terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O ímpeto fontista do século XIX é chão que deu uvas, sobretudo na ferrovia


É ponto assente os sucessivos governos dão-se mal com a ferrovia. E, por mais que a Europa avance com a alta velocidade e a reconversão das vias férreas em termos da maximização do transporte de mercadorias e o conforto das viajes dos passageiros, Portugal fica-se em promessas de modernização e de reconstrução de alguns troços ou de algumas vias novas. Porém, impedimentos de toda a ordem provocam atrasos e engavetamento dos projetos.Hoje soube-se que o Governo deixa o programa de investimento ferroviário na gaveta – isto no dia em que o Secretário-Geral da NATO declarou que Portugal tem possibilidades de gastar mais na defesa e de o Presidente da República e o Ministro da Defesa Nacional proclamarem que não haverá défice na assunção dos compromissos do país na relação com a organização.   
O Plano de Investimentos Ferroviários 2016-2020 (Ferrovia 2020), apresentado a 12 de fevereiro de 2016, previa 20 obras, fundava-se no Plano PETI3+, tinha um pacote financeiro associado e apresentava uma calendarização precisa e ambiciosa. E o PETI 3+ definia e identificava as prioridades através de um alargado conjunto de stakeholders que importava destacar: compromissos internacionais, incluindo os bilaterais com Espanha e os resultantes do Corredor Atlântico; fomento do transporte de mercadorias e, em particular, das exportações; articulação entre os portos nacionais e as principais fronteiras terrestres com Espanha.
Contava-se, para estes objetivos, com um pacote financeiro composto por fundos comunitários do programa CEF (Connecting Europe facility) na componente geral (30 a 50% de comparticipação) e na componente “coesão” (85% de comparticipação) e do programa Portugal 2020, referido (85% de comparticipação) a que se juntava o Plano Juncker e o contributo da IP (Infraestruturas de Portugal). 
Por outras palavras, o Ministro Pedro Marques, prometia um investimento de 2,7 mil milhões na ferrovia e obras em 1193 quilómetros de linhas férreas, incluindo a modernização de alguns corredores já existentes e a construção de novas linhas. Porém, dois anos depois, o plano está praticamente parado, já que apenas 15% das obras prometidas pelo Governo para a ferrovia estão em curso, havendo obras que deviam estar concluídas e nem sequer têm estaleiros. O Governo explica a situação com os atrasos na fase de estudos e projetos.
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A informação foi adiantada hoje, dia 13 e terça-feira de Carnaval, pelo jornal Público, que dá conta do atual estado da situação: quando já deveriam estar a ser cumpridas obras em 528 quilómetros da linha, só estão a ser intervencionados 79 quilómetros. Em contas muito simples, o Governo só tem 15% das obras prometidas em curso.
Segundo o cronograma da IP deveriam ter saído do papel 10 projetos. Porém, só dois estão em curso. E, de acordo com o calendário traçado por aquele Instituto, já deveriam estar concluídos, neste momento, quatro dos projetos traçados, no valor de 165 milhões de euros, mas não estão.
Um deles era o troço Caíde-Marco de Canaveses, na linha do Douro, cujas obras deveriam estar concluídas em 2016, mas cujo processo está parado em razão dum planeamento insuficiente por parte da IP e da incapacidade do empreiteiro em concretizar as obras, o que acabou por obrigar à rescisão do contrato de empreitada.
Outro caso é o das obras de modernização da linha entre Elvas e a fronteira do Caia, que já deveriam ter terminado em dezembro de 2017. Numa cerimónia em Elvas, em março de 2017, o Ministro Pedro Marques garantia que as obras iam, afinal, arrancar no final de dezembro. Contudo, mesmo depois do atraso em relação ao calendário original, tal não sucedeu: nem sequer há estaleiro no local.
Também na cidade da Guarda, o Ministro surgiu em público, em novembro de 2017, a assinar a adjudicação das obras que vão conduzir à reabertura da linha entre aquela cidade e a Covilhã e anunciou a data de março de 2019, quando o plano do Ferrovia 2020 apontava para o final de 2018. Fonte oficial da IP explica por que as obras ainda não começaram: a empresa aguarda o visto do Tribunal de Contas para proceder à consignação da obra.
Mas há mais. Em julho de 2016, na Covilhã, Pedro Marques referiu-se aos trabalhos na Beira Alta, que o plano do Governo designa por Corredor Internacional Norte, como “um grande investimento”, na ordem dos 691 milhões de euros, e “uma grande prioridade” para o país e para a Europa. Porém, quase dois anos depois, está tudo parado: para os 251 quilómetros onde os trabalhos deveriam estar a decorrer ainda não há qualquer adjudicação assinada. Fonte do MPI (Ministério do Planeamento e das Infraestruturas) explicou que, “à semelhança do que ocorre na globalidade dos projetos do Ferrovia 2020, este projetão, ao contrário do que seria expectável, não tinha os respetivos estudos desenvolvidos, nomeadamente ao nível técnico e ambiental”.
