domingo, 25 de fevereiro de 2018

Queimada viva por supostamente estar possuída pelo diabo


O texto que se segue resulta da leitura dum longo artigo-reportagem de Rita Cipriano no Observador, tendo a trama servido de base à peça “O Crime da Aldeia Velha”, de Bernardo Santareno, e ao filme homónimo, de Manuel Guimarães. Cinjo-me ao essencial do relato, ainda vivo na memória de algumas pessoas, mas sem referências usuais visíveis na aldeia.
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Duas noites havia que se ouviam gritos na casa de Joaquina de Jesus Couto, no lugar de Oliveira, freguesia de Soalhães. Doente há cerca de um ano, o seu estado piorara nos últimos tempos, levando o povo a chamá-la de “Joaquina, a tola”. Sem esperança de melhoras, um padre foi chamado a lhe dar a extrema-unção e os amigos e familiares revezavam-se-lhe à cabeceira em oração e fazendo defumadouros com folhas de oliveira.
O dia 25 de fevereiro de 1933 não foi diferente. O vizinho Anastácio Pereira chegou a casa da “tola” e do marido António de Queiroz Correia durante a tarde com o Livro de S. Cipriano, em que a doente tinha muita fé. Segurando um Crucifixo, Anastácio começou a ler excertos do livro de magia, que os vizinhos, ali reunidos, repetiam em coro, contra as indicações do abade.
Pelas sete da tarde, chegou o cunhado Alexandre de Oliveira, que morava na Lameira, freguesia de Tabuado, que, sabendo que Joaquina não andava bem de saúde, fez-lhe uma visita. Encontrou a casa cheia: a doente, Anastácio, o marido, os seis filhos (o mais velho tinha 14 anos e o mais novo era bebé de colo), Francisco e Manuel de Queiroz Correia, irmãos de António, a mulher deste último, Virgínia de Jesus, José Monteiro e a irmã, Arminda de Jesus Pereira, vizinha e amiga, que tomava conta da doente por ocasião das crises. Embora pobre, a casa de Joaquina e António tinha uma sala espaçosa, com grande lareira, onde o casal dormia com as crianças.
Joaquina gritava descontroladamente, clamando que era santa e que o espírito do sogro falava através dela. Os vizinhos rezavam segundo as indicações de Anastácio. Apenas Alexandre observava em silêncio. O agricultor de 39 anos não acreditava naquilo que a cunhada dizia. De súbito, Joaquina ordenou que se deitassem no chão Virgínia de Jesus e o marido Manuel de Queiroz Correia, os quais pareceram deixar de respirar, ficando todos a acreditar quando Joaquina bradou que estavam mortos, mas que voltariam à vida. Quando o casal se ergueu, a “tola” recaiu em ataque. Arminda de Jesus, que não andava bem, caiu para o lado, desmaiada. E, uma vez no chão, começou a rir sem parar, batendo palmas de braços no ar. Então, Joaquina ordenou que a pusessem “lá fora”. Estava “excomungada”, pois “trazia o diabo dentro dela”.
O facto encheu as páginas dos jornais e deixou em choque a população de Soalhães: seguindo as ordens de Joaquina, os vizinhos e familiares espancaram, com paus de marmeleiro Arminda de Jesus, queimando-a, em seguida, numa fogueira que fizeram a céu aberto por acharem ser essa a única maneira de expulsar o demónio que ela tinha dentro de si. Apesar de tal barbaridade, nunca os homicidas acreditaram magoar a vítima. No dizer de Joaquina, a mulher ressuscitaria de alma limpa na manhã seguinte. E, ao amanhecer no dia 26 de fevereiro, o domingo antes do Carnaval, um dos algozes passou pelo corpo carbonizado de Arminda a chamá-la para a missa.
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Joaquina não andava bem. De há 3 ou 4 anos, tinha estranhos ataques, que se manifestaram a primeira vez quando estava a trabalhar no campo com o marido. Apesar de ter melhorado, a doença voltou em força em 1932, piorando consideravelmente em maio desse ano. Por isso, a mulher de 37 anos começou a ser chamada por todos de “Joaquina, a tola”. 
