Em todos os anos, o 1.º Domingo da Quaresma nos
oferece para reflexão o texto evangélico das tentações de Jesus. Neste ano B, o
texto é o do evangelista Marcos (Mc 1,12-13), mais simples, desprovido de qualquer encenação:
“Depois, o Espírito impeliu-o para o
deserto. E ficou no deserto quarenta dias. Era tentado por Satanás, estava
entre as feras e os anjos serviam-no.”.
A
tentação, que vem a seguir ao Batismo no Jordão em que Ele é consagrado no
Espírito como o Filho de Deus, antecipa em resumo os conflitos que Jesus há de
experimentar em toda a sua vida: enfrentará o representante das forças do mal
que escravizam o homem, mas os anjos de Deus o sustentarão nessa luta. E será
este o protótipo da luta que espera os filhos dos homens nesta peregrinação
terrestre a caminho da pátria celeste.
Os
40 dias que “esteve no deserto”, são evocados na Quaresma.
Marcos não frisa o jejum do Senhor, mas o deserto e as tentações, e de modo
genérico: “Era tentado. Vivia com os animais selvagens e os Anjos serviam-no (cf Mt 4,1-11). Bento XVI observava o
sentido profundo do deserto e das tentações de Jesus: a sua ação é precedida pelo
recolhimento, que implica luta interior em prol da sua missão, luta contra as
deturpações da mesma, que se apresentam como suas verdadeiras realizações. É a
descida aos perigos que ameaçam o homem, porque só assim o homem caído pode ser
levantado. “Permanecendo fiel ao núcleo originário da sua missão, Jesus deve
entrar no drama da existência humana, atravessá-lo até ao fundo, para deste
modo encontrar a ‘ovelha perdida’, colocá-la aos ombros e reconduzi-la a casa”
(Jesus
de Nazaré, p.
56).
“Satanás” (em hebraico, ‘xatan’ e, em grego,‘diábolos’) significa adversário,
acusador, caluniador. As tentações do demónio visavam desviar Jesus da missão,
seduzindo-O com o protagonismo de messias milagreiro, espetacular e ambicioso. Porém,
o texto evangélico faz ressaltar o maravilhoso exemplo do Senhor: um exemplo
de humildade, sujeito aos ataques do demónio, e de fortaleza, resistindo decididamente, sem vacilar
ou ceder. Vem a propósito o comentário de Santo Agostinho, que se lê no Ofício
de Leitura:
“A nossa vida, enquanto
somos peregrinos na terra, não pode estar livre de tentações, e o nosso
aperfeiçoamento realiza-se precisamente através das provações. Ninguém se
conhece a si mesmo, se não for provado; ninguém pode receber a coroa, se não
tiver vencido; ninguém pode vencer, se não combate; e ninguém pode combater, se
não tiver inimigos e tentações. Bem poderia Ele ter mantido o demónio longe de
Si; mas, se não fosse tentado, não nos teria ensinado a vencer a tentação.”
(Enar. in Ps. 60).
Depois de suportar esta provação e tendo em conta que João
estava preso – calou-se uma voz, provisória: teve de levantar-se a voz
definitiva –, o Senhor está pronto para iniciar o ministério público da
proclamação da Boa Nova de Deus, que Marcos sintetiza nestas palavras:
“Completou-se
o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai
no Evangelho”.
São
as primeiras palavras de Jesus: apresentam a chave para interpretar toda a sua
atividade. Em Jesus, Deus entrega-Se totalmente. Não é mais tempo de esperar. Cumpriu-se
o tempo. É hora de agir. O Reino é o amor de Deus que provoca a transformação
radical da situação injusta que domina os homens. Está próximo: o Reino é
dinâmico e está sempre crescendo. E tem como consequência a conversão, que
passa por duas atitudes: arrependimento e fé. A ação de Jesus exige, pois, a
mudança radical da orientação de vida. Acreditar na Boa Notícia é aceitar Jesus
Cristo, o que Jesus realiza e empenhar-se com ele no dinamismo e na dilatação
do Reino pregando a todos a remissão dos pecados e o poder da salvação.
