quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Sobre o Código de Conduta do Governo

O propalado caso do futebol de Mário Centeno, ora arquivado, levou-me à leitura da Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2016, de 21 de setembro, e do documento anexo, que dela faz parte integrante e que dá pela designação de Código de Conduta do Governo, que “vincula todos os membros do XXI Governo Constitucional e os membros dos respetivos gabinetes”, devendo os governantes “aplicar as diretrizes constantes do Código de Conduta sempre que exerçam os seus poderes de direção sobre os serviços da administração direta do Estado ou de superintendência em sentido lato, sobre os dirigentes de institutos públicos e de empresas públicas”.
E pergunto-me para que serve este Código de Conduta, se a nossa lei penaliza quem, no uso de funções públicas, receber vantagem indevida, mesmo que não seja concretizada contrapartida, se o estatuto do gestor público já define, no âmbito da sua autonomia, um suficiente quadro de direitos, deveres e responsabilidades. Além disso, os membros do Governo estão vinculados à solene promessa no ato de posse de que cumprirão com lealdade as funções que lhes são confiadas. Por outro lado, o Código do Procedimento Administrativo (CPA) já é suficientemente claro “em matéria de garantias de plena independência, transparência, isenção e imparcialidade na prossecução do interesse público”. E não vale a pena tentar, por via legislativa ou equivalente, uma pretensa clarificação dos “comportamentos a adotar em eventuais zonas de fronteira”. Estes casos têm de ser controlados pelo bom senso e pelo escrutínio público – de aplauso ou de censura. Caso se entre na zona abrangida pela lei, então deve atuar a justiça, que age em nome do povo como ato político de aplicação do direito.  
É óbvio que se concorda que o Governo tenha estabelecido como objetivo programático “a valorização do exercício de cargos públicos como forma de melhorar a qualidade da democracia e aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições públicas”. Concorda-se que defina “expressamente padrões claros e rigorosos, prevenindo desse modo qualquer suspeição de conduta indevida e contribuindo para a transparência na formação e tomada de decisão dos detentores de cargos públicos” e que promova o crescente escrutínio do exercício dos cargos públicos por parte da sociedade.
Mas pergunto pela eficácia dum Código de Conduta enquanto “instrumento de autorregulação” e “compromisso de orientação assumido pelos membros do XXI Governo Constitucional e pelos membros dos respetivos gabinetes, no exercício das suas funções” (vd art.º 1.º). Ou seja, que mais-valia acrescenta ao ordenamento jurídico? Aliás, de boas intenções está o inferno cheio e de grandes promessas está o povo farto!
O art.º 3.º define os princípios gerais de conduta que os membros do Governo e os membros dos respetivos gabinetes devem observar no exercício das suas funções. São eles: a prossecução do interesse público e boa administração; a transparência; a imparcialidade; a probidade; a integridade e honestidade; a urbanidade; o respeito interinstitucional; e a garantia de confidencialidade quanto aos assuntos reservados dos quais tomem conhecimento no exercício das suas funções. Mais se diz que “os membros do Governo agem e decidem exclusivamente em função da defesa do interesse público, não podendo usufruir de quaisquer vantagens financeiras ou patrimoniais, diretas ou indiretas, para si ou para terceiros, ou de qualquer outra gratificação indevida em virtude do cargo que ocupem”.
Ora, tudo isto está escrito ou deve estar em qualquer lei que regule o exercício de funções públicas, designadamente o CPA, o Estatuto do Gestor Público e qualquer estatuto de ordem ou associação profissional, sobretudo das que detêm o estatuto de utilidade pública.
É verdade que os membros do Governo e os membros dos respetivos gabinetes devem: abster-se de ação ou omissão, exercida diretamente ou por interposta pessoa, que possa ser interpretada como visando o benefício indevido de terceira pessoa; rejeitar ofertas vantagens como contrapartida do exercício de ação, omissão, voto ou gozo de influência sobre a tomada de decisão pública; e abster-se de usar ou de permitir que terceiros utilizem, fora de parâmetros de razoabilidade e de adequação social, bens ou recursos públicos que lhe sejam exclusivamente disponibilizados para o exercício das suas funções (cf art.º 4.º). Porém, tudo isto é redundante, a não ser que os destinatários do Código de Conduta não estejam sujeitos às leis da República, o que seria absurdo e antidemocrático.
