Tive
conhecimento de que a ARL (Associação República e Laicidade), incomodada com o que vê,
requereu aos Presidentes das Câmaras Municipais de Lamego, Viseu e Sernancelhe
a retirada intempestiva do crucifixo que adorna parte do topo cimeiro do Salão
Nobre dos respetivos municípios, alegadamente nos termos e para os efeitos do
n.º 2 do art.º 68.º do CPA (Código do Procedimento Administrativo), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
4/2015, de 7 de janeiro.
Independentemente
da resposta encontrada pelos responsáveis pelos sobreditos municípios, vou
opinar como gosto de fazer.
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Convém,
antes de mais, ler o teor da norma invocada. Ora o art.º 68.º do CPA versa o
tema da “legitimidade procedimental”. E o referido n.º 2 estipula o seguinte:
“Têm, também, legitimidade para a proteção de interesses difusos perante ações
ou omissões da Administração passíveis de causar prejuízos relevantes não
individualizados em bens fundamentais como a saúde pública, a habitação, a
educação, o ambiente, o ordenamento do território, o urbanismo, a qualidade de
vida, o consumo de bens e serviços e o património cultural: a) Os cidadãos
no gozo dos seus direitos civis e políticos e os demais eleitores recenseados
no território português; b) As associações e fundações representativas de
tais interesses; c) As autarquias locais, em relação à proteção de tais
interesses nas áreas das respetivas circunscrições.”
E a pertinente
questão que me apraz levantar é em que interesse difuso a proteger e respetivo prejuízo
a ARL enquadra a retirada ou não do crucifixo? Saúde (O
crucifixo faz mal à saúde!),
habitação (O crucifixo ocupa uma casa e não paga IMI!), ambiente (O
crucifixo polui o ar e/ou a água!),
ordenamento do território (O crucifixo obriga ao desvio de casas,
ruas e equipamentos sociais!),
urbanismo (O crucifixo é um elemento estranho à malha urbana!), qualidade de vida (O
crucifixo desqualifica a vida do cidadão!),
consumo de bens e serviços (Sirva-me aí um crucifixo!), património cultural (O
crucifixo não tem enquadramento neste conjunto museológico ou ecológico, desequilibra
o ecossistema!)?
A ARL
tem legitimidade procedimental para os fins adequados, tal como eu, cidadão no
gozo dos direitos civis e políticos e eleitor recenseado no território português.
E, nesta
dupla qualidade, vou prosseguir o raciocínio cingindo-me às normas citadas e
invocadas pela ARL, dando de barato que a posição do provedor de justiça não é
vinculativa, constituindo uma simples recomendação à Administração Pública e
deve ser dada pelo próprio e não por terceiros. Ademais, quem tem o ónus de
fazer cumprir a Constituição é o Presidente da República, competindo ao
Tribunal Constitucional a apreciação – prévia ou sucessiva – da constitucionalidade
e da legalidade das leis e decretos-lei, a requerimento das entidades previstas
constitucionalmente e cabendo aos tribunais a aplicação da lei pela via do juízo.
***
É verdade
que, nos termos constitucionais, “as
Igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres
na sua organização e no exercício das suas funções e do culto” (CRP,
art.º 41.º, n.º4). Gostava
de saber em que é que um objeto decorativo, um crucifixo, prejudica esta
doutrina constitucional.
É irrefutável,
que à luz do princípio da igualdade consagrado pela CRP (art.º
13.º), “todos os cidadãos têm a mesma dignidade
social e são iguais perante a lei” (vd n.º 1); e que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de
qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo,
raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação
sexual”. E onde e como é que um crucifixo violenta a consciência das pessoas,
a sua ascendência, sexo, raça, língua, território, religião, política,
ideologia, instrução, situação económica, condição social e orientação sexual? Teríamos
problema se o crucifixo, elemento decorativo, se transformasse em pretexto de propaganda,
em comício, folheto, boletim, etc.
E pergunto-me
se a ARL pretende tirar dos museus públicos todos os objetos religiosos que lá
figuram. Gostava de saber até onde chegaria a iconoclastia da ARL. Só lamento
que os servidores de topo do Estado permitam que, em nome de valores plausíveis,
como a aconfessionalidade, a laicidade positiva, a liberdade e a cooperação,
deixem que a rã infle, provavelmente para a ridicularizarem se ela, querendo
ser grande como boi, vier a rebentar.
***
Também a
ARL invoca Lei da Liberdade Religiosa (LLR), aprovada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de junho,
cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de
dezembro. Também o seu art.º 4.º estabelece o “princípio da separação”, segundo o
qual “o Estado não adota qualquer religião nem se pronuncia sobre questões
religiosas” (vd n.º 1); e, “nos atos oficiais e no protocolo de Estado, será respeitado
o princípio da não confessionalidade” (vd n.º 2).