***
Todavia, embora o Evangelho seja o fulcro da
meditação quaresmal desta dominga, não se pode perder a lição da 1.ª leitura (Gn 9,8-15), em que se relata o estabelecimento da
aliança de Deus com Noé e seus filhos, após a oferta sacrificial que Noé fez ao
Deus que o salvou do dilúvio.
A aliança que o texto refere não é ainda a que
veio a ser celebrada com o povo escolhido, mas é a “aliança
cósmica”, com toda a humanidade e toda a obra da criação. Ao
lermos o texto do dilúvio – os estudiosos falam de duas fontes entrelaçadas, a
da tradição javista e a da tradição sacerdotal –, não devemos ficar perdidos no
aspeto histórico-literário e nas semelhanças com outros relatos de diversas
culturas antigas que falam de cataclismos do género. Como se lê em 2 Tim 3,15-17, o que interessa no
contacto com “toda a Escritura, inspirada por Deus”, é obter “a sabedoria
conducente à salvação por meio da fé em Jesus Cristo”. Quando a humanidade se
perde no pecado, transgredindo a lei impressa na obra da criação, a harmonia da
natureza transtorna-se, voltando ao caos inicial (cf Gn 1,2), e a subsistência do
ser humano corre risco. Na Sagrada Escritura o fenómeno do dilúvio tem a
particularidade de não se apresentar como fruto de caprichos maléficos e
invejas dos deuses pagãos, mas como consequência do pecado e em ordem ao
recomeço da nova era de regeneração e harmonia universal. A aliança subsequente
ao dilúvio revela o verdadeiro interior de Deus para com as criaturas: Ele é
Pai providente a cuidar carinhosamente de tudo o que criou, particularmente do
homem; Deus, “mesmo quando castiga, não esquece a sua
misericórdia” (cf Habc 3,2). É claro o fundo
mitológico do relato, mas sabe a pouco, ao lermos o texto, ficarmos encerrados
no curto horizonte do mito, quando o autor vai mais além: Yahwéh é um Deus
ético e transcendente; o ‘castigo’ do pecado (Gn 6,6.12) não resulta de
capricho nem de ira desenfreada. O autor até fez um trabalho de desmitização,
apesar de manter a linguagem antropomórfica do mito, chocante para a nossa
mentalidade.
“O arco-íris”
adquire, no relato, um significado simbólico. É o sinal da benevolência divina,
expressa em categorias de aliança, para com toda a criação; já não é o tremendo arco de guerra (o termo hebraico, quéxet, é o mesmo), mas o abraço do Criador. Ainda que
persistam na memória dos povos tremendas catástrofes, como justo castigo do
pecado, o ser humano não pode viver sob o pesadelo constante dos terrores sentido
por quem ignora a Revelação divina.
A Liturgia, ao apresentar este texto no início da
Quaresma, facilita-nos a consideração da misericórdia divina, que permite elevarmo-nos
acima das nossas misérias e sairmos dos nossos pecados pela graça de Cristo,
que nos chega particularmente através dos Sacramentos.
***
Isto mesmo se verifica na perícopa da 1.ª Carta
de Pedro (1Pe
3,18,22),
assumida como 2.ª leitura do dia, parecendo ter a carta como base uma catequese
baptismal. Assim, aparece na liturgia de hoje em relação com a 1.ª leitura, que
evoca o dilúvio, como figura do Batismo.
“Morreu segundo a carne, mas
voltou à vida pelo Espírito (cf 1 Pe 2,21.24; Rm 6,10; Heb 9,28). Foi por este (Espírito) que Ele foi pregar aos espíritos que
estavam na prisão da morte…”. De facto, Cristo morreu como homem, mas
manteve-se vivo como Deus. Por outras palavras, Jesus, ao morrer, abandonou a
condição mortal para passar a viver no seu estado glorioso e imortal.
