terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Fazer Caminho: Das Pedras ao Fogo da Páscoa


É o título da brochura que dá corpo à reflexão quaresmal da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), organismo da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que insere no caminho da Páscoa o terrorismo, a pobreza, a privatização dos CTT e a poluição no Tejo.
No seu documento, datado de 21 de fevereiro de 2018 e ontem (dia 26) divulgado, a CNJP “afirma, contextualiza e expande” a Mensagem do Papa para a Quaresma, redigida em torno do tema “Porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos!. Ante a verificação de que a humanidade vive “tempos difíceis”, que são “ameaças” à sobrevivência, a CNJP denuncia situações de desigualdade social e indica propostas para “transcender as situações de violência e injustiça”. E, declarando que “impressiona a clareza do Papa em nomear as duas causas tão concretas do ‘resfriar do amor’, a nível pessoal e ‘também nas nossas comunidades’ – a ganância e a recusa de Deus” – no documento, denunciam-se o não acesso “pleno e tempestivo” de todos os portugueses à saúde” (apesar dos “bons resultados” do Serviço Nacional de Saúde), a “poluição criminosa” dos rios, como documentam as “imagens dramáticas” do Rio Tejo, e a “marginalização dos idosos”.
Parece não ter remédio “a triste marginalização dos idosos”, bem como “o ‘esquecimento’ das populações do interior”, sendo paradigmático o exemplo recente dos CTT, “porque a tomada de decisão teve como base um maior lucro e não a reorganização de  um serviço de atendimento aos cidadãos, nomeadamente os mais isolados”.
Este organismo da CEP realça, por outro lado “algumas iniciativas muito belas”, como a aplicação informática “SOS idosos” feita por um grupo de jovens na sua escola”.
Mas a CNJP não pode esquecer a guerra “em lume brando”, com expressão nos “conflitos locais” em curso, os “extremismos nacionalistas renascendo na Europa” e a instalação de “novos fundamentalismos”. E tem de ficar patente que “o terrorismo não tem fronteiras”, pelo que todos “experimentamos no nosso quotidiano a insegurança e o medo, a desesperança”. Mais: o ambiente geral é o da globalização económico-financeira que, em vez de nos dar maior solidariedade, “nos atrofia e abafa com tentáculos invisíveis”. Com efeito, “o ultraliberalismo do ‘salve-se quem puder’ é, no mundo, uma realidade”: instalou-se na educação, saúde, justiça, apoio e segurança social, trabalho, emprego e uso da terra. E, a par disto, institucionalizou-se o uso e abuso da informática e internet a ponto de o “excesso de relações online”, sobretudo nos adolescentes que “ainda não têm a mínima capacidade de autocontrolo no uso das redes sociais e afins”, poder atingir um estado de “rotura comunicacional”.
A reflexão quaresmal da CNJP lembra ainda, por causa dos incêndios, os “problemas mais profundos quanto à distribuição geográfica da população e à concentração das pessoas em megacidades”, onde o crime e a violência se instalam de par com “um outro tipo de pobreza que retira qualquer dignidade ao quotidiano das pessoas” e reduz tudo à “luta pela sobrevivência”. Assim, “anunciam-nos que a taxa de desemprego baixou” (boa notícia), mas são baixos os salários e é precária a situação contratual, grassa o desemprego juvenil, a corrupção no desporto (e mais setores da atividade económica, social e política) e não diminui a violência doméstica. E, além da violência domestica – ficando evidenciada “a incapacidade das forças de segurança, e mesmo da justiça, de atenderem a este flagelo que tem ceifado muitas vidas, nomeadamente de mulheres” –, denuncia-se uma “nova praga”: a “violência no namoro”. Por todas estas razões, “temos um dever para com o futuro” e desejamos que “a fé no futuro nos mantenha os olhos abertos”.
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Para lá de seguir de perto o Evangelho, a Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma e a encíclica Laudato Si’, o documento da CNJP estrutura-se glosando o seguinte segmento poético de António Ramos Rosa:
Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não ervas. (...) Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos, nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.” (António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra).