Depois, o artigo 5.º estabelece a responsabilidade pelo incumprimento do Código de Conduta. Os membros do Governo respondem perante o Primeiro-Ministro; e os “membros de gabinetes ou de dirigentes sujeitos ao respetivo poder de direção ou superintendência” respondem perante o membro do Governo respetivo.
Ora, bolas! A responsabilidade destes elementos humanos perante o Primeiro-Ministro ou perante o membro do Governo respetivo é uma responsabilidade política – quando muito uma responsabilidade disciplinar se houver infração de deveres de natureza estatutária. Porém, a responsabilidade pelo incumprimento de compromisso ou de instrumento de autorregulação é um dado ético. E aí o infrator responde perante a sua consciência e, no quadro da ética republicana, responderá perante a sociedade escrutinadora.  
E é excrescente a determinação de que “o disposto no presente Código não afasta nem prejudica outras formas de responsabilidade, designadamente criminal, disciplinar ou financeira, que ao caso caibam, nos termos da lei” (vd art.º 5.º/2). Com efeito, estas formas de responsabilidade estão sob a alçada da lei ou dos regulamentos.
Também são redundantes e excrescentes os artigos 6.º e 7.º, que versam, respetivamente os conflitos de interesses e o seu suprimento. Aí bastam os artigos 69.º e 73.º do CPA.
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Quanto às ofertas (artigos 8.º e 10.º), preferia que, para dissipar dúvidas, ficasse expressamente estipulada, nas leis que atingem o exercício de funções públicas, a proibição absoluta da receção de quaisquer ofertas em dinheiro (nas suas diversas modalidades).
Deveria ficar também estabelecida a proibição de oferta de bens, serviços e gentilezas para obtenção de atos ilícitos e de atos lícitos praticados de forma irregular. Em caso de suspeita de infração ou crime, que atuem as entidades que o devem fazer.
É ridículo estabelecer um valor pecuniário-limite, real ou estimado para ofertas a membros do Governo ou dos gabinetes. E pode constituir injúria por desprezo ou desdém por entidades simples e genuínas. Por exemplo, vai um membro do Governo ou um membro do seu gabinete a um evento para que há convite ou por iniciativa própria. A entidade anfitriã quer obsequiá-lo com um produto da região ou do seu fabrico. E ter-se-á de colocar a questão: Vale mais de 150 euros? E para que será contabilizado o valor das ofertas “no cômputo de todas as ofertas de uma mesma pessoa, singular ou coletiva, no decurso de um ano civil”? Para aferir da simpatia do membro do Governo ou para colocar sob suspeita a entidade que, na sua boa fé e simpatia, faz a oferta, por vezes, sentindo-se honrada pela aceitação? Não conheço injúria maior do que desprezar uma oferta de pobres. Bem o senti quando me confrontava com a sua generosidade tendo necessidade de não aceitar o que pretendiam oferecer.
E, perante o clausulado de que todas as ofertas “que constituam ou possam ser interpretadas, pela sua recusa, como uma quebra de respeito interinstitucional, designadamente no âmbito das relações entre Estados, devem ser aceites em nome do Estado”, há duas situações diferentes. Se têm a ver com a relação entre Estados, em princípio devem ser aceites em nome do Estado, a não ser que se trate de condecorações ou prémios de natureza pessoal ou honorífica. Se um Estado Estrangeiro quer atribuir um dos seus galardões, por exemplo, a António Costa, o galardão não é atribuível à República Portuguesa. Cada peixe no seu anzol! O mesmo se diga dum doutoramento “honoris causa”. Mas, se é uma coletividade ou uma pessoa amiga a oferecer uma prenda a um membro do Governo, das duas, uma: ou é ilegal ou inética e deve ser recusada; ou é normal e de boa fé e deve ser aceite a título pessoal, a menos que, sem constrangimento, haja acordo da parte de quem oferece.
Além disso, registe-se a incongruência do art.º 9.º: as ofertas recebidas em nome do Estado devem ser entregues na respetiva Secretaria-Geral (certo) e reverter em benefício de instituições que prossigam fins de caráter social. Não. Se forem recebidas em nome do Estado, deverão integrar o património do Estado. O resto será brincar às ofertas ou trocar de narizes.
O art.º 10.º estabelece a abstenção da aceitação de “convites de pessoas singulares e coletivas privadas, nacionais ou estrangeiras, e de pessoas coletivas públicas estrangeiras, para assistência a eventos sociais, institucionais ou culturais, ou outros benefícios similares, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções”. Como é que se afere isto? Com régua e esquadro ou com transferidor?
