segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Volta o eucalipto ao sítio do crime do homem ou do capricho da natureza

Parece que não há forma de aprendermos. Os incêndios florestais devastaram o país. Entre a divisão de leituras sobre a origem dos fogos de Pedrógão e concelhos limítrofes, desenhou-se a ideia de que tudo falhara na prevenção e no controlo da emergência, sendo urgente apertar os calos às pessoas singulares e às pessoas coletivas, responsabilizando-as pela prevenção ao nível da limpeza dos terrenos que estejam a colocar em perigo de incêndio e suas consequências, estradas, vias férreas, aglomerados populacionais, habitações, armazéns, fábricas, equipamentos de utilização coletiva
Preconizou-se a pari o sistema de autodefesa pessoal e das populações que habitam um determinado rincão territorial e o investimento na profissionalização e disponibilidade de forças de primeira intervenção no combate. E pensou atacar-se o mal na origem: a reforma das florestas, passando pelo seu reordenamento em novos parâmetros.
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Em meados de julho, o Governo chegou a acordo para a aprovação do diploma de reforma da floresta com PCP e Bloco de Esquerda. Ao abrigo da nova lei, serão plantados menos eucaliptos e será necessária a autorização prévia do ICNF para o fazer.
As maiores alterações ao diploma aprovado pelo anterior executivo PSD/CDS-PP – o Decreto-Lei n.º 96/2013, de 19 de julho (que estabelece o regime jurídico a que estão sujeitas, no território continental, as ações de arborização e rearborização com recurso a espécies florestais) – introduzidas pela Lei n.º 77/2017, de 17 de agosto, passam pela diminuição da quantidade de eucaliptos plantados e por novas autorizações necessárias para o fazer. Mas tal ação legislativa durou quase um ano!
O novo diploma diz, assim, que é necessário que o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) aprove previamente os projetos de plantação ou replantação de eucalipto. De similar modo, quando for permitida a transferência da área da plantação de eucalipto de regiões do interior para o litoral, esta será alvo duma redução sucessiva de 10% ao ano até um máximo de troca dum hectare por meio hectare no final de cinco anos.
Para obter o referido acordo, o Governo fez algumas cedências aos partidos à esquerda do PS no Parlamento. Ante o PCP, cedeu no atinente ao sistema cadastral, introduzindo uma moratória que retira, por um ano, a hipótese de serem disponibilizados no banco de terras os terrenos identificados sem dono no processo de cadastro. Mesmo assim, o PCP entende que por esta moratória não se garante a aprovação final aos diplomas do cadastro e do banco de terras. Quanto ao Bloco de Esquerda, regista-se que não contribuiu para a lei da rearborização, preferindo avançar com projeto próprio, que foi liminarmente chumbado. O texto final estipula que a gestão e fiscalização de toda a área de eucalipto ficam sob a alçada do ICNF, para esta não aumentar. Ademais, acaba o deferimento tácito dos projetos relativos a eucaliptos ou outros cuja área de arborização seja de, pelo menos, 10 hectares. E, para os restantes projetos, passa a haver deferimento tácito apenas se ao fim de 60 dias (mais 15 dias que agora) não houver parecer.
Em caso da permuta da plantação, para lá da redução e da transferência das áreas para o litoral, foi aprovada uma moratória que impede o cultivo de eucalipto em novas áreas que ainda não tenham aprovados os planos diretores municipais de ordenamento florestal.
Nos termos da lei, “estão sujeitas a autorização do ICNF, I. P., todas as ações de arborização e rearborização com recurso a qualquer espécie florestal” – autorização “válida pelo período de dois anos, contados a partir da data da notificação do requerente ou da data em que o pedido se considere tacitamente deferido, sem prejuízo da possibilidade de revogação do ato tácito”. E “deve ser comunicado ao ICNF, I. P., o início e a conclusão da execução das ações de arborização e rearborização referidas no n.º 1, até 30 dias antes do início das mesmas e nos 15 dias após a sua conclusão”.
O pedido da predita autorização está sujeito a consulta prévia obrigatória das CCDR em áreas incluídas na REN (Reserva Ecológica Nacional), bem como das câmaras municipais, no âmbito exclusivo das suas atribuições e competências, e aos demais pareceres previstos na lei. E os pareceres das câmaras municipais são vinculativos para ações que ocorram nos espaços florestais, como tal definidos nos termos por lei sobre matérias que se encontrem vertidas no respetivo Plano Diretor Municipal.
As entidades consultadas pronunciam-se no prazo de 20 dias após o pedido, considerando-se haver concordância com a pretensão formulada se os pareceres não forem emitidos nesse prazo.