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- Sem dizer o fogo – vou para ele
O Papa, com a vista no encontro pascal, convida à conversão na linha da qual “a caridade pressupõe a justiça, a justiça deve ser completada com a caridade”. E diz de modo contundente:
O que apaga o amor é, antes de mais nada, a ganância do dinheiro, ‘raiz de todos os males’ (1 Tm 6,10); depois dela, vem a recusa de Deus e, consequentemente, de encontrar consolação n’Ele, preferindo a nossa desolação ao conforto da sua Palavra e dos Sacramentos. Tudo isto se transforma em violência que se abate sobre quantos são considerados uma ameaça para as nossas ‘certezas’: o bebé nascituro, o idoso doente, o hóspede de passagem, o estrangeiro, mas também o próximo que não corresponde às nossas expectativas.”
São as tentações da quarentena de dias no deserto: o dinheiro, cobiça e riqueza – que tentaram acossar Cristo. E nós, se não discernirmos e combatermos essas tentações, viveremos de coração empedernido, “ficaremos sentados num trono de gelo”, correndo o risco de apagar o Amor.
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- Sem enunciar as pedras, sei que as piso
Enunciando algumas das “pedras” que ameaçam nossa sobrevivência, o Papa faz denuncia:
“A própria criação é testemunha silenciosa deste resfriamento do amor: a terra está envenenada por resíduos lançados por negligência e por interesses; os mares, também eles poluídos, devem infelizmente guardar os despojos de tantos náufragos das migrações forçadas; os céus – que, nos desígnios de Deus, cantam a sua glória – são rasgados por máquinas que fazem chover instrumentos de morte.”
Neste contexto, deparamo-nos com extremismos nacionalistas a renascer na Europa e a gerar novos fundamentalismos, a par da globalização e intensificação da crise económico-financeira e do enredamento na vida completamente virtual.
E, enquanto “mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 foi parar às mãos dos mais ricos que representam 1% da população mundial”, crescendo o fosso entre os poucos ricos e torna-se cada vez mais evidente a enorme massa de pobres, “o mundo transformou-se no parque de diversões das empresas”.
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- Duramente, são pedras e não ervas
Tropeçamos nos falsos profetas que abundam e “se aproveitam das emoções humanas para escravizar as pessoas”. E, a este propósito, a CNJP questiona:
Que dizemos da televisão e dos media que temos? Como intervimos face à panóplia de programas televisivos e afins que puxam “por tudo o que é emoção e nos prendem por aí”? Que fazemos contra dispositivos de entretenimento viciantes?”.
E é aqui que se enquadra a denúncia da corrupção, violência doméstica e no namoro, poluição criminosa, precariedade de emprego, salários miseráveis, difícil acesso a saúde, abandono de idosos e do interior do país, intoxicação das consciências e manipulação de toda a ordem.
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- Tudo o que sei, já lá está...
Pegando do Evangelho, vemos que Jesus não excluiu ninguém e acolheu a todos, mesmo os leprosos, que a tradição judaica considerava impuros. Cristo devolveu a dignidade aos que são excluídos em função das suas ideias, condição social, opções de vida ou cultura. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar a incluir a todos. Já o sabemos, mas não sabemos com o corpo, o espírito, a carne. Meditemos então na Palavra:
Estando Jesus sentado no Monte das Oliveiras, os discípulos aproximaram-se e perguntaram-lhe em particular: ‘Diz-nos quando acontecerá tudo isto e qual o sinal da tua vinda e do fim do mundo’. Jesus respondeu-lhes: ‘Tende cuidado para que ninguém vos desencaminhe. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: Sou eu o Messias. E hão de enganar muita gente. Ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras, mas não vos assusteis’. […] Então, se vierem dizer-vos: ‘Aqui está o Messias’, ou ‘Ali está Ele’, não acrediteis; porque hão de surgir falsos messias e falsos profetas, que farão grandes milagres e prodígios, a ponto de desencaminharem, se possível, até os eleitos. Olhai que já vos preveni. Por isso, se vos disserem: ‘Ele está no deserto’, não saiais; ‘Ei-lo no interior da casa’, não acrediteis. Porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e brilha até ao Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem…”.
