quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Na festa da Cátedra de Pedro 2018


Celebra a Igreja, a 22 de fevereiro, a festa da Cadeira de São Pedro, Apóstolo, a quem o Senhor disse: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’. No dia em que os Romanos costumavam honrar a memória dos seus defuntos, celebra-se o dia natal de Pedro na Cadeira apostólica, que é venerada com o seu monumento no Vaticano e cujo ocupante, o sucessor de Pedro, tem a missão de presidir à assembleia universal da fé, esperança e caridade.
Obviamente, a atenção dos cristãos vai hoje para o dever de rezar pelo Sumo Pontífice e suas intenções pessoais e eclesiais, como solicita reiteradamente, para o dever de acolher a sua palavra orientadora – os que tentam acusá-lo de heresia ou de desconjuntamento da doutrina que se cuidem! – e também para a sua autoridade com o poder das chaves (Alguns pensam que as chaves servem só para fechar!), com base na passagem de Mateus (Mt 16,13-19) em que Jesus lhe diz:
Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.”.
Todavia, esquecemos que antes de “tu és Pedro” está a partícula “também” (em latim, et; e em grego, kai), que traduz a semelhança destas palavras com o segmento anterior: “És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu”. E o que o Pai revelou a Pedro foi precisamente o teor da confissão de Pedro: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”. Assim, a autoridade de Pedro baseia-se na fé no Filho de Deus, o Messias, o mesmo que foi revelado no Batismo, “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado” (Mt 3,17) e na transfiguração, “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado. Escutai-o.” (Mt 17,5). Neste último segmento, fica explícita a obrigação de escutarmos o Filho de Deus, que nos fala no santuário da nossa consciência, pela Escritura e pela palavra dos Pastores cuja cabeça é precisamente Pedro e os seus sucessores.
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Esta festa constitui uma comemoração que remonta ao século IV a recordar o primado e a autoridade de São Pedro, o primeiro Papa da Igreja Católica.
“Cátedra” (em latim, cathedra) significa assento ou trono e é a raiz da palavra catedral, igreja a partir da qual o Bispo exerce por excelência o múnus de ensinar, santificar e governar a sua diocese, ou seja, a porção da Igreja que lhe é confiada, e a partir da qual oferece a sua solicitude pelas demais Igrejas. Em cada diocese no mundo existe uma catedral ou sé (do latim, sedes), de onde o Bispo, a autoridade máxima naquela igreja local, deve conduzir na sabedoria, prudência e caridade o povo a ele confiado. O Papa é o Bispo de Roma, governa esta diocese, de onde confirma e une toda Igreja no ministério petrino. 
Convém recordar esta confirmação da Igreja, baseada em palavras de Jesus ditas a Pedro e transcritas por Lucas (Lc 22,32) – “Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos.” – para referirmos que esta confirmação e fortalecimento se funda na oração de Cristo, já que Satanás “pediu para vos joeirar como trigo” (Lc 22,31). Ora, se a autoridade de Pedro se firma na fé confessada por revelação do Pai, também este fortalecimento se funda na oração de Cristo. E, já agora, poderemos evocar a passagem de João em que Jesus, como que instando ao contraponto à tríplice negação de Pedro, lhe pede a tríplice confissão de amor para o encarregar de apascentar os seus cordeiros e ovelhas (cf Jo 21,15-17). Assim, poderemos recordar que o ministério petrino se firma na fé, oração e amor.
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A Cátedra que está na Basílica de São Pedro, em Roma, foi dada de presente ao Papa João VIII pelo Rei Carlos, o calvo, de França,  aquando da coroação do rei como imperador romano no ocidente. E esta cátedra é conservada como  uma relíquia, numa composição barroca, obra do artista Gian Lorenzo Bernini construída entre 1656 e 1665. Esta esplêndida imagem artística de Bernini, que se vê da entrada da Basílica de São Pedro, é feita de bronze e decorada com um relevo escrito traditio clavum” (entrega de chaves) e dá o nome ao altar que se encontra abaixo de “altar da cátedra”.  É sustentada por 4 grandes imagens de bronze, que representam grandes doutores da Igreja, Santo Agostinho e Santo Ambrósio, da Igreja Latina; e Santo Atanásio e São João Crisóstomo, da Igreja Oriental. 