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Porém, ficou um problema. A nova Lei só entra em vigor só 180 dias após a sua publicação, ou seja em meados de fevereiro. Assim, não ao arrepio da letra da lei, mas do seu espírito, o chico-espertismo de alguns vai fazendo das suas e oito meses depois, os polémicos eucaliptos estão de volta a Pedrógão.
Refere o site da “Notícias Magazine” que “os eucaliptos voltam a crescer junto à estrada nacional 236, onde morreram 47 pessoas nos incêndios de junho” passado. Na verdade, “a semanas de entrar em vigor a nova lei que controla a espécie, está a ocorrer uma verdadeira corrida às sementes” das “árvores que os ambientalistas dizem ser mais propensas ao fogo”.
Neste contexto do salve-se quem puder, aponta-se o dedo acusador ao Governo por alegadamente “continuar a beneficiar os interesses das empresas de celulose, que exigem um volume cada vez maior de madeira para alimentar a indústria”.
Por outro lado, como bem refere a “Notícias Magazine”, a lei que está para entrar em vigor “proíbe novas plantações, mas as autoriza nos locais onde ela já existia”. Assim, os ecologistas dizem que “é a oportunidade perdida de reformular a floresta portuguesa”.
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Quem atravesse a EN 236 não pode deixar de ver os eucaliptos a renascer fortes no meio das cinzas. As margens do piso asfaltado que liga Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera – onde perderam a vida 47 pessoas no incêndio de 17 de junho – mostram um cenário aterrador e inquietante. Em contraste com o negrume de que o fogo se serviu para pintar o arvoredo e a paisagem, brotam ironicamente já verdes e fortes troncos de metro e meio de altura dos eucaliptos – as árvores mais controladas pelo novo plano de reforma da nossa floresta.
Ai, assim bem têm razão os ambientalistas quando afirmam que “a oportunidade de reformular verdadeiramente a floresta está a perder-se a cada dia que passa”.
Era necessário um tratamento de choque: proibir terminantemente e fiscalizar qualquer replantação ou semeadura do eucalipto até à entrada em vigor da lei. Mais: a lei, que proíbe novas plantações de eucalipto, mas não as impede onde elas já existiam, deveria condicionar fortemente as replantações. Caso contrário, a eucaliptilândia continua como “pasto de chamas”.
E, como verifica João Camargo, “o que acontece na EN 236 está a repetir-se por toda a região centro do país”. Diz a este respeito o bloquista:
Sabemos que o eucalipto, a menos que seja travado, renasce com maior intensidade nas zonas de incêndio. É o que está a acontecer neste momento. A oportunidade de reformular verdadeiramente a floresta está a perder-se a cada dia que passa.”.
E a crueldade da ironia é gritante: um cartaz na estrada assinala a morte 47 pessoas a 17 de junho de 2017; e, nas orlas do alcatrão, os eucaliptos renascem e/ou recrescem.
Mas não são apenas as árvores que nascem espontaneamente das cinzas a causar preocupações entre os ecologistas; também a procura de sementes melhoradas, produzidas pelas empresas de celulose para cultivo intensivo, está a causar preocupação.
Recentemente, a TSF noticiava que a corrida para evitar os efeitos da “lei da reforma da floresta estava a esgotar os eucaliptos nos viveiros”. Agora, à Notícias Magazine, o presidente da ANEFA (Associação Nacional de Empresas Florestais, Agrícolas e do Ambiente), Pedro Serra Ramos reforçou a ideia:
Apesar de o Governo ter criado um plano transitório para que não se pudessem plantar novas árvores até março. […] Sabemos que há muita gente a aproveitar áreas incultas, que deviam estar em poisio, para recuperar o eucaliptal.”.
É a pura verdade: o desordenamento florestal voltou em toda a força, com uma corrida desenfreada às sementes melhoradas de eucalipto e as áreas ardidas a regenerarem sem qualquer controlo da espécie. Estes pés de árvore, criados em alfobres especializados das empresas de celulose, permitem um mais rápido e denso crescimento, rentabilizando cada hectare de terreno. Assim, “juntando este cultivo apressado com a regeneração descontrolada das zonas ardidas, está a renascer uma floresta absolutamente desordenada” – dizem os ambientalistas.
João Camargo, o já referido investigador em alterações climáticas e dirigente do Bloco de Esquerda, aponta o facto de os interesses das empresas de celulose continuarem a estar a ser defendidos na paisagem portuguesa: “é uma indústria sobredimensionada, as fábricas não param de crescer e exigem um volume cada vez maior de madeira”.
E Pedro Serra Ramos inquieta-se com o que chama “uma real falta de vontade de mudança” das políticas florestais do país e diz:
O país continua a apoiar as celuloses e não se criam alternativas para os produtores. Por exemplo, porque não apoiar as sementeiras melhoras de carvalho, que façam árvores mais direitas e com melhores usos para a indústria do mobiliário?”.