Séculos após séculos, Cristo continua a relembrar o caminho que temos de fazer em comum. E alerta e interpela os discípulos a que não se iludam com falsas palavras.
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- ... Mas [ainda] não estão os meus passos, nem os meus braços.
Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do Homem há de vir” (Mt 25,13).
O Evangelho convida-nos a ser/estar vigilantes não deixando de contemplar o belo, o bom, o justo. É na alegria e na esperança que queremos ser interpelados nesta Quaresma. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar o caminho da Ressurreição. E Francisco diz-nos:
Se porventura detetamos, no nosso íntimo e ao nosso redor, os sinais acabados de descrever, saibamos que, a par do remédio, por vezes amargo, da verdade, a Igreja, nossa mãe e mestra, nos oferece, neste tempo de Quaresma, o remédio doce da oração, da esmola e do jejum”.
E a CNJP sublinha que o apelo à oração, à esmola e ao jejum é universal”, ou seja, é dirigido a todos os homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus.
Assim, teremos de rezar a nossa indigência, descobrindo os padrões de vida que nos impedem de “estar” em Deus e predispondo o nosso corpo para que o silêncio possa fluir. Comecemos por rezar por nós para depois, ou simultaneamente, trazermos ao patamar de Deus tudo o que nos aflige e que foi anteriormente enunciado. E, se não o conseguirmos fazer, balbuciemos palavras repetidas em jaculatórias que bem conhecemos ou recitemos o Pai Nosso (a Oração que o Senhor nos ensinou) e alimentemo-nos do pão da Eucaristia, sinal da Cruz e sinal de Ressurreição.
A esmola liberta-nos da ganância e ajuda a descobrir que o outro é nosso irmão: “o que possuo, nunca é só meu”. Deveremos, pois, viver ao jeito dos primeiros cristãos, em que cada um recebia estritamente o que lhe era necessário. Para tanto, é preciso que o espírito de Quaresma se prolongue ao longo do ano, dos anos, da nossa vida inteira.
E como definimos o que nos é necessário em contraponto à necessidade dos outros? Vale a pena fazer uma análise crítica e séria (e um sério exame de consciência). Relatórios e estudos científicos afirmam possível a qualidade de vida para todos se alguns se predispuserem a viver com menos. E o Papa critica a ganância e desafia-nos a ser generosos com os bens que possuímos:
Por fim, o jejum tira força à nossa violência, desarma-nos, constituindo uma importante ocasião de crescimento. Por um lado, permite-nos experimentar o que sentem quantos não possuem sequer o mínimo necessário, provando dia a dia as mordeduras da fome. Por outro, expressa a condição do nosso espírito, faminto de bondade e sedento da vida de Deus. O jejum desperta-nos, torna-nos mais atentos a Deus e ao próximo, reanima a vontade de obedecer a Deus, o único que sacia a nossa fome.”.
Como pode ser o jejum para cada um? Por exemplo, pela escolha dum estilo de vida simples e frugal em que o pão pode ser partilhado em alternativa a uma “programação das nossas mentes” para a “satisfação imediata”. Se queremos formar os nossos filhos para uma sã disciplina na alimentação, começaremos por nós. Mas não deixaremos de usufruir do que comemos e bebemos porque tudo o que é bom é dom de Deus. E o melhor “jejum” será o de outras coisas: a maledicência, a pequena e a grande inveja, a autocomiseração, o pessimismo. E, ainda, evitar a obsessão por férias e “escapadelas”, já que o descanso é essencial, mas não pode tornar-se bem alienante e “consumidor” das almas. Procedamos ao exemplo de Deus que, no último dia da Criação, quis descansar para contemplar a Sua obra. Contemplemos, usufruamos, alegremo-nos, demos graças pelo que temos e sejamos generosos para os que não têm. Lá diz o Livro Santo:
O jejum que me agrada não será antes este: quebrar as cadeias injustas, desatar os laços da servidão, por em liberdade os oprimidos, destruir todos os jugos? Não será repartir... dar pousada... levar roupas... não voltar as costas ao seu semelhante?” (Is 58, 8-10).