Apesar das ameaças, Arminda não abandonou a vizinha quando esta mais precisou. A mulher, que vivia na casa ao lado com os dois filhos pequenos (o marido, Joaquim Pereira Alves, estava emigrado no Brasil), decidiu encarregar-se da “tola”. E Joaquina confiava nela: era a vizinha e comadre que costumava tomar conta dos seus filhos pequenos.
Em tempo em que as idas ao médico eram raras e a superstição respondia a quase tudo, atribuía-se o mal de Joaquina a “espíritos maus”. O pároco, Joaquim Monteiro, que foi ouvido pelo juiz de Marco de Canaveses durante a investigação, admitiu às autoridades que a sua freguesia era “um foco de crendice e superstição” e que, apesar de todos os esforços feitos, não conseguira “ainda convencer aquela gente da inutilidade e falsidade da prática de benzeduras e bruxedos” a que recorriam “quando se encontram doentes”.
De tanto ouvir dizer que a sua doença era diabólica, Joaquina convenceu-se de que era esse o problema. Por isso, começou a organizar em sua casa rezas noturnas, coordenadas pelo vizinho Anastácio Pereira, um dos poucos habitantes de Oliveira que sabia ler e escrever. Tinha uma edição do Livro de S. Cipriano, que insistia em manter apesar das recomendações do abade, que já lhe tinha tirado um outro exemplar, mas que o “devoto” substituíra por outro.
Apesar das rezas e dos defumadouros, feitos com ingredientes que vinham descritos no Livro de S. Cipriano, a  22 de fevereiro de 1933, Joaquina piorou. Como as orações não surtiam efeito, a família consultou as bruxas da freguesia. Emília de Jesus (que vivia no lugar de Ferreira) e Ana Pereira (de Pinheirinho) foram as primeiras. Engrácia Coelho, conhecida como a “bruxa de Baião”, a terceira. Terá sido, porém, Olívia Emília, que visitou a casa de Joaquina a 22 de fevereiro, que terá tido um papel mais relevante no tratamento da doente.
Olívia conheceu António quando se deslocou a Oliveira para levar um saquinho de S. Solimão à vizinha de Joaquina, Maria da Glória, que tinha conhecido no ano anterior na apanha do linho. Olívia, que prometera a Maria levar-lhe um amuleto quando passasse pela zona, chegou a Oliveira por volta das 10 da manhã de 22 de fevereiro. Ao passar por casa de António, este chamou-a para ver a mulher. Depois de ver a doente, Olívia concluiu que o mal de Joaquina não era de médicos, mas de duas almas que a assombravam, uma boa e outra má. Estas eram tão poderosas que até causavam dores no corpo a Olívia que, tremendo e chorando, explicou à “tola” não haver outro remédio: ia “sofrer sempre por determinação de Deus”. O mal acabaria quando morresse. Mesmo assim, Olívia aconselhou Joaquina a fazer defumadouros com folhas de oliveira e incenso nos momentos de maior aflição – durante três dias, sem interrupções.
Perdida a esperança de melhoria, a mulher pediu, a 23 de fevereiro, ao marido que chamasse o padre para se confessar. O abade, que morava no lugar de Eiró, deslocou-se a Oliveira nessa manhã. De nada valeram as rezas: mal saiu porta fora, Joaquina de Jesus começou a cantar o “Bendito”, dando mostras de estar pior. E Arminda passou a noite com a comadre, que reiterava que, durante os ataques, “via alminhas boas e alminhas más”. Anastácio também lá esteve a ler excertos do Livro de S. Cipriano. As rezas foram retomadas na tarde do dia seguinte.
