É o título da
brochura que dá corpo à reflexão quaresmal da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), organismo da Conferência
Episcopal Portuguesa (CEP),
que insere no caminho da Páscoa o
terrorismo, a pobreza, a privatização dos CTT e a poluição no Tejo.
No seu
documento, datado de 21 de fevereiro de 2018 e ontem (dia 26) divulgado, a CNJP “afirma, contextualiza e expande” a Mensagem do Papa para a
Quaresma, redigida em torno do tema “Porque
se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos!”. Ante a
verificação de que a humanidade vive “tempos difíceis”, que são “ameaças” à
sobrevivência, a CNJP denuncia situações de desigualdade social e indica
propostas para “transcender as situações de violência e injustiça”. E,
declarando que “impressiona a clareza do Papa
em nomear as duas causas tão concretas do ‘resfriar do amor’, a nível pessoal e
‘também nas nossas comunidades’ – a ganância e a recusa de Deus” – no
documento, denunciam-se o não acesso “pleno e tempestivo” de todos os
portugueses à saúde” (apesar dos “bons
resultados” do Serviço Nacional de Saúde), a
“poluição criminosa” dos rios, como documentam as “imagens dramáticas” do Rio
Tejo, e a “marginalização dos idosos”.
Parece não ter remédio “a triste marginalização
dos idosos”, bem como “o ‘esquecimento’ das populações do interior”, sendo paradigmático
o exemplo recente dos CTT, “porque a tomada de decisão teve como base um maior
lucro e não a reorganização de um serviço de atendimento aos cidadãos,
nomeadamente os mais isolados”.
Este organismo da CEP realça, por outro lado “algumas iniciativas
muito belas”, como a aplicação informática “SOS idosos” feita por um grupo de
jovens na sua escola”.
Mas a CNJP não pode esquecer a guerra “em lume brando”, com
expressão nos “conflitos locais” em curso, os “extremismos nacionalistas
renascendo na Europa” e a instalação de “novos fundamentalismos”. E tem de
ficar patente que “o terrorismo não tem fronteiras”, pelo que todos “experimentamos
no nosso quotidiano a insegurança e o medo, a desesperança”. Mais: o ambiente
geral é o da globalização económico-financeira que, em vez de nos dar maior
solidariedade, “nos atrofia e abafa com tentáculos invisíveis”. Com efeito, “o ultraliberalismo
do ‘salve-se quem puder’ é, no mundo,
uma realidade”: instalou-se na educação, saúde, justiça, apoio e segurança
social, trabalho, emprego e uso da terra. E, a par disto, institucionalizou-se
o uso e abuso da informática e internet a ponto de o “excesso de relações online”, sobretudo nos
adolescentes que “ainda não têm a mínima capacidade de autocontrolo no uso das
redes sociais e afins”, poder atingir um estado de “rotura comunicacional”.
A reflexão quaresmal da CNJP lembra ainda, por
causa dos incêndios, os “problemas mais profundos quanto à distribuição
geográfica da população e à concentração das pessoas em megacidades”, onde o
crime e a violência se instalam de par com “um outro tipo de pobreza que retira
qualquer dignidade ao quotidiano das pessoas” e reduz tudo à “luta pela
sobrevivência”. Assim, “anunciam-nos que a taxa de desemprego baixou” (boa notícia), mas são baixos os
salários e é precária a situação contratual, grassa o desemprego juvenil, a
corrupção no desporto (e mais setores da atividade económica, social e política) e não diminui a
violência doméstica. E, além da violência domestica – ficando evidenciada “a incapacidade
das forças de segurança, e mesmo da justiça, de atenderem a este flagelo que
tem ceifado muitas vidas, nomeadamente de mulheres” –, denuncia-se uma “nova
praga”: a “violência no namoro”. Por todas estas razões, “temos um dever para
com o futuro” e desejamos que “a fé no futuro nos mantenha os olhos abertos”.
***
Para
lá de seguir de perto o Evangelho, a Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma
e a encíclica Laudato Si’, o
documento da CNJP estrutura-se glosando o seguinte segmento poético de António Ramos Rosa:
“Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as
piso – duramente, são pedras e não ervas. (...) Tudo o que sei, já lá está, mas
não estão os meus passos, nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque
há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu
caminho.” (António Ramos Rosa, Sobre
o Rosto da Terra).
