Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola, escreveu ao Procurador-Geral da República de Angola, a 19 de janeiro, uma carta em que pede que seja julgado
naquele seu país, invocando, para tanto, a lei portuguesa e a
lei angolana para a transferência da parte do processo denominado de “Operação
Fizz” em que o requerente é suspeito.
A existência dessa carta foi mencionada no comentário de Marques
Mendes, na edição do Jornal da Noite da SIC, no passado domingo, dia 4.
Nela, o ex-vice-presidente de Angola pede que o Procurador-Geral da
República confirme, “com urgência”, se já terá recebido a carta rogatória
enviada pelo Ministério Público (MP) português, pedindo a sua constituição como arguido e a notificação da
acusação, “para efeitos de alegado cumprimento do quadro legal português”, bem
como “o teor da resposta” que a PGR angolana irá dar a essa mesma carta
rogatória.
Nesse mesmo documento, Manuel Vicente pede expressamente ao PGR Hélder
Pitta Grós o seu julgamento em Angola, conforme está previsto na legislação
portuguesa, designadamente a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e na legislação
angolana, designadamente a Lei n.º 13/15, de 19 de julho – diplomas que se referem,
em parte, à lei de cooperação estratégica internacional penal.
Segundo Luís Marques Mendes, no seu espaço habitual de comentário na SIC,
esse pedido formal feito à PGR é indicativo de que Manuel Vicente “está
disponível para ser julgado” em Angola. Na sequência dessa carta, Marques
Mendes disse que “nos próximos dias chegará formalmente a Portugal um pedido
das autoridades judiciais de Angola para que o processo seja transferido para o
país”.
O processo resultante da “Operação Fizz” começou a ser julgado em Portugal,
mas a parte relativa a Vicente foi separada pelo facto de Angola ainda não ter
dado resposta às cartas rogatórias enviadas pelo Ministério Público português.
Essa separação processual satisfez o advogado de Manuel Vicente. E é essa parte
separada que o ex-vice-presidente quer que seja transferida para Angola.
***
No passado fim semana, as autoridades judiciárias
terão, segundo o que foi noticiado, emitido um mandato de detenção para
notificar Manuel Vicente em Portugal, por alegadamente ter recebido
uma “informação da PSP” de que ele estaria em território nacional. Porém,
segundo avançou o DN, Manuel Vicente
terá estado não em Portugal, mas em São Tomé e Príncipe – tendo a
Procuradora-Geral da República já acusado desnecessariamente em público o toque
de a informação fora um erro da PSP (Isso, desautorizem-se publicamente!
Fica-lhes mesmo bem…).
Vicente é acusado do crime de corrupção ativa e do crime de branqueamento
de capitais. A acusação alega que o então Presidente da Sonangol terá
pedido ao procurador do Ministério Público Orlando Figueira, então procurador do DCIAP (Departamento
Central de Investigação e Ação Penal),
que arquivasse, a troco de contrapartidas
em dinheiro, dois
inquéritos relacionados consigo, um deles o caso Portmill,
atinente à aquisição de um imóvel de luxo no Estoril.
***
A lei
portuguesa invocada – Lei n.º 144/99,
de 31 de Agosto – prevê que “a instauração de procedimento penal ou a continuação de
procedimento instaurado em Portugal por facto que constitua crime segundo o
direito português podem ser delegadas num Estado estrangeiro que as aceite, nas
condições referidas” na mesma lei (vd art.º 89.º).
As condições especiais estabelecidas são as
seguintes:
a) Que o facto integre crime segundo a legislação
portuguesa e segundo a legislação daquele Estado;
b) Que a reação criminal privativa da liberdade seja
de duração máxima não inferior a um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o
seu montante máximo não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de
conta processual;
c) Que o suspeito ou o arguido tenham a nacionalidade
do Estado estrangeiro ou, sendo nacionais de um terceiro Estado ou apátridas,
ali tenham a residência habitual;
d) Quando a delegação se justificar pelo interesse da
boa administração da justiça ou pela melhor reinserção social em caso de
condenação. (vd art.º
90.º/1).
