O texto que
se segue resulta da leitura dum longo artigo-reportagem de Rita Cipriano no Observador, tendo a trama servido de base
à peça “O Crime da Aldeia Velha”, de Bernardo
Santareno, e ao filme homónimo, de Manuel Guimarães. Cinjo-me ao essencial
do relato, ainda vivo na memória de algumas pessoas, mas sem referências usuais
visíveis na aldeia.
***
Duas noites havia
que se ouviam gritos na casa de Joaquina de Jesus Couto, no lugar de Oliveira,
freguesia de Soalhães. Doente há cerca de um ano, o seu estado piorara nos
últimos tempos, levando o povo a chamá-la de “Joaquina, a tola”. Sem esperança
de melhoras, um padre foi chamado a lhe dar a extrema-unção e os amigos e
familiares revezavam-se-lhe à cabeceira em oração e fazendo defumadouros com
folhas de oliveira.
O dia 25 de
fevereiro de 1933 não foi diferente. O vizinho Anastácio Pereira chegou a casa
da “tola” e do marido António de Queiroz Correia durante a tarde com o Livro
de S. Cipriano, em que a doente tinha muita fé. Segurando um Crucifixo,
Anastácio começou a ler excertos do livro de magia, que os vizinhos, ali
reunidos, repetiam em coro, contra as indicações do abade.
Pelas sete
da tarde, chegou o cunhado Alexandre de Oliveira, que morava na Lameira,
freguesia de Tabuado, que, sabendo que Joaquina não andava bem de saúde, fez-lhe
uma visita. Encontrou a casa cheia: a doente, Anastácio, o marido, os seis
filhos (o mais velho
tinha 14 anos e o mais novo era bebé de colo), Francisco e Manuel de Queiroz Correia, irmãos de António, a mulher deste
último, Virgínia de Jesus, José Monteiro e a irmã, Arminda de Jesus Pereira,
vizinha e amiga, que tomava conta da doente por ocasião das crises. Embora
pobre, a casa de Joaquina e António tinha uma sala espaçosa, com grande
lareira, onde o casal dormia com as crianças.
Joaquina
gritava descontroladamente, clamando que era santa e que o espírito do sogro
falava através dela. Os vizinhos rezavam segundo as indicações de Anastácio.
Apenas Alexandre observava em silêncio. O agricultor de 39 anos não acreditava
naquilo que a cunhada dizia. De súbito, Joaquina ordenou que se deitassem no
chão Virgínia de Jesus e o marido Manuel de Queiroz Correia, os quais pareceram
deixar de respirar, ficando todos a acreditar quando Joaquina bradou que
estavam mortos, mas que voltariam à vida. Quando o casal se ergueu, a “tola”
recaiu em ataque. Arminda de Jesus, que não andava bem, caiu para o lado, desmaiada.
E, uma vez no chão, começou a rir sem parar, batendo palmas de braços no ar. Então,
Joaquina ordenou que a pusessem “lá fora”. Estava “excomungada”, pois “trazia o
diabo dentro dela”.
O facto encheu
as páginas dos jornais e deixou em choque a população de Soalhães: seguindo as
ordens de Joaquina, os vizinhos e familiares espancaram, com paus de marmeleiro
Arminda de Jesus, queimando-a, em seguida, numa fogueira que fizeram a céu
aberto por acharem ser essa a única maneira de expulsar o demónio que ela tinha
dentro de si. Apesar de tal barbaridade, nunca os homicidas acreditaram magoar
a vítima. No dizer de Joaquina, a mulher ressuscitaria de alma limpa na manhã
seguinte. E, ao amanhecer no dia 26 de fevereiro, o domingo antes do Carnaval,
um dos algozes passou pelo corpo carbonizado de Arminda a chamá-la para a
missa.
***
Joaquina não
andava bem. De há 3 ou 4 anos, tinha estranhos ataques, que se manifestaram a
primeira vez quando estava a trabalhar no campo com o marido. Apesar de ter
melhorado, a doença voltou em força em 1932, piorando consideravelmente em maio
desse ano. Por isso, a mulher de 37 anos começou a ser chamada por todos de
“Joaquina, a tola”.