Sobre a cátedra aparece reluzente um grande sol de alabastro, rodeado de anjos dourados que embelezam uma imagem do Espírito Santo numa vidraça no formato de pomba de 1,62 cm de envergadura. Esta imagem sugere que, na condução da Igreja, por meio do Papa, está o próprio Espírito. Um grande detalhe é que é a única vidraça colorida dentro da Basílica.  
Neste dia de festa, a Basílica recebe milhares de peregrinos que vêm para venerar a imagem de Pedro e rezar pelo Papa, além das diversas orações realizadas em todas as dioceses do mundo. O “altar da cátedra” permanece iluminado todo o dia. Dezenas de velas rodeiam o monumento e celebram-se várias missas ao longo do dia, encerrando com a missa do Cabido de São Pedro. 
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Este ano, durante a festa da Cátedra de Pedro, o Papa e a Cúria Romana encontram-se no retiro quaresmal, em Ariccia, e, em vez da insistência no poder, segundo o Vatican News, para lá da publicação da mensagem do Papa para a XXXIII Jornada Mundial da Juventude (em orno do tema “Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus”, Lc 1,30), é-nos dado a conhecer o tema da 8.ª meditação, Crer em Deus é, portanto, crer na misericórdia” e o tema da 9.ª meditação, “Escutar a sede das periferias.
O Padre José Tolentino Mendonça, sacerdote português convidado por Francisco para pregar o retiro anual da Cúria Romana, fala sobre o poder restaurador da misericórdia de Deus, frisando:
De verdade, é importante a experiência de relação que ali se manifesta – parábola do filho pródigo – e se recompõe. (...) temos a oportunidade de observar as nossas mesmas passagens, externas e interiores, e de olhar com profundidade a nossa história.”.
Na meditação sobre a parábola do Pai e seus dois filhos, referindo-se ao filho mais novo (o pródigo), o Padre Tolentino diz que “é uma história que nos agarra por dentro”. E explica:
Nesse espelho tem tudo: o desejo de liberdade do filho mais jovem, os seus sonhos sem fundamento, os passos falsos, a fantasia da omnipotência, a sua incapacidade de reconciliar desejos e leis. Com um resultado previsível: o vazio e a solidão. Descobrira-se completamente sozinho”.
Fazendo a comparação com o filho mais velho, o pregador faz ressaltar:
Tem a dificuldade de viver a fraternidade, a recusa de alegrar-se com o bem do outro e a incapacidade de viver a lógica da misericórdia. Não consegue resolver a relação com o seu irmão, ainda cheia de agressividade, com uma barreira e violência. E nem mesmo a relação com o Pai é totalmente integrada: ele nutre ainda a expectativa da recompensa. […] No filho mais velho não há problema com a lei, mas com a generosidade do amor. E isto é uma das doenças dos desejos.”.
Frisa que todos nós somos assim: “contradições de sentimentos”. E “esta completa ambivalência humana é o maior elogio da misericórdia de Deus, que a parábola ilumina”. E afirma que, dentro de nós, em verdade, não existem só coisas bonitas, harmoniosas e resolvidas.  Dentro de nós, existem sentimentos sufocados, tantas coisas que se devem tornar claras, doenças, inúmeros fios para se conectarem. Existem sofrimentos, âmbitos que devem ser reconciliados, memórias e fissuras que se deve deixar que Deus as cure. E a pergunta é:
Até que ponto nos deixamos reconciliar? Mas reconciliar profundamente, com a lógica do Evangelho, e no mais profundo de nós?