***
- Sem dizer o fogo
– vou para ele
O Papa,
com a vista no encontro pascal, convida à conversão na linha da qual “a
caridade pressupõe a justiça, a justiça deve ser completada com a caridade”. E diz
de modo contundente:
“O que apaga o amor é, antes de mais nada, a ganância do dinheiro, ‘raiz
de todos os males’ (1 Tm 6,10); depois dela, vem a recusa de Deus e, consequentemente,
de encontrar consolação n’Ele, preferindo a nossa desolação ao conforto da sua
Palavra e dos Sacramentos. Tudo isto se transforma em violência que se abate
sobre quantos são considerados uma ameaça para as nossas ‘certezas’: o bebé
nascituro, o idoso doente, o hóspede de passagem, o estrangeiro, mas também o
próximo que não corresponde às nossas expectativas.”
São as
tentações da quarentena de dias no deserto: o dinheiro, cobiça e riqueza – que
tentaram acossar Cristo. E nós, se não discernirmos e combatermos essas
tentações, viveremos de coração empedernido, “ficaremos sentados num trono de
gelo”, correndo o risco de apagar o Amor.
***
- Sem enunciar as
pedras, sei que as piso
Enunciando
algumas das “pedras” que ameaçam nossa sobrevivência, o Papa faz denuncia:
“A
própria criação é testemunha silenciosa deste resfriamento do amor: a terra
está envenenada por resíduos lançados por negligência e por interesses; os
mares, também eles poluídos, devem infelizmente guardar os despojos de tantos
náufragos das migrações forçadas; os céus – que, nos desígnios de Deus, cantam
a sua glória – são rasgados por máquinas que fazem chover instrumentos de
morte.”
Neste contexto,
deparamo-nos com extremismos nacionalistas a renascer na Europa e a gerar novos
fundamentalismos, a par da globalização e intensificação da crise económico-financeira
e do enredamento na vida completamente virtual.
E, enquanto
“mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 foi parar às mãos dos mais ricos
que representam 1% da população mundial”, crescendo o fosso entre os poucos
ricos e torna-se cada vez mais evidente a enorme massa de pobres, “o mundo transformou-se
no parque de diversões das empresas”.
***
- Duramente, são
pedras e não ervas
Tropeçamos
nos falsos profetas que abundam e “se aproveitam das emoções humanas para
escravizar as pessoas”. E, a este propósito, a CNJP questiona:
“Que dizemos da televisão e dos media que temos? Como intervimos face à
panóplia de programas televisivos e afins que puxam “por tudo o que é emoção e
nos prendem por aí”? Que fazemos contra dispositivos de entretenimento
viciantes?”.
E é aqui
que se enquadra a denúncia da corrupção, violência doméstica e no namoro, poluição
criminosa, precariedade de emprego, salários miseráveis, difícil acesso a saúde,
abandono de idosos e do interior do país, intoxicação das consciências e manipulação
de toda a ordem.
***
- Tudo o que sei,
já lá está...
Pegando do
Evangelho, vemos que Jesus não excluiu ninguém e acolheu a todos, mesmo os
leprosos, que a tradição judaica considerava impuros. Cristo devolveu a
dignidade aos que são excluídos em função das suas ideias, condição social,
opções de vida ou cultura. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar a
incluir a todos. Já o sabemos, mas não sabemos com o corpo, o espírito, a
carne. Meditemos então na Palavra:
“Estando Jesus sentado no Monte das Oliveiras, os discípulos
aproximaram-se e perguntaram-lhe em particular: ‘Diz-nos quando acontecerá tudo
isto e qual o sinal da tua vinda e do fim do mundo’. Jesus respondeu-lhes: ‘Tende
cuidado para que ninguém vos desencaminhe. Porque virão muitos em meu nome,
dizendo: Sou eu o Messias. E hão de
enganar muita gente. Ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras, mas não
vos assusteis’. […] Então, se vierem dizer-vos: ‘Aqui está o Messias’, ou ‘Ali
está Ele’, não acrediteis; porque hão de surgir falsos messias e falsos
profetas, que farão grandes milagres e prodígios, a ponto de desencaminharem,
se possível, até os eleitos. Olhai que já vos preveni. Por isso, se vos disserem:
‘Ele está no deserto’, não saiais; ‘Ei-lo no interior da casa’, não
acrediteis. Porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e brilha até ao
Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem…”.