Apesar das
ameaças, Arminda não abandonou a vizinha quando esta mais precisou. A mulher,
que vivia na casa ao lado com os dois filhos pequenos (o marido,
Joaquim Pereira Alves, estava emigrado no Brasil), decidiu encarregar-se da “tola”. E Joaquina confiava nela: era a vizinha
e comadre que costumava tomar conta dos seus filhos pequenos.
Em tempo em
que as idas ao médico eram raras e a superstição respondia a quase tudo,
atribuía-se o mal de Joaquina a “espíritos maus”. O pároco, Joaquim Monteiro,
que foi ouvido pelo juiz de Marco de Canaveses durante a investigação, admitiu às autoridades que a sua freguesia era
“um foco de crendice e superstição” e que, apesar de todos os
esforços feitos, não conseguira “ainda
convencer aquela gente da inutilidade e falsidade da prática de benzeduras e
bruxedos” a que recorriam “quando se encontram doentes”.
De tanto ouvir
dizer que a sua doença era diabólica, Joaquina convenceu-se de que era esse o problema.
Por isso, começou a organizar em sua casa rezas noturnas, coordenadas pelo vizinho
Anastácio Pereira, um dos poucos habitantes de Oliveira que sabia ler e
escrever. Tinha uma edição do Livro de S. Cipriano, que insistia em
manter apesar das recomendações do abade, que já lhe tinha tirado um outro
exemplar, mas que o “devoto” substituíra por outro.
Apesar das
rezas e dos defumadouros, feitos com ingredientes que vinham descritos no Livro
de S. Cipriano, a 22 de fevereiro de 1933, Joaquina piorou. Como as
orações não surtiam efeito, a família consultou as bruxas da freguesia. Emília
de Jesus (que vivia no lugar de Ferreira) e Ana
Pereira (de
Pinheirinho) foram as
primeiras. Engrácia Coelho, conhecida como a “bruxa de Baião”, a terceira. Terá
sido, porém, Olívia Emília, que visitou a casa de Joaquina a 22 de fevereiro,
que terá tido um papel mais relevante no tratamento da doente.
Olívia conheceu
António quando se deslocou a Oliveira para levar um saquinho de S. Solimão à
vizinha de Joaquina, Maria da Glória, que tinha conhecido no ano anterior na
apanha do linho. Olívia, que prometera a Maria levar-lhe um amuleto quando
passasse pela zona, chegou a Oliveira por volta das 10 da manhã de 22 de fevereiro.
Ao passar por casa de António, este chamou-a para ver a mulher. Depois de ver a
doente, Olívia concluiu que o mal
de Joaquina não era de médicos, mas de duas almas que a assombravam, uma boa e
outra má. Estas eram tão poderosas que até causavam dores no corpo a Olívia que,
tremendo e chorando, explicou à “tola” não haver outro remédio: ia “sofrer
sempre por determinação de Deus”. O mal acabaria quando morresse. Mesmo
assim, Olívia aconselhou Joaquina a fazer defumadouros com folhas de oliveira e
incenso nos momentos de maior aflição – durante três dias, sem interrupções.
Perdida a
esperança de melhoria, a mulher pediu, a 23 de fevereiro, ao marido que
chamasse o padre para se confessar. O abade, que morava no lugar de Eiró, deslocou-se
a Oliveira nessa manhã. De nada valeram as rezas: mal saiu porta fora, Joaquina de Jesus começou a cantar o “Bendito”,
dando mostras de estar pior. E Arminda passou a noite com a comadre,
que reiterava que, durante os ataques, “via alminhas boas e alminhas más”. Anastácio
também lá esteve a ler excertos do Livro de S. Cipriano. As rezas
foram retomadas na tarde do dia seguinte.