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Como nos dias anteriores, na tarde do dia 25, reuniram-se em casa de Joaquina amigos e familiares. Todos rezavam seguindo as indicações de Anastácio, que lia o Livro de S. Cipriano. Era já noite quando se deu a cena da morte e ressurreição e o estranho ataque de Arminda, que todos atribuíram a forças do mal. Foi Alexandre, com a ajuda de Manuel de Queiroz Correia e José Monteiro, que levou a mulher para fora de casa, enquanto Joaquina gritava que a comadre estava “excomungada”. Dentro, ficaram Anastácio e os parentes de Joaquina, que continuaram a ler o Livro de S. Cipriano como se nada se tivesse passado. Rezavam de joelhos, enquanto Anastácio segurava um crucifixo com uma das mãos. Joaquina ordenou-lhe “que fosse dar duas pancadas com uma vara de marmeleiro na Arminda”. E ele saiu para a rua. Chegando ao pé de Alexandre, Manuel e José, o homem de 45 anos ordenou aos três homens que largassem a mulher. Depois, sem mais explicações, começou a bater em Arminda. Interpelado sobre o porquê daquela cena, replicou que ia espancá-la até que ela dissesse “ai meu Deus”, sinal de que já estaria livre de todo o mal. Dentro de casa, Joaquina apelava a que o vizinho lhe “batesse enquanto ela bulisse”. E, assim que Arminda gritou “ai meu Deus”, os homens voltaram a levá-la para dentro. Segundo Anastácio, “depois das pancadas”, a mulher “continuou a gritar com uma voz esquisita”, inexplicável, mas entendida como sinal de continuar com o diabo dentro de si. Joaquina, de facto, insistia que a vizinha estava possuída, o que levou Anastácio a bater novamente em Arminda, levando-a depois “aos empurrões” para fora de casa.
Anastácio acendeu o lume com a ajuda de Francisco: primeiro, um fósforo, que se apagou; depois, um segundo que usaram para pegar fogo à lenha. E com uma candeia de petróleo incendiaram a caruma. Enquanto Arminda ardia, o lavrador lia passagens do Livro de S. Cipriano. Os restantes gritavam que estavam a queimar o diabo. E todos acreditavam que a mulher ressuscitaria. Depois do ritual, os vizinhos reuniram-se em casa de Anastácio, que, embalado pelo exorcismo que acabara de praticar, confessou aos restantes que a sua filha Deolinda, de 16 anos, tinha o diabo no corpo. E, sem ter como escapar, Deolinda foi espancada. Porém, a jovem teve mais sorte: sobreviveu à sova, mas, a partir de então, jamais foi a mesma.
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Vários habitantes de Oliveira e de lugares próximos, ao aperceberem-se de fogo junto à casa de Joaquina e de António, deslocaram-se até ao local com vasilhas cheias de água. Apesar do que viram, ninguém disse nada, ninguém fez queixa. José Pereira, um deles, estava em casa, que ficava a uns cinco ou seis minutos a pé do sítio onde morava Joaquina. Depois de ouvir “dois gritos”, chegou ao local e viu Arminda ser atirada porta fora pelo grupo de homens, enquanto gritava “não me levais”. Ao aproximar-se, Anastácio disse-lhe logo, com ar de ameaça: “Retire-se”. Temendo pela vida, José decidiu voltar para trás.
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O dia seguinte amanheceu frio. Joaquim Pereira, que morava no lugar de Lardosa, saiu cedo de casa. Sabia que Joaquina não andava bem e que recebera a extrema-unção, pelo que se convenceu de que os gritos que ouvira naquela noite, eram devidos ao facto de a mulher ter morrido, tendo sido esse o motivo da gritaria. Ao chegar ao pé da casa de Joaquina, deparou-se com um cadáver carbonizado, “impossível de reconhecer”. Nas casas ao lado, as janelas estavam todas fechadas e não havia ninguém na rua. E, dirigindo a casa da “louca”, encontrou Joaquina viva e de saúde, “com o lume aceso”. E, perguntando-lhe o que se tinha passado, esta respondeu que não sabia. Foi Joaquim Monteiro, que apareceu entretanto, que contou ao visitante que o corpo carbonizado que estava junto à casa de Joaquina era o da sua irmã Arminda, que tinha sido assassinada durante a noite. E explicou que não tinha chamado a polícia “por não ter quem lá mandar” e por “não poder abandonar a sua casa por sua mulher estar também doida”. Foi Joaquim Pereira que tomou a iniciativa de ir chamar o regedor.