Reforçando a importância da misericórdia, afirma que “este excesso de amor que Deus nos ensina está em condições de nos resgatar. Cada um de nós possui uma riqueza interior, um mundo de possibilidades, mas também limites com os quais é necessário confrontar-se num caminho de conversão”. 
Comparando os desejos, afirma que os errados ou “os desejos soltos – uma realidade que o nosso tempo promove – desencadeiam em nós movimentos errados e irresponsáveis, a pura inconstância, o hedonismo  e um redemoinho enganador”; e que os verdadeiros “ao invés, são assinalados com uma carência, uma insatisfação, de uma sede que vem de um princípio dinâmico e projetivo”. O desejo é literalmente insaciável, pois “aspira a isto que não pode ser possuído: o senso. Assim, o desejo não se sacia: aprofunda-se.”
Ao chegar especificamente à figura do Pai – na parábola – reflete o poder curador da sua misericórdia. O Pai sabe que “tem dois filhos e entende que deve relacionar-se com eles de modo diferente, reservar a cada um olhares diferentes”, cada um com os seus desejos. Nesta reflexão sobre o Pai, o Padre José Tolentino diz:
Jesus não perde tempo a explicar a razão por que o filho mais jovem quer ir embora, mas que o Pai aceita o espaço que o filho pretende, acolhe o risco da sua liberdade e simplesmente o ama. E, depois, no seu retorno, cobre de beijos aquela vida infeliz e a faz totalmente amável.”.
E não apenas os desejos do filho mais novo devem ser curados pela misericórdia, mas também os do primogénito. “O Pai vai ao seu encontro”. O Pai da dignidade encara a indignação do filho mais velho, vai escutá-lo, sai, desce para buscá-lo. Essa misericórdia de escutar os outros até ao fim. E a misericórdia gera uma das mais belas declarações de amor que um Pai possa dedicar ao filho: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu (Lc 15,31). ”.
Para concluir, afirma sobre a misericórdia:
A misericórdia é isso. Um dever a qual ninguém nos obriga, mas uma obrigação que nasce da esperança. É o bem mais precioso e deve ser vitoriosa sobre todas as mortes. Quem crê que a misericórdia seja fácil, é porque nunca a viveu e nem a experimentou. A misericórdia está entre as coisas mais exigentes e empenhativas. Porém, não há vida sem misericórdia. A misericórdia é um dos atos soberanos de Deus. Crer em Deus é, portanto, crer na misericórdia.”.
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Quanto à 9.ª meditação, o Padre José Tolentino diz que, a partir de Jesus, o cristianismo também se encontra numa realidade periférica, pelo que “é essencial estar com olhos bem abertos à realidade do mundo que está em torno a nós”. Com estas palavras, salientou que a “voz de Deus deverá sempre confrontar-nos com a pergunta feita desde as origens: onde está o teu irmão?”.
Um dos exemplos importantes que o pregador trouxe à reflexão foi o problema da falta de água nas grandes periferias do mundo. Cita um pequeno trecho da encíclica Laudato Si, sobre o tema: “Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que provoca mortes a cada dia”. E afirma que “diante da sede das periferias, urge adotar uma autêntica conversão dos estilos de vida e de coração”.
Noutro ponto relevante da meditação sobre as periferias, o pregador recorda que Jesus é um “homem periférico”, que também Ele foi um homem de periferia. Jesus “não nasceu cidadão romano, não pertencia ao primeiro mundo da época, nasceu em Belém; e, Nazaré, de onde recebeu o nome, é tão insignificante por ser uma das raras e desconhecidas localidades da Palestina. Quem escutava falar de Nazaré mostrava ar sarcástico e perguntava, fingindo perplexidade: De Nazaré pode vir alguma coisa de bom?” (Jo 1,46). Jesus viveu completamente esta realidade de periferia, desde o nascimento até ao momento da morte. Era da periferia de Israel e, por consequência, da periferia do Império, do domínio romano. E, assim, “a mensagem de Jesus assume a via do mundo periférico. Marcos, autor da primeira narração evangélica, põe o encontro de Jesus ressuscitado com os discípulos ainda na periferia: ‘Ele ´vos precede na Galileia. Ali o vereis, como vos disse.” (Mc 16,7). E o Padre Tolentino convidou os participantes a verem que, a partir de Jesus, o cristianismo também se encontra numa realidade periférica:
O território transformou-se; e não é mais o que era antes. A população mudou de lugar. Em torno das catedrais, por exemplo, não há mais a verdadeira vida: os centros urbanos tornaram-se um polo de atividades burocráticas e comerciais.”.