É claro que a tendência dos produtores é não deixar de semear e plantar o que lhes der melhor rendimento. Todavia, não se pode continuar, contra tudo e contra todos, a centrar o rendimento da floresta portuguesa numa única espécie e numa única indústria.
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E não se entende a ineficácia do poder político, a menos que tenha embarcado na lógica da proteção de interesses instalados em vez de zelar pelo bem público. Já em meados de outubro de 2016, apresentava o Governo as 12 medidas para a reforma da floresta, que passo a recordar:
- A Criação do Banco de Terras, que incorporaria o património rústico do Estado e o património rústico sem dono conhecido que viesse a ser identificado, podendo o Estado assumir a gestão ou cedê-la, a título provisório, a sociedades de gestão florestal ou outras entidades.
- A Criação do Fundo de Mobilização de Terras, a ser constituído a partir das receitas provenientes da venda e arrendamento das propriedades do Banco de Terras e destinado à aquisição de novo património a incorporar, por sua vez, no dito Banco de Terras e disponibilizado para venda ou arrendamento a agricultores, preferencialmente jovens.
- A Criação do Sistema de Informação Cadastral Simplificada, para apoiar os proprietários na identificação dos seus prédios, através dum balcão único que permita simplificar procedimentos, inovar as formas de relacionamento com os utentes, promover a transparência de informações e acolher a georreferenciação de todos os prédios.
- A Criação do Regime de Reconhecimento das Sociedades de Gestão Florestal, visando o fomento duma gestão florestal profissional e sustentável, o reforço do aumento da produtividade e rentabilidade dos ativos florestais e a melhoria do ordenamento do território, acolhendo a evolução organizativa das Zonas de Intervenção Florestal (ZIF).
- A Simplificação das Normas de Funcionamento das Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), para melhorar o funcionamento das ZIF existentes, potenciando o seu alargamento e tornando possível que possam promover a adesão de novos proprietários ou produtores florestais.
- A Alteração do Regime Jurídico dos Planos de Ordenamento, de Gestão e de Intervenção de Âmbito Florestal, atribuindo aos municípios uma gradual e maior intervenção nos processos de decisão relativos ao uso do solo.
- O Novo Quadro de Incentivos e Isenções Fiscais e Emolumentares para o Setor Florestal, no âmbito das boas práticas silvícolas e da defesa da floresta contra incêndios, promovendo a rendibilidade dos ativos e tornando mais atrativa a silvicultura.
- O Plano-piloto de Prevenção de Incêndios Florestais e de Valorização e Recuperação de Habitats Naturais no Parque Natural da Peneda-Gerês, a desenvolver ao longo de 8 anos, num investimento total de 8,4 milhões de euros.
- A Reestruturação do Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios, com vista a harmonizar e atualizar os conceitos de edificação e edifício a aplicar em espaços florestais, assim como reforçar o pilar da prevenção.
- O Regime Jurídico Aplicável à Criação e Funcionamento das Equipas de Sapadores Florestais, com a definição dos apoios públicos de que tais equipas beneficiarão, tornando-se o regime, segundo o Governo, mais ágil e eficaz e a função das equipas reforçada no combate (Agora acrescenta-se-lhe a montante a prevenção e propõe-se o recurso às cabras sapadoras).
- A Revisão do Regime Jurídico das Ações de Arborização e de Rearborização, para dotar as entidades públicas de mecanismos que incentivem o equilíbrio entre as espécies, conciliando a limitação da expansão com o aumento da produtividade do género eucaliptus, em detrimento de espécies autóctones.
- O  Programa Nacional de Fogo Controlado, para promover a gestão ativa dos espaços silvestres e a criação de redes de gestão de combustível, incluindo as três componentes fundamentais do uso do fogo: o uso do fogo pela população, o uso do fogo na prevenção e a preparação para uso do fogo na gestão de incêndios.
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Um ano para legislar sobre matéria urgente é muito tempo. Quanto tempo se demorará a aplicar a lei? E, enquanto os políticos discutem, o país prepara-se todos os anos para arder e as populações sofrem pânico e pavor, perda de pessoas e bens e, sobretudo, tranquilidade para viver e trabalhar ou descansar. É caso para perguntar de que lado estão os órgãos de soberania, se do lado do interesse geral ou do lado dos poderosos interesses particulares instalados no país como a carraça no corpo de pessoa.
Haja vontade política e tudo se poderá resolver mais facilmente. Sempre contra a inevitabilidade!

2018.02.05 – Louro de Carvalho  

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