sábado, 3 de fevereiro de 2018

A secularidade enquanto marca do cristianismo

A leitura da síntese da intervenção de Sérgio Ribeiro Pinto, no passado dia 30 de janeiro, no âmbito das Jornadas de Formação do clero do sul promovidas pelo ISTE (Instituto Superior de Teologia de Évora) levou-me a pensar na secularidade como uma das vertentes do ser e viver cristãos e não como algo de estranho ou até inimigo da causa cristã.
O predito conferencista – historiador e investigador do Centro de Estudos de História Religiosa do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa – explicou ao clero do sul do país as “raízes” e as “causas” da secularização.
Ora, a palavra “secularização” vem de “saeculum”, que, no latim clássico, significava “século” (período de cem anos) e também “idade”, “época”. Porém, no latim eclesiástico, adquiriu o significado de “o mundo”, “a vida do mundo” e “o espírito do mundo”. E viver no mundo é a caraterística do ser humano, que dele sai pela morte. E os cristãos, embora almejem a vida eterna, como cume da realização e da felicidade que se efetivam na contemplação de Deus, estão no mundo com uma missão de aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento comunitário, que passa pela otimização das relações interpessoais com base na solidariedade, formação das consciências, construção das comunidades, utilização do trabalho para dignificação do homem e valorização, salvaguarda da “Casa Comum”. Esta a secularidade como condição do homem e, por consequência, do cristão.
À partida, não seria necessário colocar-se o problema da secularização. Não fazia sentido tornarmo-nos o que já somos. Todavia, o termo “secularização”, utilizado já no século XVI, figura, no século XVII, no Tratado de Vestefália (1648), para referir o abandono do sacerdócio ou da vida religiosa e com o sentido jurídico de apropriação pelo “mundo” de bens pertencentes à Igreja. E, no século XIX, assumiu um significado cultural, designando “um processo de mundanização vivido pela sociedade no seu conjunto”.
Hoje continua o debate, sobretudo no domínio teológico, sobre a secularização. Uns condenam-na por entenderem que ela estaria na base do afastamento da religião; outros saúdam-na como condição da purificação religiosa, da liberdade e da paz – na ótica de que é preciso dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César (cf Mt 22,21).
Como se depreende do que motiva e sustenta o debate, é que existem vários sentidos de secularização. Pode ser vista como “eclipse do sagrado”, “autonomia do profano”, “privatização da religião”, “retrocesso das crenças e práticas religiosas”, “mundanização das próprias Igrejas”. Nesta panóplia de sentidos, interessa sobretudo o sentido de secularização com vista à legitimidade da autonomia das realidades terrestres. É justo distinguir e até separar o sagrado do religioso, as Igrejas do poder político, mas sem impedir a convivência, o respeito e a cooperação nas causas que podem ser comuns – o que o secularismo ou o laicismo exigem.  
Na perspectiva bíblica, o Deus transcendente e pessoal cria o mundo a partir do nada e por um ato de pura liberdade de amor. A criação assim entendida implica uma diferença qualitativa infinita entre Deus e a criatura e a real autonomia do mundo, que é mundano e não divino, e é o fundamento da aliança do Deus-Liberdade com homens e mulheres livres. Os homens não são deuses. Aqui reside a diferença. Porém, os homens são chamados a cooperar com a obra de Deus, a pôr-se em contacto com Deus e a viver a vida de Deus. E aqui reside a semelhança.
Se Deus cria por amor e não por necessidade, não há rivalidade nem concorrência de interesses entre Deus e a criatura. Ao invés, a vontade de Deus é a realização plena do homem: quanto mais vivo e realizado o ser humano for mais Deus é glorificado. Assim, a secularização no sentido da emancipação da razão autónoma e das esferas temporais tem fundamentos bíblicos e pertence à dinâmica adulta do cristianismo.
No entanto, é preciso tornar claro que a secularização não se confunde com secularismo, termo criado pela Londoner Secular Society, fundada por G. J. Holyoake, em Londres, em 1846, cujo programa consistia, em traços largos, em conceber e organizar a vida prescindindo de Deus e da religião. Ora, o crente maior de idade pressupõe e quer uma razão e um mundo adultos, mas sabe que a secularização não elimina o Mistério, pois a infinitude não é secularizável.
Neste contexto, o projeto de Tratado Constitucional Europeu, no artigo consagrado ao “estatuto das Igrejas e organizações não confessionais”, prevê “um diálogo aberto, transparente e regular com estas Igrejas e organizações”.