E também estipula um limite de 150 euros para convites e benefícios similares. Aqui, repete-se o absurdo acima referenciado.
Mas há generosas exceções:
a) Convites ou benefícios similares relacionados com a participação em cerimónias oficiais, conferências, congressos, seminários, feiras ou outros eventos políticos consolidados, quando exista um interesse público relevante na respetiva presença ou quando os membros do Governo sejam expressamente convidados nessa qualidade, assegurando assim uma função de representação oficial que não possa ser assumida por terceiros;
b) Convites ou outros benefícios similares da parte de Estados estrangeiros, de organizações internacionais ou de outras entidades públicas, no âmbito de participação em cimeira, cerimónia ou reunião formal ou informal, e os membros do Governo e dos gabinetes do Governo sejam expressa e oficialmente convidados nessa qualidade.”.
Se o caso descrito na alínea b) é pacífico, embora não fosse necessário o Código de Conduta, é de questionar como se afere a existência do interesse público ou como se define que a representação oficial não pode ser assumida por terceiros, no caso da alínea a).
Em suma, foi por demagogia, populismo ou outro interesse pouco democrático que se estabeleceu o Código de Conduta? Se assim foi, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2016, de 21 de setembro, constituiu uma boa oportunidade para o Governo estar quietinho.
***
E, suspeitando que o Governo tenha criado o famigerado Código de Conduta por uma questão de exagerada e descabida transparência, apetecia-me escrever sobre os efeitos perversos do excesso de transparência. Eis que, a propósito, deparo com um texto publicado no JN de hoje de Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos, deputado e professor de Direito Constitucional, sob o título “Transparência e corrupção”, de que transcrevo os seguintes passos:
“Vem isto a propósito da ficção hoje generalizada de uma transparência total e absoluta, cultivada pelos media, consentida por inúmeros responsáveis políticos. […] Esta miragem de ilimitada transparência e desmesurada amplificação das oportunidades de aparente participação democrática revelou-se altamente corrosiva de todos os sistemas de mediação instituídos ao longo dos últimos séculos pelo Estado de direito e pelas democracias constitucionais, o que conduziu à erosão dos partidos tradicionais e, logicamente, ao agravamento da crise da representação. A contaminação começou por afetar as instâncias políticas e os sistemas partidários, mas propagou-se rapidamente à administração pública e infetou, por fim, a mais sólida e opaca de todas as instituições do Estado moderno: os tribunais e todo o sistema da justiça
Tão insensato como ignorar os avisos e a gravidade das denúncias, seria pretender dar-lhes resposta através da panóplia das receitas tradicionais para a domesticação da política […] que transforma os eleitos em burocratas disciplinados e encaminha a corrupção sistémica que ameaça os regimes democráticos para os caminhos que lhe são mais acessíveis. Por isso, é obrigatório refletir sobre algumas das medidas legislativas em discussão na Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas […]. Três questões merecem atenção particular: (a) A instituição de um regime de ‘representação de interesses’ (lóbis), (b) as incompatibilidades e impedimentos, (c) a definição de um código de conduta.
A) A proposta da criação jurídica dos lóbis (representação de interesses), acoplada à respetiva regulação, parece perfeitamente dispensável. […] Não vai naturalmente acabar com a corrupção e pode até acontecer que apenas sirva para inspirar os promotores de interesses a adotar expedientes mais seguros e eficazes com a caução da transparência.
B) Sem prejuízo de que se proceda aos ajustamentos recomendados pela experiência em matéria de impedimentos e incompatibilidades dos titulares de cargos públicos, a exigência de dedicação integral e exclusiva dos deputados ao trabalho parlamentar é hoje inelutável. Em primeiro lugar, devido à multiplicação e complexidade das tarefas confiadas ao poder legislativo. Em segundo lugar, porque o risco de conflito de interesses já não se restringe aos advogados. Afeta hoje, potencialmente, todas as atividades profissionais ou empresariais.
C) Por fim, a codificação de condutas e a criminalização de procedimentos e obrigações declarativas representam um exercício perigoso de regulamentação das consciências, substituindo a responsabilidade individual por um manual de instruções com inevitáveis alçapões onde apenas caem os incautos. Com o risco suplementar de abrir novas oportunidades à demonização da política.
***
E fica dito o que eu penso e com o gosto que tenho por o ver escrito por alguém insuspeito da academia, que produz conhecimento, e do Parlamento, que nos representa, a nível eminente, na nossa soberania.  

2018.02.01 – Louro de Carvalho

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