Séculos
após séculos, Cristo continua a relembrar o caminho que temos de fazer em
comum. E alerta e interpela os discípulos a que não se iludam com falsas
palavras.
***
- ... Mas [ainda]
não estão os meus passos, nem os meus braços.
“Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do
Homem há de vir” (Mt 25,13).
O
Evangelho convida-nos a ser/estar vigilantes não deixando de contemplar o belo,
o bom, o justo. É na alegria e na esperança que queremos ser interpelados nesta
Quaresma. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar o caminho da
Ressurreição. E Francisco diz-nos:
“Se porventura detetamos, no nosso íntimo e ao nosso redor, os sinais
acabados de descrever, saibamos que, a par do remédio, por vezes amargo, da
verdade, a Igreja, nossa mãe e mestra, nos oferece, neste tempo de Quaresma, o
remédio doce da oração, da esmola e do jejum”.
E a CNJP
sublinha que o apelo à oração, à esmola e ao jejum é universal”, ou seja, é
dirigido a todos os homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus.
Assim,
teremos de rezar a nossa indigência, descobrindo os padrões de vida que nos
impedem de “estar” em Deus e predispondo o nosso corpo para que o silêncio
possa fluir. Comecemos por rezar por nós para depois, ou simultaneamente,
trazermos ao patamar de Deus tudo o que nos aflige e que foi anteriormente
enunciado. E, se não o conseguirmos fazer, balbuciemos palavras repetidas em
jaculatórias que bem conhecemos ou recitemos o Pai Nosso (a
Oração que o Senhor nos ensinou)
e alimentemo-nos do pão da Eucaristia, sinal da Cruz e sinal de Ressurreição.
A esmola
liberta-nos da ganância e ajuda a descobrir que o outro é nosso irmão: “o que
possuo, nunca é só meu”. Deveremos, pois, viver ao jeito dos primeiros
cristãos, em que cada um recebia estritamente o que lhe era necessário. Para tanto,
é preciso que o espírito de Quaresma se prolongue ao longo do ano, dos anos, da
nossa vida inteira.
E como
definimos o que nos é necessário em contraponto à necessidade dos outros? Vale
a pena fazer uma análise crítica e séria (e um sério exame de
consciência). Relatórios
e estudos científicos afirmam possível a qualidade de vida para todos se alguns
se predispuserem a viver com menos. E o Papa critica a ganância e desafia-nos a
ser generosos com os bens que possuímos:
“Por fim, o jejum tira força à nossa violência, desarma-nos,
constituindo uma importante ocasião de crescimento. Por um lado, permite-nos
experimentar o que sentem quantos não possuem sequer o mínimo necessário,
provando dia a dia as mordeduras da fome. Por outro, expressa a condição do
nosso espírito, faminto de bondade e sedento da vida de Deus. O jejum
desperta-nos, torna-nos mais atentos a Deus e ao próximo, reanima a vontade de
obedecer a Deus, o único que sacia a nossa fome.”.
Como
pode ser o jejum para cada um? Por exemplo, pela escolha dum estilo de vida simples
e frugal em que o pão pode ser partilhado em alternativa a uma “programação das
nossas mentes” para a “satisfação imediata”. Se queremos formar os nossos
filhos para uma sã disciplina na alimentação, começaremos por nós. Mas não deixaremos
de usufruir do que comemos e bebemos porque tudo o que é bom é dom de Deus. E o
melhor “jejum” será o de outras coisas: a maledicência, a pequena e a grande
inveja, a autocomiseração, o pessimismo. E, ainda, evitar a obsessão por férias
e “escapadelas”, já que o descanso é essencial, mas não pode tornar-se bem
alienante e “consumidor” das almas. Procedamos ao exemplo de Deus que, no
último dia da Criação, quis descansar para contemplar a Sua obra. Contemplemos,
usufruamos, alegremo-nos, demos graças pelo que temos e sejamos generosos para
os que não têm. Lá diz o Livro Santo:
“O jejum que me agrada não será antes este: quebrar as cadeias injustas,
desatar os laços da servidão, por em liberdade os oprimidos, destruir todos os
jugos? Não será repartir... dar pousada... levar roupas... não voltar as costas
ao seu semelhante?” (Is 58, 8-10).