Além
do que se referiu sobre o preceito constitucional referente a esta matéria, é
de registar que a colocação dum crucifixo ou dum elemento de cultura africana, nipónica
ou chinesa não implica nem a adesão dos titulares de cargos públicos à cultura
ou religião que tais objetos veiculam nem implica a pronúncia do Estado ou dos
seus agentes sobre religião ou questões religiosas. O mesmo se diga de algumas
expressões linguísticas, como: “se Deus quiser”; “ai, Jesus”; “minha Nossa
Senhora”; “santo Deus”; …
Quanto
ao protocolo, devo dizer que, sempre que um elemento duma Igreja é, por
deferência, convidado para um ato público ou um representante do Estado é, por
deferência, convidado para um ato religioso, deve cumprir-se com as normas da
urbanidade recíproca. Não imagino nem um Estado malcriado nem uma Igreja
malcriada, seja ela qual for!
O art.º
2.º da LLR, no âmbito do princípio da igualdade, estipula que “o Estado não
discriminará nenhuma igreja ou comunidade religiosa relativamente às outras”.
E, no quadro do conteúdo negativo da
liberdade religiosa, a alínea a) do n.º 1 do art.º 9.º estipula que “ninguém
pode “ser obrigado a professar uma crença
religiosa, a praticar ou a assistir a atos de culto, a receber assistência
religiosa ou propaganda em matéria religiosa”.
Confronte-se
tudo isto com os números 2 e 3 do art.º 41.º da CRP, cujo teor é o seguinte:
“2. Ninguém
pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres
cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa. 3. Ninguém pode ser perguntado por
qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para
recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado
por se recusar a responder.”.
Deveria
a ARL saber que ninguém vai ao Salão Nobre dum Município assistir à missa (melhor, participar na missa) nem
auferir uma lição de catequese nem responder a quaisquer inquéritos de índole
ou afiliação religiosa. É certo que já lá ouvi lições de História e não critiquei
o palestrante por ter ou não omitido dados objetivos de cultura religiosa
presentes nos povos ao longo do tempo e pelos diversos territórios. E, se quiserem
banir das literaturas o dado religioso, terão de queimar uns quatro quintos de
livros existentes, ainda que de mera caricatura religiosa.
***
Além
do que ficou dito acima, foi invocado o CPA noutras vertentes. Assim, o n.º 1
do art.º 3.º, no âmbito do “princípio da
legalidade”, que enuncia, estipula que “os órgãos da Administração Pública devem atuar em
obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem
conferidos e em conformidade com os respetivos fins” (vd n.º 1). E, a pari, poderia ter sido
invocado o art.º 4.º, segundo o qual “compete aos
órgãos da Administração Pública prosseguir o interesse público, no respeito
pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Porém,
na lógica do que venho sustentando, não vinha a acrescentar nada, tal como os demais
artigos citados e invocados. Não é com ou sem crucifixo que se zela ou deixa de
zelar o interesse dos cidadãos.
É verdade, mas excrescente,
que “as autarquias locais e suas associações e
federações de direito público” caem no âmbito de aplicação do CPA, como também
é certo que, nos ternos da alínea d) do n.º 1 do art.º 102.º, o requerimento
inicial dos interessados, salvo nos casos em que a lei admite o pedido verbal,
deve ser formulado por escrito e conter “a indicação do pedido, em termos
claros e precisos”.
E a
ARL, de cuja legitimidade procedimental nos termos do CPA se duvida pelo motivo
acima exposto, fez tudo bem: identificou-se, invocou a legitimidade, fez a menção
da identidade eletrónica, formulou o pedido em temos claros e precisos. Porém,
fundamentou mal. Nem a letra da lei fundamental nem a da lei ordinária lhe assiste.
Ademais, não cumpriu o estipulado no invocado n.º 2 do art.º 86.º que
estabelece:
“É
igualmente de 10 dias o prazo para os interessados requererem ou praticarem
quaisquer atos, promoverem diligências, responderem sobre os assuntos acerca
dos quais se devam pronunciar ou exercerem outros poderes no procedimento”.
Sabe a ARL há quanto tempo está postado
naqueles Salões Nobres o crucifixo? Não sei também, mas garanto que está lá há muito
mais de 10 dias. E, se a ARL só deu conta agora, é porque anda muito distraída do
que pensa serem as suas obrigações. E esse é um erro palmar.
Ademais e porque as leis que cerceiam
liberdades e prerrogativas devem ter interpretação estrita, gostava que a ARL indicasse
um único item normativo na CRP, no CPA ou na LLR que refira expressamente a proibição
da introdução ou da permanência dos crucifixos nos edifícios.
***
Assim,
posso concluir que esta associação cívica, de fins raríssimos, mas não lucrativos,
invocou uma legitimidade desviante e peca por excesso de zelo, esquecendo que
as autarquias, no quadro governança de proximidade, têm de fazer constante uso da
epiqueia e do bom senso pressupondo o que o legislador abstrato faria se
estivesse no concreto em ligação estreita com estas populações.
E, a
talho de foice, permita-se-me que recomende a escrita segundo a nova
ortografia, estipulada por tratado internacional (pacta sunt servanda),
resolução da AR, Decreto do Presidente, que ratifica o tratado, e resolução do
Conselho de Ministros – tudo entidades com legitimidade democrática, ao menos
como a da ARL e a minha!
Na certeza
de que a minha posição de pessoa singular, no exercício da cidadania, vale, pelo
menos, como vale a de uma pessoa coletiva criada e mantida nos termos da lei e
dispondo de um NIPC, tal como eu, que disponho dum CC e dum NIF.
2018.02.19 –
Louro de Carvalho
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