Os habitantes de Oliveira começaram a sair de casa, ao mesmo tempo que o sino anunciava a primeira missa do dia. A maioria, porém, nem chegou a sair da aldeia. Joaquim Monteiro Soares, o regedor, chegou ao local por volta das 8 da manhã, acompanhado pela polícia e pelo regedor substituto. Confirmada a história, o regedor procedeu à detenção dos criminosos. Dos cinco suspeitos, apenas Anastácio tentou evitar a detenção, chegando mesmo a agredir Joaquim Monteiro Soares, “que teve de ser enérgico para efetuar a prisão”. Obviamente, os detidos, ao serem interrogados, invocavam para o ato praticado a ideia de expulsão do diabo.
Detidos os culpados (a que foi adicionada Joaquina), começaram as investigações sob a direção do Administrador de Marco de Canaveses. E a polícia, tendo dificuldade em acreditar que este crime tão violento tivesse sido cometido apenas por superstição, começou a explorar outras possibilidades, nomeadamente roubo ou algo mais relacionado com dinheiro.
A Joaquina, considerada “louca” pelas múltiplas ocorrências antes da prisão e durante ela, os médicos diagnosticaram “histero-epilepsia” e, mais tarde, concluíram que o crime resultou dum “somatório de fatores que dificilmente” se poderiam “conjugar de novo”.
 À personalidade mórbida da arguida, juntaram-se a superstição, a ignorância, a rudeza intelectual de todos os figurantes deste drama sombrio e medievo, não devendo esquecer-se a influência nefasta das sugestões da bruxa Olívia, que sempre negou ter-lhe feito alguma coisa.
Apesar dos vários suspeitos que a polícia chegou a ter detidos, só quatro chegaram a julgamento. Joaquina foi considerada louca e um dos suspeitos foi ilibado por falta de prova.
A audição das testemunhas acabou ao final da tarde de 23 de maio. Porém, a última sessão foi marcada para o dia 30. Nesse dia, a multidão que se juntou em frente ao Tribunal de Marco de Canaveses foi ainda maior. Entre os curiosos, havia advogados, médicos e até sacerdotes. O tribunal condenou os réus a 6 anos de prisão maior celular, seguida de 10 anos de degredo ou, em alternativa, 20 anos de degredo em possessão de primeira classe. A defesa decidiu recorrer com base no estado de inconsciência aquando da prática do ato. Porém, o tribunal decidiu manter a pena. Só passados 12 anos, em finais de 1946, é que Anastácio Pereira, António, Manuel e Francisco Queiroz Correia voltaram a ver Soalhães.
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Em 1959, Bernardo Santareno (pseudónimo de António Martilho do Rosário) inspirou-se no “Crime de Soalhães” para a peça “O Crime da Aldeia Velha, onde uma jovem, possuída pelo diabo, é queimada viva para expulsar os demónios que existiam dentro dela. A peça deu origem ao filme homónimo, de Manuel Guimarães, em 1964. A longa-metragem é em parte responsável pela persistência da história na memória dos portugueses. “O Crime da Aldeia Velha, há muito esgotado, teve recentemente nova edição pela “E-Primatur, em abril de 2017.
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Mas não vale a pena acusar hipocritamente aqueles longínquos tempos de processos medievos. A bruxaria ainda não faliu. Os psiquiatras nem sempre atendem os doentes com o humanismo desejado. Os exorcistas reaparecem. E que dizer das cerimónias satânicas e dos homicídios e suicídios coletivos por motivos religiosos? E que dizer dos malefícios da “baleia azul”? A barbárie ora mantém as mesmas formas de antanho ora inova. O que é preciso é pôr juízo na cabeça das pessoas!
2018.02.25 – Louro de Carvalho

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