***
Como nos
dias anteriores, na tarde do dia 25, reuniram-se em casa de Joaquina amigos e
familiares. Todos rezavam seguindo as indicações de Anastácio, que lia o Livro
de S. Cipriano. Era já noite quando se deu a cena da morte e ressurreição e
o estranho ataque de Arminda, que todos atribuíram a forças do mal. Foi
Alexandre, com a ajuda de Manuel de Queiroz Correia e José Monteiro, que levou
a mulher para fora de casa, enquanto Joaquina gritava que a comadre estava
“excomungada”. Dentro, ficaram Anastácio e os parentes de Joaquina, que
continuaram a ler o Livro de S. Cipriano como se nada se
tivesse passado. Rezavam de joelhos, enquanto Anastácio segurava um crucifixo
com uma das mãos. Joaquina ordenou-lhe “que fosse dar duas pancadas com uma
vara de marmeleiro na Arminda”. E ele saiu para a rua. Chegando ao pé de
Alexandre, Manuel e José, o homem de 45 anos ordenou aos três homens que
largassem a mulher. Depois, sem mais explicações, começou a bater em Arminda. Interpelado
sobre o porquê daquela cena, replicou
que ia espancá-la até que ela dissesse “ai
meu Deus”, sinal de que já estaria livre de todo o mal. Dentro de casa,
Joaquina apelava a que o vizinho lhe “batesse enquanto ela bulisse”. E,
assim que Arminda gritou “ai meu Deus”,
os homens voltaram a levá-la para dentro. Segundo Anastácio, “depois das
pancadas”, a mulher “continuou a gritar com uma voz esquisita”, inexplicável,
mas entendida como sinal de continuar com o diabo dentro de si. Joaquina, de
facto, insistia que a vizinha estava possuída, o que levou Anastácio a bater
novamente em Arminda, levando-a depois “aos empurrões” para fora de casa.
Anastácio
acendeu o lume com a ajuda de Francisco: primeiro, um fósforo, que se apagou;
depois, um segundo que usaram para pegar fogo à lenha. E com uma candeia de
petróleo incendiaram a caruma. Enquanto Arminda ardia, o lavrador lia passagens
do Livro de S. Cipriano. Os restantes gritavam que estavam a
queimar o diabo. E todos acreditavam que a mulher ressuscitaria. Depois do
ritual, os vizinhos reuniram-se em casa de Anastácio, que, embalado pelo
exorcismo que acabara de praticar, confessou aos restantes que a sua filha
Deolinda, de 16 anos, tinha o diabo no corpo. E, sem ter como escapar, Deolinda
foi espancada. Porém, a jovem teve mais sorte: sobreviveu à sova, mas, a partir
de então, jamais foi a mesma.
***
Vários
habitantes de Oliveira e de lugares próximos, ao aperceberem-se de fogo junto à
casa de Joaquina e de António, deslocaram-se até ao local com vasilhas cheias
de água. Apesar do que viram, ninguém disse nada, ninguém fez queixa. José
Pereira, um deles, estava em casa, que ficava a uns cinco ou seis minutos a pé
do sítio onde morava Joaquina. Depois de ouvir “dois gritos”, chegou ao local e
viu Arminda ser atirada porta fora pelo grupo de homens, enquanto gritava “não me levais”. Ao aproximar-se,
Anastácio disse-lhe logo, com ar de ameaça: “Retire-se”. Temendo pela vida, José decidiu voltar para trás.
***
O dia
seguinte amanheceu frio. Joaquim Pereira, que morava no lugar de Lardosa, saiu
cedo de casa. Sabia que Joaquina não andava bem e que recebera a extrema-unção,
pelo que se convenceu de que os gritos que ouvira naquela noite, eram devidos
ao facto de a mulher ter morrido, tendo sido esse o motivo da gritaria. Ao
chegar ao pé da casa de Joaquina, deparou-se com um cadáver carbonizado,
“impossível de reconhecer”. Nas casas ao lado, as janelas estavam todas
fechadas e não havia ninguém na rua. E, dirigindo a casa da “louca”, encontrou
Joaquina viva e de saúde, “com o lume aceso”. E, perguntando-lhe o que se tinha
passado, esta respondeu que não sabia. Foi
Joaquim Monteiro, que apareceu entretanto, que contou ao visitante que o corpo carbonizado que estava junto à casa de
Joaquina era o da sua irmã Arminda, que tinha sido assassinada durante a noite.
