Marcelo Rebelo de Sousa cumpriu uma Visita de Estado de
três dias a São Tomé e Príncipe – o quinto país
lusófono a que o Presidente da República se deslocou desde que tomou posse, em
março de 2016, depois de Moçambique, Cabo Verde, Brasil e Angola – com encontros
oficiais e com cooperantes portugueses na agenda.
O último
Presidente português a realizar uma visita de Estado a este país fora Jorge
Sampaio, em 2000.
Nos termos do
programa, o Presidente teve um encontro com o seu homólogo santomense, Evaristo
Carvalho, com o Presidente da Assembleia da República, José da Graça Diogo, e
com o Primeiro-Ministro, Patrice Trovoada.
À chegada, o
Chefe de Estado português apanhou um banho de multidão e defendeu a necessidade
de ir “mais longe” na cooperação com este país africano lusófono,
considerando-o “prioritário” para Portugal.
Logo ao chegar à praça Yon Gato, no
centro da capital, o Presidente português, em vez de entrar na residência do
Primeiro-Ministro, levou-o com ele a cumprimentar as crianças que já se
alinhavam de uniforme escolar, enquanto alguns grupos folclóricos e culturais
iam ensaiando. Mas, depois, foram à reunião de trabalho e a multidão foi
crescendo à volta da praça.
Quando regressaram, foi a euforia,
com o Presidente a passar quase uma hora em beijinhos, fotografias e
cumprimentos. E Marcelo – que, recorde-se, foi operado a uma hérnia há dois
meses – até dançou como fez em Moçambique na sua primeira visita oficial como
Presidente.
Parou em todos os grupos culturais
que mostravam várias formas de dança e de cultura santomense. Dançou no
penúltimo. E, no último, recebeu um quadro de um grupo muito especial: o grupo Anka, que dança em cadeira de rodas.
Foi, pois, o Marcelo na sua melhor
forma que teve a sua primeira manhã de visita oficial, iniciada com honras
militares no Palácio do Povo, onde reuniu com o Presidente de São Tomé. E
também aí, depois das declarações oficiais, o Presidente português fez questão
de ir conviver com quem estava na rua, entre o Palácio e a catedral, onde
também quis entrar. E, rodeado de crianças, aplaudiu um grupo tradicional todo
composto por homens, mas com alguns vestidos de mulher – o que até motivou um momento
caricato da visita, com Marcelo Rebelo de Sousa a não se aperceber e a dar
beijinhos a alguns homens.
Marcelo recordou que veio várias
vezes a este país ensinar e que estava aqui, em 1988, a dar formação a altos
quadros da administração pública, das forças armadas e das forças de segurança
quando aconteceu um “momento intenso da história política de São Tomé” e o
aeroporto foi encerrado. Marcelo, que agora mata saudades, disse que este é um
momento de delícia e que ainda não sabe é se tem tempo para “matar saudades de
um mergulho”.
A receção ao Chefe de Estado
português parece, assim, ultrapassar algum mal-estar que ainda existisse depois
de, na semana passada e em antecipação a esta visita presidencial, o
Primeiro-Ministro santomense ter dado uma entrevista em que manifestava
descontentamento com o atual estado da cooperação entre os dois países.
E o objetivo do Presidente e do
Governo português parece mesmo ser um reforço das relações, com Marcelo a
insistir num “novo patamar” da cooperação. O Presidente, em declarações aos
jornalistas, rejeitou que tenha havido consequências políticas e diplomáticas
do facto de Cavaco Silva nunca ter visitado São Tomé como Presidente.
Marcelo atribuiu, antes, algum
enfraquecimento da cooperação à crise económica que Portugal viveu, explicitando:
“O
papel social continuou o seu caminho, mas em matéria de funções de soberania
não se foi tão longe quanto se esperava, nem na justiça, nem na administração
interna, nem na defesa e, na parte empresarial, houve muitas iniciativas, mas
não enquadradas. […] A crise e a saída da crise significaram de algum modo não
se ir tão longe quanto seria desejável, mas devo prestar homenagem ao Governo
português anterior porque alguns dos acordos celebrados foram já no começo da
saída da crise, nomeadamente em 2015.”.
O “ir mais longe” passa, para
Marcelo, entre outros aspetos, por uma nova linha de crédito, como anunciou o Ministro
dos Negócios Estrangeiros, que também acompanhou a visita:
“Tivemos
uma linha de crédito no valor de 50 milhões de euros com São Tomé que se foi
realizado, mas num ritmo que dependeu mais da capacidade de apresentação de
projetos por São Tomé do que problemas em Portugal. […] Agora estamos a estudar
um empréstimo direto Estado a Estado, para o qual São Tomé tem de apresentar
garantias estatais e uma nova linha de crédito que está a ser discutida entre
os dois ministérios das Finanças.”.