Conclui o Papa Francisco:
Gostaria que a minha voz ultrapassasse as fronteiras da Igreja Católica, alcançando a todos vós, homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus. Se vos aflige, como a nós, a difusão da iniquidade no mundo, se vos preocupa o gelo que paralisa os corações e a ação, se vedes esmorecer o sentido da humanidade comum, uni-vos a nós para invocar juntos a Deus, jejuar juntos e, juntamente connosco, dar o que puderdes para ajudar os irmãos!”.
É a forte interpelação do Papa a todos (sem distinção de credos ou raças e culturas, localização geográfica ou fronteiras, escolhas e modos de vida... quer afirmemos Deus quer não O afirmemos). E é o convite à tolerância em contraponto à inflexibilidade, à transcendência em contraponto ao imediato, não deixando que a falta de misericórdia congele os corações. Cristo convida-nos a ir além da Lei e a instalarmos o Reino do Amor. Temos, pois, “um dever para com o futuro”.
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- Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu.
Segundo Maria de Lourdes Pintasilgo, “assim se conjuga esta interioridade e presença ao mundo”, “uma constante interpenetração da fome e da sede por um mundo diferente e por si mesmo diferente”. Há que agir com e em consciência, criticar e denunciar o que não está bem, mas, simultaneamente, refletir no coração e deixar que se instale a fome e sede de Deus. O caminho do “povo de Deus” está cheio de pontos de rutura, de interceções e violência, de infidelidades e recuos na Fé em Deus. Somos homens e mulheres pecadores que precisam, dia após dia, de limpar a alma aquecendo o seu coração de pedra. Precisamos da Quaresma: para prepararmos o coração para receber o Cristo Ressuscitado que “faz novas todas as coisas”.
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- ... E nesse intervalo, caminho e descubro o meu caminho.
Temos de rezar com e pelo Papa e comprometer-nos com ele a tomar em mãos o “ardor evangélico”, tal como Paulo fez: “Ai de vós se não evangelizardes!” Mas não podemos “evangelizar outros” se não nos despirmos das nossas distorções interiores, dos nossos fundamentalismos, da dicotomia “nós/eles”. Afirma Santo Agostinho:
Vamos ver quem bebe da torrente no caminho. E em primeiro lugar o que significa esta torrente? É a imagem da vida humana que corre. Assim como a torrente se forma das águas e da chuva abundante, e inunda, faz barulho, corre e, correndo, desliza até completar o seu curso, assim acontece com esta torrente de tudo o que é mortal [....] Nascimento e morte, eis a torrente. [...] E porque ele bebeu da água da torrente ‘ergueu a sua fronte’.”.
Assim, a CNJP exorta:
 Vamos erguer as nossas frontes em alegria e júbilo: tomemos o Amor como caminho para as nossas vidas, porque o Amor é também o caminho que nos oferece o Evangelho de Jesus. Rezemos ao Deus de Jacob que, nas palavras do Salmo 113, ‘transformou o rochedo em lago e a pedra em fonte de água’ (aliás Sl 114/113,8). Assumamos a nossa ‘condição anímica de caminhante’ (Edith Stein). Aproximemos o ouvido do coração, pois dele ‘brotam as fontes da vida’ e aprontemo-nos a acolher o ‘fogo’ de Deus, o fogo da Páscoa de Cristo Ressuscitado!”.
Quererão os cristãos portugueses deixar morrer o fogo da Páscoa ou enveredar por um caminho de frugalidade digna com vista à partilha solidária rumo a maior justiça social e à fraternidade?
2018.02.27 – Louro de Carvalho

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