Também nestes lugares a Igreja é chamada a sair de si mesma e descobrir um novo ardor missionário.
Segundo o pregador, a Igreja do Século XXI será certamente mais periférica e desafiar-nos-á a redescobrir que as periferias não são vazias do religioso, mas são os endereços de Deus. De entre todas as periferias, o pregador relata várias experiências nas diversas partes da cidade, desde o abandono aos índices de criminalidade, doentes e presidiários, que para ele são periferias onde a Igreja está presente –“ali onde se encontra a vulnerabilidade humana devemos ser cada mais o rosto de Cristo”. E aponta o perigo da separação da vivência do Sacramento da Eucaristia do Altar, da do sacramento da vida  dos pobres, citando Dom Helder Câmara, que exortava a Igreja do seu tempo:
O que fizemos da Igreja de Cristo? Como pode a multidão dos excluídos, dos esquecidos, dos sem teto, dos sem nada, crer ainda que o Criador é um Pai que os ama, se nós, nós que ousamos dizer-nos cristãos, nós que temos tudo, continuamos a deixar seus pratos vazios..., não sejamos somente crentes. Busquemos ser credíveis.”.   
Por fim, recorda que a humanidade necessita de ser abraçada, principalmente aquela que está ferida, quando se sente leprosa, diminuída, sufocada pela exclusão e pelos estigmas. E podemos dizer com a nossa presença simples e fraterna: Estou aqui, não estás sozinho.
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Também neste dia se conhece o teor da carta ao Conselho Nacional Antiusura, que o Papa escreveu após a audiência de 3 de fevereiro, durante a qual o organismo lhe entregou uma doação, e em que o Papa convida a comprometer-se com coragem ao lado das vítimas desta traiçoeira violência. Com efeito, é necessário “manter um alto nível de atenção às vítimas” da “traiçoeira violência” da usura para que “cada pessoa se sinta ouvida e guiada para sair da espiral de exclusão e de iniquidade”. Na verdade, “a corrupção avança por toda parte”.
O Papa agradece o “generoso gesto de caridade” que ele “imediatamente transferiu aos irmãos marcados pela privação da dignidade humana: eles são, de facto, o banco mais seguro do Reino dos Céus”. E salienta com preocupação que “estamos a passar por momentos muito difíceis que veem a corrupção avançar por toda parte”, exortando a fazer chegar a todos “o consolo ativo do amor salvador de Deus sem olhar para erros, quedas e recaídas”. E conclui:
Continuem com o seu serviço com perseverança e coragem: é um fermento precioso para toda a sociedade. As vítimas da usura e dos jogos de azar sabem bem que, através da ajuda de vocês, podem iniciar um novo caminho. Contagiem todos com a esperança para que sejam sempre mais numerosas as pessoas que saem do ‘túnel’ da usura e do jogo de azar.”.
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Sim, em plena Quaresma e em retiro pontifical, é justo que, mais do que para a cadeira como símbolo do poder, se olhe para a sede da Palavra e do sacramento do Altar para se partir para as periferias como arautos do poder e magnificência da misericórdia que restabelece a dignidade dos fracos e faz maravilhas nos corações e nas realidades sociais, que precisam de conversão.
2018.02.22 – Louro de Carvalho

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