Santos Silva, afirmando o contributo
de Portugal para o plano estratégico do país, concluiu:
“Cremos
que chegaremos a um bom resultado que garanta taxas de juro muito favoráveis
para São Tomé e as garantias necessárias para que os projetos a financiar por
essa linha de crédito possam ser realizados”.
***
Porém, o
momento mais simbólico da visita presidencial que pode estimular uma relação
mais sadia entre os dois países foi o acerto de contas com a História. Na
verdade, a história do massacre de centenas de santomenses há 65 anos, escondida
pelo regime em Lisboa, foi agora plenamente assumida pelo Presidente da
República. Não se trata de pedido de desculpas, mas do assumir de responsabilidades,
de culpa, no fundo, pelo massacre de, pelo menos, 400 santomenses, a 3 de
fevereiro de 1953, num campo de prisioneiros junto à praia de Fernão Dias.
Foi junto ao
mar, no monumento que evoca as vítimas – há cerca de 400 nomes inscritos em 6
placas de metal viradas para o mar, mas relatos de testemunhas da época falam
em mais de um milhar de vítimas em diferentes zonas da ilha –, que Marcelo
Rebelo de Sousa depositou uma coroa de flores e fez um minuto de silêncio,
ladeado pelo Ministro da Cultura santomense.
O monumento
imita em betão o movimento das ondas do mar, onde os santomenses acreditam que
foram parar alguns dos desaparecidos há 65 anos. A história, escondida pelo
regime de Lisboa e nunca verdadeiramente assumida até agora por Portugal, foi,
desta vez, plenamente assumida por Marcelo, o primeiro Presidente português a
visitar o local e a falar do tema:
“Vim aqui homenagear todos aqueles que lutaram pela liberdade e, em
particular, todos os que morreram pela liberdade faz agora precisamente 65 anos”.
Adotando um
tom semelhante ao que usara durante o jantar oferecido pelo Presidente de São
Tomé e Príncipe, no primeiro dia da visita, Marcelo foi o mais claro possível.
“Portugal assume a sua história naquilo que tem de bom e de mau e
assume, nomeadamente, neste instante e neste memorial, aquilo que foi o
sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades.
Assume essa responsabilidade olhando para o passado, mas ao mesmo tempo para o
presente e o futuro.”.
Terminada a
declaração, começaram os cânticos de um grupo local, chamando o Presidente português
para a festa, quase como em sinal de que a dor, pedra no sapato das relações
entre os dois países, tinha ficado resolvida. Estava recuperado o tom de um dia
que tinha começado em festa na escola portuguesa, acabada de inaugurar por
Marcelo, e que terminou com festa, na chancelaria da embaixada, com a
comunidade portuguesa.
Pelo meio
ficou a passagem pela universidade, com perguntas de estudantes que
aproveitaram a presença de Marcelo para tentar, em vão, uma resposta que
comprometesse o Presidente.
O país
atravessa uma crise institucional, com Presidente, Governo e Parlamento de um
lado e Supremo Tribunal e oposição do outro, mas Marcelo foi-se esquivando por
entre as perguntas, invocando a qualidade de Chefe de Estado estrangeiro de
visita a um país amigo.
O dia ficou
ainda ligado por um fio que ajuda a colar uma narrativa política nacional a
esta visita de Estado. Na escola portuguesa, uma experiência científica com um
pêndulo – o pêndulo de Foucault só consegue uma trajetória retilínea ali, em
cima da linha do equador – serviu para Augusto Santos Silva, que tem sido uma
sombra descontraída e divertida do Presidente, dizer que era aquela a posição
certa do Presidente no sistema político português: um pêndulo que pode
balancear para a esquerda ou para a direita, mas que tende sempre para o
centro. Foi o complemento para uma tirada do Presidente minutos antes, logo à
chegada à escola, quando disse que nunca sabe se há de olhar para a esquerda ou
para a direita quando descerra placas:
“Se olho para a esquerda, a direita fica fula, se olho para direita, a
esquerda zanga-se. O melhor é olhar sempre para o centro.”.
Na universidade,
Marcelo relembrou esse episódio e aproveitou para elogiar Santos Silva:
“O senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, que tendo embora uma
formação sociológica tem um espírito jurídico notável, como poucos juristas,
tem o comentário certo no momento certo, disse-me logo que ‘podia ter
aproveitado para uma aula de Direito Constitucional e para dizer que a posição
do Presidente da República no sistema de governo português é a do pêndulo. Tem
de ter o equilíbrio de falar com as esquerdas e com as direitas, tendo uma
origem partidária, faz parte da sua biografia, deve evitar que isso domine essa
sua posição pendular’.”.