E, face a estes atrasos, os observadores veem reforçado o padrão: “nenhum plano ferroviário, independentemente da cor ou cores do Governo, foi cumprido desde o Estado Novo”.
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Como se disse, o plano prevê 20 projetos, devendo agora estar concluídos 4 e em obra 10. São obras em 1193 quilómetros de linhas férreas (entre modernização das atuais e construção de novas), devendo, nesta altura, estar em obra 528 quilómetros, mas só 79 arrancaram.
Somente a linha do Minho está verdadeiramente a ser modernizada, numa extensão de 43 quilómetros entre Nine e Viana do Castelo. Outro troço em que há trabalhos na via é entre Alfarelos e Pampilhosa (Mealhada), uma das três secções da linha do Norte que ficou de fora da modernização iniciada em 1998. E, 20 anos depois, a opção consistiu em proceder à renovação uma renovação integral da via para manter a fiabilidade e a segurança, já que se encontrava degradada. Não obstante, o projeto não contempla uma verdadeira modernização (nem sequer está previsto o aumento da velocidade dos comboios), mas apenas “uma manutenção pesada”.
Em circunstâncias similares estão as secções Ovar-Gaia e Santarém-Entroncamento que também carecem da renovação integral de via sob pena de os comboios terem de circular a velocidades muito reduzidas por questões de segurança.
No resto da ferrovia pouco ou nada avançou. Dos 10 projetos que, segundo o cronograma da IP, já deveriam estar no terreno, só mesmo esses dois estão em obra. E já deveriam estar concluídos quatro projetos no valor de 165 milhões de euros. Um deles, como foi dito, é o troço Caíde-Marco de Canaveses, na linha do Douro, cuja modernização deveria ter terminado em 2016. Outros dois são o troço Évora-Évora Norte (9 quilómetros), atrasado devido à contestação do traçado por parte da população, bem como a modernização da linha entre Elvas e a fronteira do Caia. E outro dos projetos mais atrasados é o da linha da Beira Alta que o plano do Governo designa por Corredor Internacional Norte e no qual seriam investidos 691 milhões de euros e que não avançou pela razão acima indicada – havendo apenas alguns trabalhos – os necessários – na zona de Mealhada-Luso para repor a linha nas condições de segurança anteriores aos descarrilamentos.
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Em relação ao sonho de construção da nova linha de Aveiro a Mangualde, o MPI diz que “o Governo considera de enorme importância essa ligação, pelo que a mantém na lista de projetos a submeter a financiamento europeu”. Porém, sabe-se que esta via-férrea que representa um investimento de 675 milhões (um quarto do total do Ferrovia 2020) foi já duas vezes chumbada por Bruxelas por alegadamente ter uma taxa interna de rentabilidade negativa. E, mesmo em Portugal esta obra não é consensual, havendo autarcas do Centro que defendem ser mais racional modernizar o que existe do que construir linha nova.
Um dos projetos mais atrasados, no valor de 47 milhões de euros, é o da linha do Douro entre Marco de Canaveses e a Régua, numa extensão de 43 quilómetros, que deveria iniciar as obras até junho deste ano. Mas, segundo a IP, o projeto ainda está em fase de estudos. Embora o instituto não tenha querido divulgar o novo calendário, a obra, que deveria estar terminada em finais de 2019, deverá derrapar para 2022.
O mesmo se passa com a linha do Oeste, de Meleças às Caldas da Rainha. Uma extensão de 84 quilómetros a eletrificar e a modernizar custará 107 milhões de euros. Segundo as promessas de Pedro Marques – que, em 12 de fevereiro de 2016, assegurou que o plano tinha sido devidamente estudado, era exequível e que os prazos seriam cumpridos – as obras deveriam ter tido início no último trimestre de 2017 para estarem concluídas em meados de 2020. O atraso já soma dois anos e o MPI não deu nova data.
Na maioria dos casos, o MPI justifica o não cumprimento da calendarização com atrasos ocorridos na fase de estudos e projetos, bem como na avaliação de impacto ambiental. Mas muito deste atraso (só 15% dos projetos estão em fase de construção) deve-se à paralisação da antiga Refer aquando da fusão com a "Estradas de Portugal". O novo gigante daí resultante tornou difícil o arranque das obras devido às violentas reestruturações que resultaram numa menor capacidade de decisão da componente ferroviária.
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Já nos recuados tempos dos planos de fomento do Estado Novo os planos de investimento ferroviários não eram cumpridos. E a história da democracia não trouxe melhores avanços em termos da ferrovia. Entre avanços e recuos, raro foi o Governo que não fez questão de apresentar o seu plano para os caminhos de ferro sem que, no entanto, o tenha executado.
