segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O uso desviante da legitimidade e o excesso de zelo


Tive conhecimento de que a ARL (Associação República e Laicidade), incomodada com o que vê, requereu aos Presidentes das Câmaras Municipais de Lamego, Viseu e Sernancelhe a retirada intempestiva do crucifixo que adorna parte do topo cimeiro do Salão Nobre dos respetivos municípios, alegadamente nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art.º 68.º do CPA (Código do Procedimento Administrativo), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro.
Independentemente da resposta encontrada pelos responsáveis pelos sobreditos municípios, vou opinar como gosto de fazer.
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Convém, antes de mais, ler o teor da norma invocada. Ora o art.º 68.º do CPA versa o tema da “legitimidade procedimental”. E o referido n.º 2 estipula o seguinte:
Têm, também, legitimidade para a proteção de interesses difusos perante ações ou omissões da Administração passíveis de causar prejuízos relevantes não individualizados em bens fundamentais como a saúde pública, a habitação, a educação, o ambiente, o ordenamento do território, o urbanismo, a qualidade de vida, o consumo de bens e serviços e o património cultural: a) Os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e os demais eleitores recenseados no território português; b) As associações e fundações representativas de tais interesses; c) As autarquias locais, em relação à proteção de tais interesses nas áreas das respetivas circunscrições.
E a pertinente questão que me apraz levantar é em que interesse difuso a proteger e respetivo prejuízo a ARL enquadra a retirada ou não do crucifixo? Saúde (O crucifixo faz mal à saúde!), habitação (O crucifixo ocupa uma casa e não paga IMI!), ambiente (O crucifixo polui o ar e/ou a água!), ordenamento do território (O crucifixo obriga ao desvio de casas, ruas e equipamentos sociais!), urbanismo (O crucifixo é um elemento estranho à malha urbana!), qualidade de vida (O crucifixo desqualifica a vida do cidadão!), consumo de bens e serviços (Sirva-me aí um crucifixo!), património cultural (O crucifixo não tem enquadramento neste conjunto museológico ou ecológico, desequilibra o ecossistema!)?
A ARL tem legitimidade procedimental para os fins adequados, tal como eu, cidadão no gozo dos direitos civis e políticos e eleitor recenseado no território português.
E, nesta dupla qualidade, vou prosseguir o raciocínio cingindo-me às normas citadas e invocadas pela ARL, dando de barato que a posição do provedor de justiça não é vinculativa, constituindo uma simples recomendação à Administração Pública e deve ser dada pelo próprio e não por terceiros. Ademais, quem tem o ónus de fazer cumprir a Constituição é o Presidente da República, competindo ao Tribunal Constitucional a apreciação – prévia ou sucessiva – da constitucionalidade e da legalidade das leis e decretos-lei, a requerimento das entidades previstas constitucionalmente e cabendo aos tribunais a aplicação da lei pela via do juízo.  
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É verdade que, nos termos constitucionais, “as Igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto” (CRP, art.º 41.º, n.º4). Gostava de saber em que é que um objeto decorativo, um crucifixo, prejudica esta doutrina constitucional.
É irrefutável, que à luz do princípio da igualdade consagrado pela CRP (art.º 13.º), “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (vd n.º 1); e que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. E onde e como é que um crucifixo violenta a consciência das pessoas, a sua ascendência, sexo, raça, língua, território, religião, política, ideologia, instrução, situação económica, condição social e orientação sexual? Teríamos problema se o crucifixo, elemento decorativo, se transformasse em pretexto de propaganda, em comício, folheto, boletim, etc.
E pergunto-me se a ARL pretende tirar dos museus públicos todos os objetos religiosos que lá figuram. Gostava de saber até onde chegaria a iconoclastia da ARL. Só lamento que os servidores de topo do Estado permitam que, em nome de valores plausíveis, como a aconfessionalidade, a laicidade positiva, a liberdade e a cooperação, deixem que a rã infle, provavelmente para a ridicularizarem se ela, querendo ser grande como boi, vier a rebentar.
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Também a ARL invoca Lei da Liberdade Religiosa (LLR), aprovada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro. Também o seu art.º 4.º estabelece o “princípio da separação”, segundo o qual “o Estado não adota qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas” (vd n.º 1); e, “nos atos oficiais e no protocolo de Estado, será respeitado o princípio da não confessionalidade” (vd n.º 2).