Porém, a secularização, enquanto separação da(s) Igreja(s) e do Estado constitui um avanço civilizacional fundamental em ordem à não discriminação dos cidadãos e à salvaguarda da paz, não pode significar indiferença mútua, minoração, hostilização. Pelo contrário, a separação pode e deve conviver de modo saudável com o reconhecimento do papel público das religiões, traduzido em múltiplas formas de cooperação entre as Igrejas e o Estado. Não é lícito calar a voz das Igrejas ou tentar remeter a fé e a religião para a esfera das consciências ou dos espaços privados. A fé evangélica dos crentes exprime-se na sociedade e tem de poder influenciar o devir social.
Na verdade, o cristão vive permanentemente a dialética ou tensão entre o mundo que há de vir, o da parusia, e o mundo presente, que é passageiro, Tanto assim é que na sua oração sacerdotal, Jesus pede ao Pai, não que tire do mundo (do século) os seus discípulos, mas que os livre do maligno, porque eles não são do mundo, como também Jesus não é do mundo (cf Jo 17,15-16).
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Também se fala de secularização em sentido oposto à clericalização. Suponho que, a este respeito, estabelecemos demasiadas barreiras. Além de se rotular estranhamente de “redução ao estado laical” (não se deixa de ser bispo, presbítero ou diácono por despacho ou por casamento, como os clérigos não deixam de pertencer ao povo – laós, em grego) o facto de um sacerdote ficar dispensado das funções sacerdotais e poder vir a contrair matrimónio, falamos de secularização dos padres quando se entregam a atividades não diretamente conexas com a evangelização e culto no sentido estrito. Falamos do clericalismo quando diáconos, padres e bispos querem intrometer-se em tudo quanto é devir social, económico e político ou quando pretendemos que os leigos intervenham no culto, na evangelização ou na ação pastoral como os padres ou em substituição dos padres.
Na verdade, os leigos, na sua qualidade de membros do sagrado laós, povo de Deus (condição adquirida pelo Batismo e reforçada na Confirmação) têm uma participação no tríplice múnus de Cristo: profecia, sacerdócio e realeza. Por isso, no âmbito do sacerdócio comum com o dos padres e bispos, exercem de pleno direito funções de evangelização e catequese, de participação na liturgia (com ou sem a presença do sacerdote) e no serviço à comunidade. Porém, enquanto aos sacerdotes (sacerdócio ordenado diferente do comum) cabe a presidência nos atos de culto, que é exclusiva no caso da celebração Eucarística, no sacramento da reconciliação e no da Unção dos Doentes (aos bispos cabe, em exclusivo, a ministração do sacramento da Ordem), o impulso e coordenação das tarefas de evangelização e a animação da ação pastoral – aos leigos cabe, além do já referido, a ação eminente no meio do mundo. E este mundo, que lhes incumbe eivar do espírito e do fermento do Evangelho, pela presença, pelo testemunho e, eventualmente, pela palavra, é o mundo da profissão, dos negócios, da política, do desporto, da dinamização social, do jornalismo.
Não obstante, os sacerdotes, que também são cristãos, não deixam de olhar o mundo e de nele intervir; e, se necessário ou oportuno, proferir uma palavra de orientação de forma que os cristãos, cada um na sua condição, saibam explicar as razões da sua fé e da sua esperança (cf 1Pe 3,15) e mostrem a sua caridade baseada na justiça, em cumprimento do novo mandamento do Senhor (vd Jo 13,34-35; 15,12-14).
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O que sucede é que não foi apenas a “transcendência religiosa” que perdeu vigor, também a “transcendência política” está em crise. Por isso, as sociedades liberais veem-se a braços com a dificuldade de fundamentar os valores e estabelecer vínculos de cidadania. Não faltam, assim, pensadores que fazem apelo à religião no seu papel espiritual, ético, cultural, pois sabem que, respeitando as autonomias individuais e o pluralismo democrático, as religiões podem dar um contributo positivo com os seus recursos simbólicos. Precisamente face aos enormes desafios éticos com que o nosso tempo se confronta, Jürgen Habermas, filósofo e agnóstico, manifesta interesse por uma aproximação respeitosa das tradições religiosas que se distinguem pela capacidade superior que têm de articular a nossa sensibilidade moral, aproximação que ofereceria o exemplo duma secularização que salva em vez de aniquilar. Para ele, nesta conjuntura, as vozes religiosas têm tanto direito a pronunciar-se como as visões laicizadas do mundo, sobretudo se aceitarem “traduzir a sua mensagem em linguagens públicas e universalmente acessíveis”.