Depois do
almoço, na visita à obra das Irmãs Franciscanas em Neves, a cerca de 30
quilómetros da capital – instituição que ajuda mais de 1200 crianças e idosos,
dos 2 aos 90 anos –, o Presidente foi convidado a arbitrar um jogo de futebol
de sete entre duas equipas de crianças. E apitou o início da partida, pontapés
de canto, lançamentos de linha lateral e uma única falta. Golos nem vê-los.
Quase a correr para a creche, Marcelo recusou confessar o que era mais fácil,
se apitar um jogo quase sem faltas entre miúdos de 7 ou 8 anos ali em São Tomé
ou os fugidios consensos entre PS e PSD em Portugal, que pretende ver alargados
e intensificados.
Foi
precisamente à porta do infantário que o Ministro dos Negócios Estrangeiros fez
a síntese do dia, o tal fio narrativo que não é só imaginação jornalística:
“Este dia de hoje é um bom dia para recordar direito constitucional
português. Porque nós vimos o pêndulo na escola, e a figura do Presidente no
ordenamento constitucional português é a do pêndulo. E árbitro também é.
Árbitro e moderador.”.
Com sorriso
nos lábios, Santos Silva lembrou que, tal como na política nacional, em Neves,
no cimento dum campo patrocinado pelo Benfica, os jogadores quase não precisaram
de árbitro:
“Todos nós vimos que o Presidente cumpriu as suas funções de árbitro de
forma totalmente imparcial e não teve de exercer o seu poder moderador porque
os jogadores se comportaram com o maior dos fair-plays,
tal como de resto acontece em Portugal.”.
***
Ao chegar à
ilha do Príncipe, o Presidente português teve novo banho de multidão.
Entre a
chegada ao aeroporto do Príncipe e primeira cerimónia oficial, no Palácio do
Governo, Marcelo demorou mais de uma hora. Logo no aeroporto, o Presidente não
resistiu às centenas de pessoas que o esperavam, enchendo a estrada com
palavras de ordem, cantares e batuques.
A comitiva caminhou até à capital, Santo António, em passo lento, com
o Presidente a insistir em cumprimentar todos os pequenos grupos que lhe
acenavam na berma da estrada. A entrada na pequena cidade, aconchegada numa
tranquila baía e rodeada de montanhas verdes – a ilha do Príncipe é Reserva
Mundial da Biosfera –, foi feita a pé, entre grupos de crianças e jovens,
quase todos com pequenas bandeiras de papel, a portuguesa dum lado e a
santomense do outro. Letras e algumas coreografias ensaiadas, um tambor e uma
corneta, e milhares de pequenos sorrisos rasgados. Aconteceu festa e foi da
boa, no arranque deste último dia da visita de Estado a São Tomé e Príncipe.
Tudo começou
com um pequeno grupo de professoras acompanhadas por um mecânico com uma ideia
fixa: cantar Grândola Vila Morena dentro da Chancelaria da Embaixada e, se
possível, com o Presidente ao lado. Tudo não passaria duma ideia teimosa, não
fosse Santos Silva ter sabido da coisa. As professoras cumprimentaram o Ministro
português e o mecânico aproveitou para confessar o projeto. O chefe da diplomacia
portuguesa foi rápido na resposta. Disse que não só alinhava na ideia, como ia
convencer o Presidente a juntar-se ao grupo.
Marcelo,
quando foi desencaminhado por Augusto, pensou ser bela a ideia e foi logo
convocar os deputados portugueses que acompanharam a visita. Não se diz que não
ao Presidente e João Almeida, do CDS, Duarte Marques, do PSD, Lara Martinho, do
PS, e Carla Cruz, do PCP, lá alinharam na cantoria. Longo aplauso e gargalhadas
encerraram a sessão, com o Presidente a dizer que tinham estado ao mais alto
nível. Marcelo contou a história mal acabaram os aplausos:
“Estas professoras propuseram que cantasse. O senhor Ministro veio
portador desse pedido e conseguimos juntar quase todos os deputados, só faltam
o Bloco e os Verdes, que já tinham saído. […]. tivemos aqui um verdadeiro bloco ao centro. […] Um bloco ao
centro, diria, não fosse a cara aqui da deputada do PCP.”.
***
E foi uma
visita que terá contribuído para o estreitamento das relações diplomáticas e de
cooperação entre os dois países, terá relevado a importância da escola
portuguesa em São Tomé e Príncipe, realçado o papel das ONG na promoção humana e
social das populações e no desenvolvimento integral, global e humano, feito o acerto de contas com a História, que se assume
nas suas glórias e erros, mostrado o que o Governo quer e mostra pensar da
função presidencial entendida e exercida por Marcelo e dado a entender as
verdadeiras intenções e desejos políticos do Presidente.
Foi Portugal
no seu melhor de festa, ambição, entendimento e fair play!
2018.02.23 – Louro de Carvalho
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