“Pregar”
indica, no NT, a pregação da salvação. Esta pregação “aos espíritos que estavam na prisão” é a mais
clara referência bíblica à verdade do Credo da
descida de Jesus “à mansão dos mortos” (cf 1 Pe 4,6; Rm 10,6-7; Ef 4,8-9; Ap 1,18; Mt 12,40; Lc 23,43; At 2,31) a anunciar a mensagem
da salvação, segundo uns com a alma separada do corpo, segundo outros na condição gloriosa. Registe-se que a mansão
dos mortos (o Xeol hebraico, o Hades grego,
os Inferni latino) representava o estado dos que tinham morrido,
que se pensava estarem num espaço interior da Terra. Ao dizer que Jesus pregou (a salvação) também aos que tinham sido
outrora rebeldes nos dias de Noé, quer dizer que chegou
a salvação também àquela gente que na tradição bíblica era
considerada como os maiores pecadores (cf Gn 6,5.11-12). É o desígnio
universal da Redenção para todos os pecadores arrependidos, por mais pecadores
que tenham sido; a salvação é levada a todos e não apenas à gente dos tempos de
Noé, como sendo o tipo da gente mais perversa, mas certamente arrependida dos
seus pecados. Não obstante, esta passagem da pregação de Jesus aos espíritos
cativos é muito obscura e, para lá da interpretação que a
entende como a descida de Jesus aos Infernos, ou Mansão dos Mortos, para levar
para o Céu todas as almas que aguardavam a hora da redenção, tem muitas outras
interpretações: para uns (como Orígenes), seria referência à salvação de certos condenados que se
salvaram com a descida de Cristo ao Inferno (a Igreja reprovou esta tese); para Santo
Agostinho, refere-se ao Verbo, que, antes da Incarnação, pelos avisos de Noé,
se dirigiu aos cativos da ignorância e da perversão; para uns poucos, estes
“espíritos cativos” seriam anjos caídos, a quem Jesus teria convencido da condenação
definitiva; e, para alguns, até se referia a Enoc, o patriarca anterior ao
dilúvio, que, segundo Gn 5,24, não morreu e, segundo a literatura apócrifa,
proclamou a condenação aos anjos rebeldes.
“Salvaram-se através da água”: Noé, a mulher, 3 filhos e 3 noras (8 pessoas, sem contar os
netos: cf Gn 6
– 9). A água não é tomada aqui no sentido de castigo e
destruição, como água mortífera, mas como água salvadora, um meio de os
sobreviventes se salvarem, navegando através dela. É de notar um deslizamento
semântico na preposição grega diá do sentido
local (através
de)
para o sentido instrumental (por meio de), de modo a evidenciar um simbolismo oculto: a água do dilúvio é a figura (o tipo) do Batismo, que é
a autêntica realidade (em grego: o antitipo) “que agora vos salva”. Na verdade, se o Batismo salva, não é por limpar
a sujidade do corpo, mas “pela ressurreição de Jesus,
pois a Ele se adere, pela renúncia ao pecado e pela fé concretizada nas promessas do Batismo, isto é, “o compromisso para com
Deus de uma boa consciência”.
“Subiu ao Céu” é
clara referência à Ascensão de Jesus, bem atestada no N T e frequente nos
escritos paulinos. “E está à direita de Deus” exprime a suma dignidade de Cristo, sobre todas
as criaturas, bem como o seu domínio sobre todas elas.
***
Baixaram as águas do dilúvio. Noé, com a família,
saiu da arca, recebeu a bênção do Senhor, construiu um altar de pedra e
ofereceu-Lhe um sacrifício. Deus estabeleceu então uma aliança com ele e, na
pessoa dele, abençoou toda a criação com a promessa de que nunca mais um
dilúvio destruiria a terra. E o sinal permanente desta aliança seria o
arco-íris. Ora, esta Aliança foi solenemente renovada na Última Ceia e no
Calvário, pelo único sacrifício aceite pelo Pai. A Cruz ora levantada sobre a
terra é novo arco-íris, mensageiro da paz, que a Quaresma evoca como sinal do
Amor que o Pai nos oferece em Jesus, convidando-nos a acolher este dom pela
conversão pessoal.
O dilúvio é imagem e figura do Batismo. É
sepultado nas águas o mundo corrompido, o homem velho, o pecado original e,
quando o Batismo é administrado a um adulto, os pecados pessoais para ressuscitar
um mundo renovado. Surge o homem novo, incorporado em Jesus Cristo. Fica
sepultada nas águas toda maldade humana que mancha a terra. Depois, surge a
nova terra e a nova humanidade com a qual fez Deus a Sua aliança. Neste contexto,
a Quaresma prepara-nos para a Vigília pascal, em que se recebe o Batismo ou os já
batizados renovam a graça baptismal.