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Voltando a Sérgio Ribeiro Pinto, refira-se que explicou ao clero do sul que, no atinente ao fenómeno de secularização – embora ele tenha um “caráter tardio” –, as suas raízes remontam à “própria estruturação da organização eclesial” e que as suas causas são “de natureza teológica”, não obstante terem implicações nos âmbitos económico, social e político.
Aquele professor da UCP, ao abordar “As múltiplas raízes da Secularização nos países de tradição religiosa cristã”, disse que o termo secularização surgiu já nos inícios da segunda metade do século XVI, referente a uma “alteração de estatuto da propriedade” relacionada com o “aresto dos bens da Igreja”. Negando que a secularização resulte dum “declínio contínuo permanente da adesão religiosa”, referiu três raízes do fenómeno: a “tradição religiosa cristã”; a “construção da autonomia entre o político e o espiritual”; e a “experiência moderna (contemporânea) do tempo”. E destacou três processos que o induziram: a “autonomização da religião”; a “autonomização da política”; e a “autonomização das sociabilidades”.
De facto, nos séculos XVI e XVIII, produziu-se uma “rutura entre religião e moral”. “A construção de identidades, que não se pensam já a partir da pertença religiosa, cria espaço à existência de outro tipo de crer, socialmente legítimo e mais significativo – o das possibilidades de descrer, de não crer e de combater a crença. E o investigador referiu que esta “pulverização das identidades”, tendo reforçado o “papel da máquina administrativa do Estado”, também o tornou “alvo de debate, de disputa”.
Assim, a “tentativa de obrigar” as Igrejas a cingirem-se ao âmbito espiritual originou a afirmação, em nome da autonomia do político, de que o homem pode ser “indiferente, neutro, separado e até antirreligioso, constituindo-se como um “elemento de concorrência” do próprio dado religioso. Deste modo, “o religioso vai tornar-se num facto de opinião” e a “opinião religiosa de cada um” passa a ser uma “aquisição legitimada socialmente”.
Focando a “luta pela supremacia entre o espiritual e o temporal”, recorrente na baixa Idade Média, o conferencista lembrou que “dessa distinção radical entre os dois elementos nasce também um conflito que atravessa as diferentes formulações, sobretudo de natureza eclesiológica”. E essa distinção abriu um espaço ideológico, mas também um espaço social e político em que se insinua a possibilidade de essa confessionalidade não existir”.
Embora tenha surgido o questionamento do “próprio ato mediador do religioso”, o investigador rejeitou que o início da Modernidade tenha significado o começo da perda de influência do religioso cristão. Com efeito, segundo ele, “a erosão da sociedade medieval não resultou de uma apreciação moral que não se fez contra a religião, ou seja, contra o Cristianismo e contra o seu hipotético excesso, mas por causa da sua insuficiência”. Surgiu, antes, “uma nova noção de religião” e a “constituição de espaços de sociabilidade que são pensados a partir de maneiras diferentes de formular o que é a Igreja”.
Ribeiro Pinto constatou que “a cristianização intensiva, levada a cabo pelas duas reformas [protestante e católica] a partir do século XVI, constituiu um esforço sem precedente para espiritualizar os comportamentos quotidianos” e “mudou a maneira de entender o que era o núcleo essencial da experiência cristã, do que eram as formas de manifestação de religião”. Disse que esta “resulta, não no intuito de fazer restringir o âmbito do religioso, mas de o alargar”. E acrescentou que, “em nome desta exigência espiritual resultará uma alteração profunda que demorará, nalguns casos até ao início do século XX, a alterar o sistema beneficial que, de alguma forma, estruturava a existência eclesiástica, ou seja, o lugar das mediações”.
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Enfim, a secularização nefasta é de recusar, mas a secularização necessária e clarificadora é bem-vinda. Na verdade da condição dos cristãos, que vivem no mundo, mas não são do mundo, nele tentando viver como não sendo de cá, é tão marcada pela secularidade como pela espiritualidade, sempre na tensão entre o “já” do Reino de Deus que está entre nós e o “ainda não” do mesmo Reino de Deus que se consumará em pleno somente na escatologia. E, nesta condição de secularidade que vivem a laicidade própria enquanto membros efetivos do povo de Deus. Não fogem do mundo a não ser transitoriamente para se purificarem pela via da ascese ou para, através da vida contemplativa se aproximarem mais de Deus, intercedem pelo mundo e darem testemunho da vida futura em que não tem de se viver a limitada condição do mundo.
Tal como a condição dos crentes de guardiões e zeladores do mundo, mas não seus donos, assim é a sua condição de “seculares” ou “laicos” (no sentido positivo), que vivem no século, mas não se esgotam nele, nem são seus serventuários.

2018.02.03 – Louro de Carvalho 

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