Verificadas estas condições, pode ainda ter lugar a delegação:
a) Quando o suspeito ou o arguido estiverem a cumprir
sentença no Estado estrangeiro por crime mais grave do que o cometido em
Portugal;
b) Quando, em conformidade com a lei do Estado
estrangeiro, não possa ser obtida a extradição do suspeito ou do arguido ou,
quando solicitada, ela for negada e estes tenham residência habitual nesse
Estado;
c) Quando o suspeito ou o arguido forem extraditados
para o Estado estrangeiro por outros factos e seja previsível que a delegação
do processo criminal permite assegurar melhor reinserção social. (vd
art.º 90.º/2).
A delegação pode ainda efetuar-se, independentemente da nacionalidade do
agente, quando Portugal considerar que a presença do arguido em audiência de
julgamento não pode ser assegurada, podendo todavia sê-lo no Estado
estrangeiro.
Excecionalmente, a delegação pode efetuar-se independentemente do requisito
da residência habitual, quando as circunstâncias do caso o aconselharem,
designadamente para evitar que o julgamento não possa efetivar-se quer em
Portugal quer no estrangeiro. (vd art.º 90.º/3 e 4).
O processo de delegação de delegação observa os
seguintes procedimentos:
O tribunal competente para conhecer do facto aprecia a necessidade da
delegação, a requerimento do MP, do suspeito ou do arguido, com audiência
contraditória, na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma
de cooperação internacional. O MP bem como o suspeito ou o arguido podem
responder ao requerimento no prazo de 10 dias, quando não sejam os
requerentes. E, após a resposta ou decorrido o prazo para a mesma, o juiz
decide, no prazo de oito dias, da procedência ou improcedência do pedido.
Se o suspeito ou o arguido estiverem no estrangeiro, podem, por si ou pelo
seu representante legal ou advogado, pedir a delegação do procedimento penal diretamente
ou através de uma autoridade do Estado estrangeiro ou de autoridade consular
portuguesa, que o encaminharão para a Autoridade Central.
A decisão judicial que aprecia o pedido é susceptível de recurso.
A decisão transitada favorável ao pedido determina a suspensão do prazo de
prescrição, bem como da continuação do processo penal instaurado, sem prejuízo
dos atos e diligências de caráter urgente, e é transmitida através do
Procurador-Geral da República para apreciação do Ministro da Justiça,
remetendo-se cópia autenticada de todo o processado. (vd art.º
91.º).
O pedido do Ministro da Justiça ao Estado estrangeiro é apresentado pelas
vias previstas na lei (vd art.º 92.º).
Aceite, pelo Estado estrangeiro, a delegação para a instauração ou
continuação do procedimento penal, não pode instaurar-se novo processo em
Portugal pelo mesmo facto.
A suspensão da prescrição do procedimento penal mantém-se até que o Estado
estrangeiro ponha termo ao processo, incluindo a execução da sentença.
Portugal recupera, porém, o direito de proceder penalmente pelo facto
se:
a) O Estado
estrangeiro comunicar que não pode levar até ao fim o procedimento
delegado;
b) Houver
conhecimento superveniente de qualquer causa que impediria o pedido de delegação,
nos termos do presente diploma.
A sentença proferida no processo instaurado ou continuado no Estado
estrangeiro que aplique pena ou medida de segurança é inscrita no registo
criminal e produz efeitos como se tivesse sido proferida por um tribunal
português.
Esta disposição aplica-se a qualquer decisão que, no processo estrangeiro,
lhe ponha termo. (vd art.º 93.º).
Ora, tanto quanto foi dado saber, o MP português exprimiu explicitamente
não confiar na administração da justiça angolana, não ficando bem um Estado
soberano manifestar descrença nas instituições de outro Estado soberano,
podendo explorar outros argumentos.
