quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Instauração ou continuação de procedimento penal em Estado estrangeiro


Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola, escreveu ao Procurador-Geral da República de Angola, a 19 de janeiro, uma carta em que pede que seja julgado naquele seu país, invocando, para tanto, a lei portuguesa e a lei angolana para a transferência da parte do processo denominado de “Operação Fizz” em que o requerente é suspeito.
existência dessa carta foi mencionada no comentário de Marques Mendes, na edição do Jornal da Noite da SIC, no passado domingo, dia 4. Nela, o ex-vice-presidente de Angola pede que o Procurador-Geral da República confirme, “com urgência”, se já terá recebido a carta rogatória enviada pelo Ministério Público (MP) português, pedindo a sua constituição como arguido e a notificação da acusação, “para efeitos de alegado cumprimento do quadro legal português”, bem como “o teor da resposta” que a PGR angolana irá dar a essa mesma carta rogatória.
Nesse mesmo documento, Manuel Vicente pede expressamente ao PGR Hélder Pitta Grós o seu julgamento em Angola, conforme está previsto na legislação portuguesa, designadamente a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e na legislação angolana, designadamente a Lei n.º 13/15, de 19 de julho – diplomas que se referem, em parte, à lei de cooperação estratégica internacional penal.
Segundo Luís Marques Mendes, no seu espaço habitual de comentário na SIC, esse pedido formal feito à PGR é indicativo de que Manuel Vicente “está disponível para ser julgado” em Angola. Na sequência dessa carta, Marques Mendes disse que “nos próximos dias chegará formalmente a Portugal um pedido das autoridades judiciais de Angola para que o processo seja transferido para o país”.
O processo resultante da “Operação Fizz” começou a ser julgado em Portugal, mas a parte relativa a Vicente foi separada pelo facto de Angola ainda não ter dado resposta às cartas rogatórias enviadas pelo Ministério Público português. Essa separação processual satisfez o advogado de Manuel Vicente. E é essa parte separada que o ex-vice-presidente quer que seja transferida para Angola.
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No passado fim semana, as autoridades judiciárias terão, segundo o que foi noticiado, emitido um mandato de detenção para notificar Manuel Vicente em Portugal, por alegadamente ter recebido uma “informação da PSP” de que ele estaria em território nacional. Porém, segundo avançou o DN, Manuel Vicente terá estado não em Portugal, mas em São Tomé e Príncipe – tendo a Procuradora-Geral da República já acusado desnecessariamente em público o toque de a informação fora um erro da PSP (Isso, desautorizem-se publicamente! Fica-lhes mesmo bem…).
Vicente é acusado do crime de corrupção ativa e do crime de branqueamento de capitais. A acusação alega que o então Presidente da Sonangol terá pedido ao procurador do Ministério Público Orlando Figueira, então procurador do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), que arquivasse, a troco de contrapartidas em dinheiro, dois inquéritos relacionados consigo, um deles o caso Portmill, atinente à aquisição de um imóvel de luxo no Estoril.
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A lei portuguesa invocada – Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – prevê que “a instauração de procedimento penal ou a continuação de procedimento instaurado em Portugal por facto que constitua crime segundo o direito português podem ser delegadas num Estado estrangeiro que as aceite, nas condições referidas” na mesma lei (vd art.º 89.º).
As condições especiais estabelecidas são as seguintes:
a) Que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado; 
b) Que a reação criminal privativa da liberdade seja de duração máxima não inferior a um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante máximo não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual; 
c) Que o suspeito ou o arguido tenham a nacionalidade do Estado estrangeiro ou, sendo nacionais de um terceiro Estado ou apátridas, ali tenham a residência habitual; 
d) Quando a delegação se justificar pelo interesse da boa administração da justiça ou pela melhor reinserção social em caso de condenação. (vd art.º 90.º/1).
Verificadas estas condições, pode ainda ter lugar a delegação: 
a) Quando o suspeito ou o arguido estiverem a cumprir sentença no Estado estrangeiro por crime mais grave do que o cometido em Portugal; 
b) Quando, em conformidade com a lei do Estado estrangeiro, não possa ser obtida a extradição do suspeito ou do arguido ou, quando solicitada, ela for negada e estes tenham residência habitual nesse Estado; 
c) Quando o suspeito ou o arguido forem extraditados para o Estado estrangeiro por outros factos e seja previsível que a delegação do processo criminal permite assegurar melhor reinserção social. (vd art.º 90.º/2).
A delegação pode ainda efetuar-se, independentemente da nacionalidade do agente, quando Portugal considerar que a presença do arguido em audiência de julgamento não pode ser assegurada, podendo todavia sê-lo no Estado estrangeiro. 
Excecionalmente, a delegação pode efetuar-se independentemente do requisito da residência habitual, quando as circunstâncias do caso o aconselharem, designadamente para evitar que o julgamento não possa efetivar-se quer em Portugal quer no estrangeiro. (vd art.º 90.º/3 e 4).
O processo de delegação de delegação observa os seguintes procedimentos:
O tribunal competente para conhecer do facto aprecia a necessidade da delegação, a requerimento do MP, do suspeito ou do arguido, com audiência contraditória, na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma de cooperação internacional. O MP bem como o suspeito ou o arguido podem responder ao requerimento no prazo de 10 dias, quando não sejam os requerentes. E, após a resposta ou decorrido o prazo para a mesma, o juiz decide, no prazo de oito dias, da procedência ou improcedência do pedido. 
Se o suspeito ou o arguido estiverem no estrangeiro, podem, por si ou pelo seu representante legal ou advogado, pedir a delegação do procedimento penal diretamente ou através de uma autoridade do Estado estrangeiro ou de autoridade consular portuguesa, que o encaminharão para a Autoridade Central. 
A decisão judicial que aprecia o pedido é susceptível de recurso.
A decisão transitada favorável ao pedido determina a suspensão do prazo de prescrição, bem como da continuação do processo penal instaurado, sem prejuízo dos atos e diligências de caráter urgente, e é transmitida através do Procurador-Geral da República para apreciação do Ministro da Justiça, remetendo-se cópia autenticada de todo o processado. (vd art.º 91.º).
O pedido do Ministro da Justiça ao Estado estrangeiro é apresentado pelas vias previstas na lei (vd art.º 92.º).
Aceite, pelo Estado estrangeiro, a delegação para a instauração ou continuação do procedimento penal, não pode instaurar-se novo processo em Portugal pelo mesmo facto. 
A suspensão da prescrição do procedimento penal mantém-se até que o Estado estrangeiro ponha termo ao processo, incluindo a execução da sentença.
Portugal recupera, porém, o direito de proceder penalmente pelo facto se: 
a) O Estado estrangeiro comunicar que não pode levar até ao fim o procedimento delegado; 
b) Houver conhecimento superveniente de qualquer causa que impediria o pedido de delegação, nos termos do presente diploma. 
A sentença proferida no processo instaurado ou continuado no Estado estrangeiro que aplique pena ou medida de segurança é inscrita no registo criminal e produz efeitos como se tivesse sido proferida por um tribunal português. 
Esta disposição aplica-se a qualquer decisão que, no processo estrangeiro, lhe ponha termo. (vd art.º 93.º).
Ora, tanto quanto foi dado saber, o MP português exprimiu explicitamente não confiar na administração da justiça angolana, não ficando bem um Estado soberano manifestar descrença nas instituições de outro Estado soberano, podendo explorar outros argumentos.
Por outro lado, o julgamento foi agendado sem que o Tribunal da Relação de Lisboa, para o qual fora interposto recurso da decisão da 1.ª instância, tenha respondido. Aí, a separação processual, que agradou ao advogado e que pode dar efeitos que facilitem a diplomacia, foi uma saída airosa, mas ambivalente.
Apesar das suas boas razões, o Estado Português, em matéria judiciária não esteve bem em termos formais, até porque em princípio “pacta sunt servanda”. E a lei angolana não difere substancialmente da portuguesa em matéria de cooperação penal, além de haver entendimento na matéria entre os países da CPLP.
Assim, a este propósito, o