Assim, nos domingos deste tempo forte, a
Liturgia recorda-nos as verdades fundamentais da fé.
Como resposta, abrimo-nos à graça pela
conversão pessoal. Estendemos a mão a Cristo para que nos erga da prostração em
que nos deixaram os nossos pecados. Para nos animar nesta mudança, pela conversão,
a Igreja recorda-nos o Batismo, visto que foi junto da fonte batismal que
iniciámos a nossa caminhada que nos conduzirá ao Céu. Mas temos de assiduamente
ir corrigindo o rumo dos nossos passos, porque a nossa vida está sujeita aos
desvios à lei de Deus. E, se não nos damos conta deles, é porque não levantamos
olhar para o alto.
Para tanto, precisamos de confiar no Senhor,
pondo de lado todas as tentações e hipóteses de desconfiança. Com efeito,
apesar das fragilidades, sabemos que não estamos sós nesta luta entre o
Espírito e a carne. Além de nos oferecer todos os meios de cura na Sua Igreja,
o Senhor vem em nosso auxílio com a Sua graça, pelo que Lhe devemos manifestar
o desejo da Sua ajuda.
Ao mesmo tempo, temos de cultivar a fidelidade ao
mistério do Reino e prová-la na vida todos os dias, na linha da docilidade ao Espírito
Santo, que, assim como “impeliu Jesus para o deserto”, também nos conduz no
deserto do mundo, quer diretamente, quer através da Igreja.
Por outro lado, temos de afastar a ideia
negativa da tentação. Tentação em si não é pecado. Jesus também foi tentado e
não pecou. O pecado, que Jesus não cometeu, é aderir à tentação que, sendo um
chamariz, serve para desafiar e pôr à prova a fé, o culto da Palavra divina, a
retidão de vida, o amor a Deus e ao próximo. A tentação é prova de Amor,
competição desportiva na qual podemos conquistar louros de vitória. De outro
modo, o Espírito não impeliria Jesus para o deserto e não permitiria que
fôssemos tentados, porque é o melhor dos pais.
A prudência neste combate que travamos passa
por medidas de prevenção, como em qualquer batalha. Temos de procurar a luz na
Palavra de Deus, para sermos capazes de desmascarar os desvios subtis do
Inimigo das Trevas e nos fortalecermos com os Sacramentos e a oração. A
docilidade ao Espírito Santo vive-se na medida em que vivemos com docilidade as
indicações que a Igreja nos oferece na vida em consonância com o que nos diz a
consciência retamente formada. Quem persiste em guiar-se exclusivamente pela
própria cabeça, sairá vencido. A autossuficiência nunca é boa conselheira tal
como não o é a não auscultação da consciência.
O bom combate em que estamos empenhados tem ao
nosso dispor as armas necessárias e suficientes, como Jesus também as teve
disponíveis: “Vivia com os animais selvagens e os Anjos serviam-No”; fez
oração e jejuou. Entregou-Se à oração durante quarenta dias e quarenta noites. E
a mortificação manifestou-se em Jesus Cristo de muitos modos: pelos incómodos
em que viveu, sem uma pedra para reclinar a cabeça, sem abrigo das intempéries
– o sol, a chuva e o vento – e uma alimentação condicionada ao que podia encontrar
por ali.
Também a nós o Senhor oferece as armas para
vencer a luta: a Palavra de Deus, proclamada
especialmente na Celebração da Eucaristia de cada domingo; o Alimento divino – a Sagrada Comunhão – para a qual nos
convida quando estamos devidamente preparados (o que se faz com o sacramento da
Reconciliação);
e a penitência corporal, pelo jejum e abstinência de
muitas coisas que poderíamos utilizar – com vista à partilha com os irmãos,
sobretudo com os mais necessitados.
É o Reino de Deus e a sua justiça que o exigem
e que devem ser procurados em primeiro lugar!
2018.02.18 – Louro de Carvalho
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