Por outro lado, o julgamento foi agendado sem que o Tribunal da Relação de
Lisboa, para o qual fora interposto recurso da decisão da 1.ª instância, tenha
respondido. Aí, a separação processual, que agradou ao advogado e que pode dar
efeitos que facilitem a diplomacia, foi uma saída airosa, mas ambivalente.
Apesar das
suas boas razões, o Estado Português, em matéria judiciária não esteve bem em
termos formais, até porque em princípio “pacta
sunt servanda”. E a lei angolana não difere substancialmente da portuguesa
em matéria de cooperação penal, além de haver entendimento na matéria entre os
países da CPLP.
Assim, a
este propósito, o
Ministro das
Relações Exteriores de Angola enviou uma carta a todos os embaixadores dos Estados-membros
da
CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) a explicar a
posição de Angola sobre a acusação de Vicente, antigo vice-presidente angolano e um dos
principais visados da “Operação Fizz”, segundo o que avança a RTP Informação.
Questionado
por jornalistas à saída duma audiência no Ministério das Relações Exteriores de
Angola, o embaixador de Portugal em Luanda, João Caetano da Silva, não quis prestar
declarações.
Recorde-se
que, devido à “Operação Fizz”, as relações políticas e diplomáticas entre
Portugal e Angola já conheceram melhores dias. A ligação quase umbilical entre
os dois países pode ter um fim à vista, já que o presidente angolano, João
Lourenço, classificou a atitude da justiça portuguesa como “uma ofensa” para
Angola e avisou que as relações com Portugal vão “depender muito” da resolução
do caso em torno do ex-vice-presidente.
O julgamento arrancou
no dia 22 de janeiro. E, nesse mesmo dia, a procuradora do MP Leonor Machado
pediu a separação do processo do ex-vice-Presidente
de Angola, pedido a que o coletivo de juízes acedeu.
***
Para Augusto Santos Silva, a carta enviada por Angola a
todos os embaixadores da CPLP sobre a acusação de Manuel Vicente não está
relacionada com o mandado de captura do antigo vice-presidente.
Com efeito, este foi um tema de análise por parte
do ministro dos Negócios Estrangeiros em declarações aos jornalistas.
Ora, o
Ministro dos Negócios Estrangeiros português esclareceu que esta situação “não está
relacionada com o mandado de detenção que foi emitido pelas autoridades
portuguesas judiciais no fim de semana passado”. A nota do
governo angolano refere-se apenas “a mais um desenvolvimento a propósito do
processo em que Manuel Vicente é arguido”, justificou o
Ministro, dizendo que “Angola teve a gentileza de remeter a Portugal informação
sobre o seu ponto de vista em relação à aplicação dos acordos judiciários quer
a nível bilateral quer a nível multilateral”. Mais o nosso chefe da diplomacia garantiu
que a nota verbal do Governo angolano terá uma resposta de Lisboa “com todo o
cuidado e atenção”.
No âmbito das
relações bilaterais entre estes dois países, o responsável pela pasta dos
Negócios Estrangeiros esclarece que há “um acordo de cooperação judiciária
bilateral assinado por Portugal e Angola e outro multilateral ratificado no
âmbito da CPLP; e que Portugal está muitíssimo empenhado em cumprir estes dois acordos em
matéria de cooperação judiciária”. Santos Silva realçou
ainda a importância de “manter a comunicação regular com Angola como países
amigos que somos”.
***
Queiramos ou
não, são relações diplomáticas bem atribuladas, marcadas pelo disfarce de quem
separa a excelências da vertente política e económica dos espinhos da vertente
da justiça – o que é de todo inseparável em termos da representação do Estado,
embora seja necessária no âmbito interno a clara separação dos poderes (políticos). Todavia, a experiência demonstra a
também necessária cooperação e interdependência entre eles. Tanto assim é que
as relações são ditas “excelentes”, mas estão suspensas as visitas entres as
autoridades de topo dos dois países. Só falam em território neutro.
Isto não se
percebe num país que diz deter uma larga experiência diplomática.
2018.02.08 – Louro de Carvalho
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