Conclui o
Papa Francisco:
“Gostaria que a minha voz ultrapassasse as fronteiras da Igreja
Católica, alcançando a todos vós, homens e mulheres de boa vontade, abertos à
escuta de Deus. Se vos aflige, como a nós, a difusão da iniquidade no mundo, se
vos preocupa o gelo que paralisa os corações e a ação, se vedes esmorecer o
sentido da humanidade comum, uni-vos a nós para invocar juntos a Deus, jejuar
juntos e, juntamente connosco, dar o que puderdes para ajudar os irmãos!”.
É a
forte interpelação do Papa a todos (sem distinção de credos
ou raças e culturas, localização geográfica ou fronteiras, escolhas e modos de
vida... quer afirmemos Deus quer não O afirmemos). E é o convite à tolerância em contraponto à
inflexibilidade, à transcendência em contraponto ao imediato, não deixando que
a falta de misericórdia congele os corações. Cristo convida-nos a ir além da
Lei e a instalarmos o Reino do Amor. Temos, pois, “um dever para com o futuro”.
***
- Por isso caminho,
caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu.
Segundo Maria
de Lourdes Pintasilgo, “assim se conjuga esta interioridade e presença ao mundo”,
“uma constante interpenetração da fome e da sede por um mundo diferente e por
si mesmo diferente”. Há que agir com e em consciência, criticar e denunciar o
que não está bem, mas, simultaneamente, refletir no coração e deixar que se
instale a fome e sede de Deus. O caminho do “povo de Deus” está cheio de pontos
de rutura, de interceções e violência, de infidelidades e recuos na Fé em Deus.
Somos homens e mulheres pecadores que precisam, dia após dia, de limpar a alma
aquecendo o seu coração de pedra. Precisamos da Quaresma: para prepararmos o coração
para receber o Cristo Ressuscitado que “faz novas todas as coisas”.
***
- ... E nesse
intervalo, caminho e descubro o meu caminho.
Temos de
rezar com e pelo Papa e comprometer-nos com ele a tomar em mãos o “ardor
evangélico”, tal como Paulo fez: “Ai de
vós se não evangelizardes!” Mas não podemos “evangelizar outros” se não nos
despirmos das nossas distorções interiores, dos nossos fundamentalismos, da
dicotomia “nós/eles”. Afirma Santo Agostinho:
“Vamos ver quem bebe da torrente no caminho. E em primeiro lugar o que
significa esta torrente? É a imagem da vida humana que corre. Assim como a
torrente se forma das águas e da chuva abundante, e inunda, faz barulho, corre
e, correndo, desliza até completar o seu curso, assim acontece com esta torrente
de tudo o que é mortal [....] Nascimento e morte, eis a torrente. [...] E
porque ele bebeu da água da torrente ‘ergueu a sua fronte’.”.
Assim, a
CNJP exorta:
“Vamos
erguer as nossas frontes em alegria e júbilo: tomemos o Amor como caminho para
as nossas vidas, porque o Amor é também o caminho que nos oferece o Evangelho
de Jesus. Rezemos ao Deus de Jacob que, nas palavras do Salmo 113, ‘transformou o rochedo em lago e a pedra em
fonte de água’ (aliás Sl 114/113,8). Assumamos a nossa ‘condição
anímica de caminhante’ (Edith Stein). Aproximemos o ouvido do coração, pois
dele ‘brotam as fontes da vida’ e
aprontemo-nos a acolher o ‘fogo’ de
Deus, o fogo da Páscoa de Cristo Ressuscitado!”.
Quererão
os cristãos portugueses deixar morrer o fogo da Páscoa ou enveredar por um
caminho de frugalidade digna com vista à partilha solidária rumo a maior
justiça social e à fraternidade?
2018.02.27 –
Louro de Carvalho
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