E explicou que não tinha chamado a polícia “por não ter quem lá mandar” e por
“não poder abandonar a sua casa por sua mulher estar também doida”. Foi Joaquim
Pereira que tomou a iniciativa de ir chamar o regedor.
Os
habitantes de Oliveira começaram a sair de casa, ao mesmo tempo que o sino
anunciava a primeira missa do dia. A maioria, porém, nem chegou a sair da aldeia.
Joaquim Monteiro Soares, o regedor, chegou ao local por volta das 8 da manhã,
acompanhado pela polícia e pelo regedor substituto. Confirmada a história, o regedor procedeu à
detenção dos criminosos. Dos cinco suspeitos, apenas Anastácio tentou
evitar a detenção, chegando mesmo a agredir Joaquim Monteiro Soares, “que teve
de ser enérgico para efetuar a prisão”. Obviamente, os detidos, ao serem
interrogados, invocavam para o ato praticado a ideia de expulsão do diabo.
Detidos os culpados
(a que foi adicionada
Joaquina), começaram as investigações sob a
direção do Administrador de Marco de Canaveses. E a polícia, tendo dificuldade
em acreditar que este crime tão violento tivesse sido cometido apenas por
superstição, começou a explorar outras possibilidades, nomeadamente roubo ou algo
mais relacionado com dinheiro.
A Joaquina, considerada “louca” pelas múltiplas
ocorrências antes da prisão e durante ela, os médicos diagnosticaram “histero-epilepsia” e, mais tarde, concluíram
que o crime resultou dum “somatório de fatores que dificilmente” se poderiam
“conjugar de novo”.
À
personalidade mórbida da arguida, juntaram-se a superstição, a ignorância, a
rudeza intelectual de todos os figurantes deste drama sombrio e medievo, não
devendo esquecer-se a influência nefasta das sugestões da bruxa Olívia, que
sempre negou ter-lhe feito alguma coisa.
Apesar dos
vários suspeitos que a polícia chegou a ter detidos, só quatro chegaram a
julgamento. Joaquina foi considerada louca e um dos suspeitos foi ilibado por
falta de prova.
A audição das
testemunhas acabou ao final da tarde de 23 de maio. Porém, a última sessão foi
marcada para o dia 30. Nesse dia, a multidão que se juntou em frente ao
Tribunal de Marco de Canaveses foi ainda maior. Entre os curiosos, havia advogados,
médicos e até sacerdotes. O tribunal condenou os réus a 6 anos de prisão maior
celular, seguida de 10 anos de degredo ou, em alternativa, 20 anos de degredo
em possessão de primeira classe. A defesa decidiu recorrer com base no estado de
inconsciência aquando da prática do ato. Porém, o tribunal decidiu manter a
pena. Só passados 12 anos, em finais de 1946, é que Anastácio Pereira, António,
Manuel e Francisco Queiroz Correia voltaram a ver Soalhães.
***
Em
1959, Bernardo Santareno (pseudónimo de António Martilho do Rosário) inspirou-se
no “Crime de Soalhães” para a
peça “O Crime da Aldeia Velha”,
onde uma jovem, possuída pelo diabo, é queimada viva para expulsar
os demónios que existiam dentro dela. A peça deu origem ao filme homónimo, de
Manuel Guimarães, em 1964. A longa-metragem é em parte responsável pela
persistência da história na memória dos portugueses. “O Crime da Aldeia Velha”, há muito esgotado, teve recentemente nova
edição pela “E-Primatur”, em
abril de 2017.
***
Mas não vale
a pena acusar hipocritamente aqueles longínquos tempos de processos medievos. A
bruxaria ainda não faliu. Os psiquiatras nem sempre atendem os doentes com o humanismo
desejado. Os exorcistas reaparecem. E que dizer das cerimónias satânicas e dos homicídios e suicídios
coletivos por motivos religiosos? E que dizer dos malefícios da “baleia azul”? A
barbárie ora mantém as mesmas formas de antanho ora inova. O que é preciso é
pôr juízo na cabeça das pessoas!
2018.02.25 –
Louro de Carvalho
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