Logo após o período revolucionário, veio a Portugal em eminente político e técnico francês com vista à modernização da Linha do Norte: era necessário e possível a viagem Porto-Lisboa em 3 horas, o que até aí era impensável. Ficava secundarizada a rodovia, sobretudo no referente a autoestradas. Foi preciso chegar o ano de 1985 para o IX Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, definir um novo plano rodoviário nacional, que sucederia ao plano rodoviário nacional de 1945, da iniciativa do Ministro Carneiro Pacheco.
O segundo Governo de Cavaco Silva, em 1988, apresentou o Plano de Modernização e Reconversão dos Caminhos de Ferro (1988-1994) que passava por encerrar linhas (sobretudo as de via estreita) e modernizar outras. Muitas linhas férreas forma encerradas, mas a modernização quase não houve, mas as linhas foram encerradas: de 3608 quilómetros de rede ferroviária no início do período, chegou-se a 2850 quilómetros. Entretanto, o número de quilómetros de autoestradas duplicava, num horizonte temporal de 7/8 anos, duns modestos 314 quilómetros, em 1988, para 687, em 1995.
Com Guterres (1995-2002) desenha-se o POAT (Plano Operacional de Acessibilidades e Transportes) para 2000-2006, centrado sobretudo na construção de autoestradas sem custos para o utilizador, triplicando o número de quilómetros. Inicia-se, contudo, o investimento ferroviário no corredor Braga-Faro, aproveitando a dinâmica do Euro 2004. E é então que se começa a falar da alta velocidade, defendendo-se uma linha Lisboa-Porto que bifurcava para Espanha: o “T deitado”. Ainda assim, neste período a ferrovia é reduzida de 2850 para 2800 quilómetros.
Durão Barroso, que governou de 2002 a 2004, manteve o POAT, mas o mandato é marcado pelo milagre da multiplicação das linhas de alta velocidade no papel, apresentadas com pompa e circunstância na cimeira ibérica da Figueira da Foz em 2003. O TGV chegaria de Lisboa e Porto à Galiza, a Madrid, a Évora, a Faro – cinco linhas de alta velocidade. Nada disto se fez. 
O POAT dará lugar, com Sócrates (2005-2011), às Orientações Estratégicas para o Setor Ferroviário apresentadas em ambiente festivo, em Lisboa no Parque das Nações. Mário Lino e Ana Paula Vitorino anunciam um ambicioso plano de modernização da rede ferroviária nacional com base na alta velocidade. A rede convencional é secundarizada, em particular a linha do Norte, que desde 1999 vinha a ser modernizada (modernização ainda não concluída) aos soluços. E o desígnio do TGV fez cair algumas linhas que definhavam à míngua de investimento: o Corgo, o Tua, o Tâmega e a linha Pampilhosa-Figueira da Foz desaparecem da geografia ferroviária.
A austeridade de Pedro Passos Coelho (2011-2015) atirou a alta velocidade para a prateleira e congelou as obras do Metro Mondego, condenando à morte a linha de Coimbra à Lousã, e fechou, no Alentejo, o troço Beja-Funcheira. Mas foi anunciado o PETI3+ (Plano Estratégico de Transportes e Infraestruturas) assente em investimentos vocacionados para as mercadorias, ignorando o transporte ferroviário de passageiros como garante de coesão social e instrumento de ordenamento do território. Também aqui nada se fez.
António Costa, empossado em 2015, é pragmático: o Governo não meterá o plano anterior na gaveta e aproveitará o PETI3+ rebatizado de Ferrovia 2020. Sobre o TGV, Costa falou, no dia 11, em entrevista ao jornal espanhol ABC, dizendo que “a alta velocidade é um tema tabu na política portuguesa e vai sê-lo por muito tempo”. Portugal tem hoje 2546 quilómetros de linhas férreas e não tem propriamente uma rede ferroviária, mas apenas um eixo vertical Braga-Faro donde irradiam algumas linhas e ramais.
E, quanto a autoestradas, dos 687 quilómetros de 1995, o país chegou a 2017 com 11.108. O memorando da troika não impediu o aumento significativo destas vias rodoviárias e foi então que Portugal se tornou o único país da Europa onde o número de quilómetros de autoestradas ultrapassa o número de quilómetros de linhas férreas.
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Enfim, porque não dispomos de políticos com audácia em obras públicas como Fontes Pereira de Melo ou Manuel da Silva Passos, andamos de plano em plano. Degrada-se a ferrovia, constroem-se autoestradas para o vazio e o marasmo só por milagre dá crescimento económico, que não seja transitório ou de caracol, e coesão territorial. E, se com a fuga da do Rei e da Corte para o Brasil, os franceses “ficaram a ver navios”, Portugal hoje fica a olhar para a Europa “a ver passar os comboios” e a passear sob as asas dos aviões que galgam os ares a partir de outros aeroportos, que não os nacionais. É vida triste dos pequeninos em tudo, que podiam ser grandes!
2018.02.12 – Louro de Carvalho

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