configura
uma teofania, ou seja, uma manifestação de Deus. Assim, o autor sagrado coloca
no quadro todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as
manifestações de Deus (que se encontram nos relatos teofânicos veterotestamentários): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes
brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação dos que presenciam o
encontro com o divino. Isto quer dizer que não estamos perante um relato
fotográfico ou cinematográfico de acontecimentos, mas ante uma catequese construída
de acordo com o imaginário judaico com vista a ensinar que Jesus é o Filho
amado de Deus, que traz aos homens um projeto que vem de Deus.
***
Como vimos, o relato tem como destinatários os
discípulos, um grupo desanimado e frustrado porque no horizonte próximo do
líder está a cruz e porque o mestre exige dos discípulos que aceitem fazer um
percurso similar. Porém, a cruz não é o fim; é o trampolim para a ressurreição,
ora anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas “vestes brilhantes,
muitíssimo brancas” (a evocar a túnica branca do “jovem” sentado junto do
túmulo de Jesus, que anuncia às mulheres a ressurreição – cf Mc 16,5) e pela recomendação de Jesus (“que não
contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do Homem não
ressuscitasse dos mortos” – Mc 9,9). A cruz
não será, pois, a palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e dos
discípulos que seguirem Jesus) está a
ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte. E, quanto ao desejo de
Pedro de ali, no cimo do monte, se construírem três tendas, como se pretendesse
acampar, é de considerar que o pormenor significará que os discípulos queriam
deter-se nesse momento de revelação gloriosa, tentando ignorar o destino do
sofrimento dramático de Jesus. E, por conseguinte, Jesus nem respondeu à
proposta. É que Ele tem a certeza absoluta de que o plano misterioso de Deus –
o projeto de construir um novo Povo de Deus e de o conduzir da escravidão para
a liberdade – tem de passar pela via do dom da vida, da entrega total, do amor
até às últimas consequências.
***
Em suma, a reflexão a partir da Liturgia da Palavra do
2.º domingo da Quaresma pode sintetizar-se como segue:
- O núcleo fundamental do episódio da transfiguração
consiste em revelar que Jesus é o Filho amado de Deus, que vem concretizar o projeto
salvador e libertador do Pai em prol dos homens pelo dom da vida, pela entrega
total de Si próprio por amor – demonstrando aos crentes de todas as épocas e
lugares que uma existência tornada dom não é fracassada, mesmo que desemboque
na cruz, pois, a seguir a esta, brilhará em todo o esplendor a vida plena e
definitiva.
- É preciso que todos sejam capazes de escutar o que o
Filho de Deus tem para dizer e propor, que não é algo diferente do que Ele assume
para Si mesmo, sendo que entraremos no Reino bebendo com Ele do cálice que o
Pai Lhe destinou e, que passando pela obediência até à morte e morte de cruz,
abre, no final da caminhada, os cofres da glória a todos aqueles e aquelas que forem,
como Jesus, capazes de pôr a sua vida ao serviço dos irmãos.
- É verdade que os homens do nosso tempo, aliás como
os do tempo de Cristo, têm dificuldade em perceber esta lógica. Com efeito, para
muitos, a vida plena não está no amor levado até às últimas consequências, até
ao dom total da vida, mas na preocupação egoísta com os interesses pessoais,
com o seu orgulho, com o seu pequeno mundo privado, com a sua carreira; não
consiste no serviço simples em prol dos irmãos (sobretudo dos mais débeis,
marginalizados, infelizes), mas em
assegurar para si próprio uma boa dose de poder, de influência, de autoridade, de
domínio e de sensação de pertença ao clã dos vencedores. O que leva a
questionar quem terá razão: o Evangelho ou a visão mundana e mesquinha do
homem?
- É frequente sermos tentados pelo desânimo, porque
não percebemos o alcance dos esquemas de Deus ou porque parece que, seguindo a
lógica de Deus, seremos sempre perdedores. A isto vem a transfiguração de Jesus
proclamar do alto do monte que não desanimemos, pois a lógica de Deus conduz, não
ao fracasso, mas à ressurreição, à vida definitiva, à felicidade sem fim.
- Os três discípulos, testemunhas da transfiguração, não
têm grande vontade de “descer à terra” e enfrentar o mundo e os problemas dos
homens. São o protótipo daqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da
realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e
transformar. Porém, o seguimento de Jesus implica “regressar ao mundo” para
testemunhar aos homens que a realização autêntica está no dom da vida e, longe
do angelismo vazio, mas também sem um hiperativismo que não olhe para o Céu, obriga
a atolarmo-nos no mundo, com seus problemas e dramas, para contribuirmos para a
edificação de um mundo mais justo e mais feliz. Na verdade, a religião não é
ópio que nos adormeça, mas fulcro dum compromisso com Deus, que se faz
compromisso de amor com o mundo e com os homens.
Resta saber se queremos embarcar neste mar de
esperança transfiguradora e salvadora em Deus sem fugir do mundo e sem a ele
nos agarrarmos!
2018.02.24 –
Louro de Carvalho
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