Além do que se referiu sobre o preceito constitucional referente a esta matéria, é de registar que a colocação dum crucifixo ou dum elemento de cultura africana, nipónica ou chinesa não implica nem a adesão dos titulares de cargos públicos à cultura ou religião que tais objetos veiculam nem implica a pronúncia do Estado ou dos seus agentes sobre religião ou questões religiosas. O mesmo se diga de algumas expressões linguísticas, como: “se Deus quiser”; “ai, Jesus”; “minha Nossa Senhora”; “santo Deus”; …
Quanto ao protocolo, devo dizer que, sempre que um elemento duma Igreja é, por deferência, convidado para um ato público ou um representante do Estado é, por deferência, convidado para um ato religioso, deve cumprir-se com as normas da urbanidade recíproca. Não imagino nem um Estado malcriado nem uma Igreja malcriada, seja ela qual for!
O art.º 2.º da LLR, no âmbito do princípio da igualdade, estipula que “o Estado não discriminará nenhuma igreja ou comunidade religiosa relativamente às outras”. E, no quadro do conteúdo negativo da liberdade religiosa, a alínea a) do n.º 1 do art.º 9.º estipula que “ninguém pode “ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a atos de culto, a receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa”.
Confronte-se tudo isto com os números 2 e 3 do art.º 41.º da CRP, cujo teor é o seguinte:
“2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa. 3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.”.
Deveria a ARL saber que ninguém vai ao Salão Nobre dum Município assistir à missa (melhor, participar na missa) nem auferir uma lição de catequese nem responder a quaisquer inquéritos de índole ou afiliação religiosa. É certo que já lá ouvi lições de História e não critiquei o palestrante por ter ou não omitido dados objetivos de cultura religiosa presentes nos povos ao longo do tempo e pelos diversos territórios. E, se quiserem banir das literaturas o dado religioso, terão de queimar uns quatro quintos de livros existentes, ainda que de mera caricatura religiosa.
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Além do que ficou dito acima, foi invocado o CPA noutras vertentes. Assim, o n.º 1 do art.º 3.º, no âmbito do “princípio da legalidade”, que enuncia, estipula que “os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins” (vd n.º 1). E, a pari, poderia ter sido invocado o art.º 4.º, segundo o qual compete aos órgãos da Administração Pública prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Porém, na lógica do que venho sustentando, não vinha a acrescentar nada, tal como os demais artigos citados e invocados. Não é com ou sem crucifixo que se zela ou deixa de zelar o interesse dos cidadãos.
É verdade, mas excrescente, que “as autarquias locais e suas associações e federações de direito público” caem no âmbito de aplicação do CPA, como também é certo que, nos ternos da alínea d) do n.º 1 do art.º 102.º, o requerimento inicial dos interessados, salvo nos casos em que a lei admite o pedido verbal, deve ser formulado por escrito e conter “a indicação do pedido, em termos claros e precisos”.
E a ARL, de cuja legitimidade procedimental nos termos do CPA se duvida pelo motivo acima exposto, fez tudo bem: identificou-se, invocou a legitimidade, fez a menção da identidade eletrónica, formulou o pedido em temos claros e precisos. Porém, fundamentou mal. Nem a letra da lei fundamental nem a da lei ordinária lhe assiste. Ademais, não cumpriu o estipulado no invocado n.º 2 do art.º 86.º que estabelece:
É igualmente de 10 dias o prazo para os interessados requererem ou praticarem quaisquer atos, promoverem diligências, responderem sobre os assuntos acerca dos quais se devam pronunciar ou exercerem outros poderes no procedimento”.
Sabe a ARL há quanto tempo está postado naqueles Salões Nobres o crucifixo? Não sei também, mas garanto que está lá há muito mais de 10 dias. E, se a ARL só deu conta agora, é porque anda muito distraída do que pensa serem as suas obrigações. E esse é um erro palmar.
Ademais e porque as leis que cerceiam liberdades e prerrogativas devem ter interpretação estrita, gostava que a ARL indicasse um único item normativo na CRP, no CPA ou na LLR que refira expressamente a proibição da introdução ou da permanência dos crucifixos nos edifícios.
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Assim, posso concluir que esta associação cívica, de fins raríssimos, mas não lucrativos, invocou uma legitimidade desviante e peca por excesso de zelo, esquecendo que as autarquias, no quadro governança de proximidade, têm de fazer constante uso da epiqueia e do bom senso pressupondo o que o legislador abstrato faria se estivesse no concreto em ligação estreita com estas populações.
E, a talho de foice, permita-se-me que recomende a escrita segundo a nova ortografia, estipulada por tratado internacional (pacta sunt servanda), resolução da AR, Decreto do Presidente, que ratifica o tratado, e resolução do Conselho de Ministros – tudo entidades com legitimidade democrática, ao menos como a da ARL e a minha!
Na certeza de que a minha posição de pessoa singular, no exercício da cidadania, vale, pelo menos, como vale a de uma pessoa coletiva criada e mantida nos termos da lei e dispondo de um NIPC, tal como eu, que disponho dum CC e dum NIF.
2018.02.19 – Louro de Carvalho

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