 Ministro das Relações Exteriores de Angola enviou uma carta a todos os embaixadores dos Estados-membros da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) a explicar a posição de Angola sobre a acusação de Vicente, antigo vice-presidente angolano e um dos principais visados da “Operação Fizz”, segundo o que avança a RTP Informação. 

Questionado por jornalistas à saída duma audiência no Ministério das Relações Exteriores de Angola, o embaixador de Portugal em Luanda, João Caetano da Silva, não quis prestar declarações.
Recorde-se que, devido à “Operação Fizz”, as relações políticas e diplomáticas entre Portugal e Angola já conheceram melhores dias. A ligação quase umbilical entre os dois países pode ter um fim à vista, já que o presidente angolano, João Lourenço, classificou a atitude da justiça portuguesa como “uma ofensa” para Angola e avisou que as relações com Portugal vão “depender muito” da resolução do caso em torno do ex-vice-presidente. 
O julgamento arrancou no dia 22 de janeiro. E, nesse mesmo dia, a procuradora do MP Leonor Machado pediu a separação do processo do ex-vice-Presidente de Angola, pedido a que o coletivo de juízes acedeu.
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Para Augusto Santos Silva, a carta enviada por Angola a todos os embaixadores da CPLP sobre a acusação de Manuel Vicente não está relacionada com o mandado de captura do antigo vice-presidente. 

Com efeito, este foi um tema de análise por parte do ministro dos Negócios Estrangeiros em declarações aos jornalistas.
Ora, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português esclareceu que esta situação “não está relacionada com o mandado de detenção que foi emitido pelas autoridades portuguesas judiciais no fim de semana passado”. A nota do governo angolano refere-se apenas “a mais um desenvolvimento a propósito do processo em que Manuel Vicente é arguido”, justificou o Ministro, dizendo que “Angola teve a gentileza de remeter a Portugal informação sobre o seu ponto de vista em relação à aplicação dos acordos judiciários quer a nível bilateral quer a nível multilateral”. Mais o nosso chefe da diplomacia garantiu que a nota verbal do Governo angolano terá uma resposta de Lisboa “com todo o cuidado e atenção”.
No âmbito das relações bilaterais entre estes dois países, o responsável pela pasta dos Negócios Estrangeiros esclarece que há “um acordo de cooperação judiciária bilateral assinado por Portugal e Angola e outro multilateral ratificado no âmbito da CPLP; e que Portugal está muitíssimo empenhado em cumprir estes dois acordos em matéria de cooperação judiciária”. Santos Silva realçou ainda a importância de “manter a comunicação regular com Angola como países amigos que somos”.
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Queiramos ou não, são relações diplomáticas bem atribuladas, marcadas pelo disfarce de quem separa a excelências da vertente política e económica dos espinhos da vertente da justiça – o que é de todo inseparável em termos da representação do Estado, embora seja necessária no âmbito interno a clara separação dos poderes (políticos). Todavia, a experiência demonstra a também necessária cooperação e interdependência entre eles. Tanto assim é que as relações são ditas “excelentes”, mas estão suspensas as visitas entres as autoridades de topo dos dois países. Só falam em território neutro.
Isto não se percebe num país que diz deter uma larga experiência diplomática.
2018.02.08 – Louro de Carvalho

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